.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

09/06/2025

um único dia certo

 



tal como simone de beauvoir. a impressão que tenho é de não ter envelhecido. mas ao contrário dela. eu ainda não me instalei na velhice. apenas envelheci. por fora. talvez um pouco. mas por dentro estou parado num dia. no dia em que ainda vivo – às vezes. quando estou mais ousado. viajo ao verão de um único dia quente da juventude. e paro. e também me interrogo: o que trouxe desse dia para o presente? e a resposta é: este único dia que me habita – pelo meio. nada. nada porque estou lembrando o agora. porque o agora é o único momento que reconheço como real. e nele sou jovem. por dentro. e no espelho apenas a verdade de tudo o que passei para chegar ao único dia em que me dou como vivo. este em que escrevo. e continuo jovem. porque sei que em mim reside a soma de todos os momentos. sou o resultado do que construí e ninguém viu. sou a família que formei. e também as minhas contradições. os amigos que conquistei. e os que perdi. o que aprendi. e o que deixei de aprender por não ter tido tempo. ou por leviandade – não se pode aprender muito num dia de vida. é tudo tão difícil. somar é apenas juntar. e o que sou com esta soma? sou este dia em que vivo. e também cultura. isto que vos escrevo é cultura. e é vasta. por ser feita inteiramente num dia – sou também um vazio que por ser isso mesmo. ainda nenhum dia conseguiu preencher. nada se vê do que guardei em mim. por isso é que os que ainda não fizeram as contas do tempo. acham que envelheci. mas não. eu apenas vivi o que somei para dentro de mim. eu nunca envelheci – ainda me movo com a leveza de outrora. só que hoje. tudo acontece num único dia. e se no passado sonhava dia e noite. agora sonho só quando tenho a certeza de que nenhum sonho se prolongará para amanhã – por fora sou apenas o que ninguém vê. tentam ler-me por sinais que não compreendem. e medem os meus dias a partir do dia em que vivo eu apenas sei que este momento que estou a viver é o único que dou como certo. vivo. tudo o resto. não sei. às vezes foi um sonho. outras um pesadelo. e a única prova de que vivi. é este instante que é meu – está quase noite. e vou ter que fechar os olhos. e por certo tenho as estrelas. mesmo que não as veja. estarão num lugar onde nunca fui. tal como o dia de amanhã. também nunca lá foi. mas se para as estrelas sorrio e aceno. para amanhã. aplaudo e agradeço. porque se lá chegar. será o único dia certo. aquele que me pertenceu por inteiro. porque o futuro. está na minha pele. nas rugas e nas cicatrizes. mas dentro eu sei que a qualquer instante o dia seguinte se perderá. e eu ficarei para sempre num único dia. onde vivi e deixei de acrescentar os que os outros me dão. recolher-me-ei entre sombras. e nesse descanso. serei para sempre inteiro em mim. e tudo o que alcancei ficará ali. naquele fim. e acredito. por ser um humano do universo. que será naquele microssegundo que fundirei a alma com a liberdade para sempre – e foi este mundo que construí. e nele deixei tudo o que era meu de verdade. almas minhas que como eu nunca envelhecerão. o que vem de nós não envelhece. nunca as libertei por mais que voassem para longe. ninguém consegue desligar-se de parte de si sem se magoar. ou perder-se em procuras desencontradas – se um dia me instalar na velhice. o que não creio aos meus olhos. em mim tudo será ausência do que sou. porque pela noite. as estrelas por lá continuarão. e eu. se não souber voar. sonharei. e cubro-me com a certeza do dia que vai chegar – sou apenas este dia. não tenho idade. tenho um único dia para me afirmar vivo. e um homem vivo respira. voa – e assim fiz-me gaivota. e o vento fez-se em mim poesia. tudo o resto perde-se no tempo. e todos. mesmo aqueles que ainda não somaram o tempo. vivem um único dia. aquele que estão a viver – tal como comecei esta crónica. termino também com um pensamento de simone beauvoir: a pessoa não é nada além do que faz de si mesma

 

ps – dedico esta crónica aos amigos que me aceitam tal e qual como sou – sei que às vezes não é fácil – mas é precisamente por isso que vos agradeço: os amigos são as peças do puzzle que. peça a peça. completam o que sou


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