vou contar algo que aconteceu comigo em um natal
já distante: estávamos no ano de 1969. eu ainda era uma criança. e não me
passaria nunca pela cabeça que este viria a ser o natal de todos os natais – apesar
de várias tradições existentes no minho. o pai natal na minha casa só rompia
pela chaminé à meia-noite – começava-se a fazer os preparativos para a sua
chegada por volta das 23.30. dando início à recolha de um sapato por cada
elemento da família. todos tinham direito a um presente – depois. eram
colocados na cozinha. espalhados por tudo quanto era sítio – isto porque
estávamos habituados a ter em nossa casa muitos familiares. além de alguns
amigos. vinham consoar connosco – todos eles sabiam que o meu pai fazia deste
dia um momento especial. uma verdadeira celebração de boas práticas cristãs – sendo
assim. mais nada restava senão esperar pelas doze badaladas para dar início ao
verdadeiro natal – este começava apenas após o papai noel despejar as prendas
nos sapatinhos – naquela idade. esperar pelas doze badaladas era um verdadeiro
suplício. o tempo parecia não andar. e a ansiedade crescia inversamente à tranquilidade
– a alegria. essa. reinava em toda a família – a meia-noite avançava no seu
vagar. para os adultos. parecia que nada de especial se passava. mas para mim
era tortura – creio que só a inocência das crianças é capaz de não perceber que
o papai noel não existe – afinal. quem conseguia manter a serenidade sabendo
que estaria para breve a entrada em nossa casa de uma tão ilustre
personalidade? eu não conseguia – apesar da angústia. o tempo caminhava
devagar. e os minutos pareciam passar ainda mais devagar. muito devagar. mas o
tempo seguia seu curso e a meia-noite estava prestes a chegar – era o momento
em que me parecia que estávamos todos no mesmo pé de igualdade. eu e os adultos
fazíamos um enorme reboliço. o barulho não parava de aumentar. todos gesticulavam
e gritavam uns com os outros – para mim. a maior parte das coisas era
impercetível. gestos e códigos que só os crescidos pareciam entender. mas era
evidente que tudo tinha a ver com a chegada do pai natal. e com a distribuição
das prendas – de repente. ouve-se uma voz na sala: está a chegar o pai natal – ó
meu deus. todo eu era alegria. incapaz de caber no meu mundo ainda tão pequeno.
mas bem lá no fundo. trazia comigo um medo infantil. incapaz de ser anunciado –
o silêncio era agora total. apenas ouvia o meu coração eufórico e as pernas a
varejar— apagavam-se as luzes da sala. apenas a iluminação do pinheiro
continuava a piscar. fazendo sobressair na sua base a sagrada família – era ali
que residia a força daquele dia. era nessa fé de que um dia um menino nasceu
para salvar o mundo do pecado que. aos meus olhos. não restavam dúvidas era
mesmo o redentor – a minha família era tão perfeita. tão genuinamente bondosa.
o meu pai não parava de distribuir atenção e cuidados a todos os presentes. não
podia faltar nada em cima da mesa – o bom vinho. escolhido religiosamente para
este dia especial. era o ponto culminante das preocupações de um bom chefe de
família – aos meus olhos. via apenas um homem feliz. com o sentimento de que
tinha cumprido com as suas responsabilidades familiares e estava agora a ser
recompensado. com alegria e fartura transbordando na mesa – até a minha mãe.
sempre muito mais receosa do futuro. espelhava naquele dia a felicidade
estampada no seu rosto – de dentro dos seus gestos brotava aquela ternura que
só os filhos sabem alcançar pelo olhar. a sensatez. a ponderação e lucidez
davam lugar a um olhar de esperança e felicidade – meu irmão. mais velho dez
anos. faz então um número de teatro e diz: tchchhh. e a algazarra calou-se.
suavam as pancadas na porta da cozinha. violentas. para que não houvesse
dúvidas de que o pai natal tinha descido pela chaminé – a meu lado. a minha
irmã. para quem o natal já não tem segredos. mais velha do que o meu irmão dois
anos. estava habituada as festividades natalícias dos meus pais. segurava-me o
olhar. sabia que era no meu contentamento que o natal podia ter mais brilho – mais
ao lado. a alegria daquela que todos os dias substituía a minha mãe nos
afazeres de educar: a 'ua'. como várias gerações têm vindo a chamar
carinhosamente. um diminutivo de lourdes. minha protetora até hoje. também ela
estava rendida à minha felicidade. os seus olhos não se desprendiam da minha
jubilação. todos queriam ver-me feliz. era o alvo das atenções – apesar daquela
mistura de sentimentos. em cada pancada da porta vinha a esperança de que fosse
a última. mas pareciam eternas. sempre aparecia mais uma. uma tortura para um
catraio – finalmente. o fim das míticas doze pancadas – saía então disparado
para a cozinha. na esperança de que o meu sapato estivesse repleto de
prendinhas – os olhos rebentavam de alegria. era a cozinha mais bonita do
mundo. as prendas subiam em pirâmides intermináveis. o chão estava
completamente coberto de embrulhos. e a algazarra à minha volta era infernal –
a minha montanha de embrulhos obrigava a várias viagens de ida e volta para os
levar até o meu local de deleite – minha mãe era o pai natal lá de casa. eram
dela as economias que juntava durante o ano — então. apesar de muitos embrulhos.
quase todos eram roupas que. mais cedo ou mais tarde. eu iria precisar para o
meu dia a dia – obviamente. truques impostos pelos orçamentos controlados.
neste pacote de prendas não podiam faltar as meias e as camisolas interiores. porque
na época nenhuma mãe mandava o filho para a escola sem estar bem agasalhado – mas.
no meio de todos esses embrulhos. lá vinha sempre um ou dois brinquedos. não
eram os que eu tinha pedido na carta ao pai natal; esses eram muito caros.
próprios de famílias endinheiradas. de dinheiro fácil. mas vinham uns parecidos
que. no entanto. eram de uma terceira categoria. suponho que minha mãe os
comprava numa 'lojeca' onde. depois de marralhar durante dez minutos. conseguia
um desconto substancial – brinquedos são sempre brinquedos para uma criança. e
a partir daquele momento eu já não existia para o natal familiar. refugiava-me
no quarto para descobrir e desmontar aqueles que seriam os únicos brinquedos
que eu teria nos próximos doze meses – estava eu entretido com a imaginação.
quando irrompem pelo meu quarto dizendo que o pai natal ia voltar. tinha-se
esquecido de deixar um embrulho – estive para morrer. o pai natal de volta? era
sorte demais para uma criança como eu – logo que me disseram que era uma nova
visita. desatei numa correria estonteante – voltou-se a repetir todo o cenário
anterior para a chegada do pai natal. fiquei novamente a ouvir as pancadas de
molière. ainda mais nervoso do que da primeira vez – um embrulho enorme estava
no meu sapato. creio até que era o único em toda a cozinha. rasguei o papel e
não quis acreditar no que os meus olhos viam – numa caixa com mil e uma cores. e
um avião impresso no cartão maravilhoso. que mesmo sem sair da caixa já me
fazia voar pela estratosfera – o avião era fantástico. de pilhas e em chapa
pintada. naquela altura não havia preocupações com brinquedos de chapa.
magoava. curava com as respetivas janelas e portas. os reatores nas asas
terminavam com. a sobressair uma luz vermelha e verde. que acendiam à vez. e a
cauda pintada com o símbolo da tap – tudo era perfeito. ligado. fazia um
zumbido que me deixava na dúvida se ia levantar voo. enquanto as luzes não
paravam de acender e apagar – no terraço de minha casa. o aeroplano não parava
de subir na minha imaginação. minha mãe gritava a toda a hora para que eu
saísse do frio. mas o boeing não parava de piscar aquelas luzes de sonho – o
avião e os sonhos caminhavam majestosamente por aquele terraço. que para mim
era uma pista de aviação que me ligava ao resto do mundo – aquele avião. que
nunca levantou do chão. fez-me ter o natal mais extraordinário que uma criança
pode desejar. daquele terraço. parti para todo o mundo. feliz e agradecido a um
pai natal que. apesar de não o ter visto. era o mais incrível do meu universo
de criança com sonhos – naquela noite. dormi com os anjos. pela primeira vez
tinha tido um brinquedo de 1ª categoria – tudo isto. agradeço a um amigo do meu
pai que resolveu festejar o natal em nossa casa. como chegou atrasado. por
culpa do pai natal de sua casa. chegou depois da meia-noite. daí termos de
repetir o número do pai natal a descer a chaminé – hoje. ainda gosto do meu pai
natal – as crianças. naquele tempo. eram enganadas com alegria. os pais eram
felizes ao criar nas crianças a capacidade de ter fé. esperança e uma vontade
enorme de sonhar – infelizmente. as crianças hoje quase nascem sabendo que o
pai natal não existe. alguém se lembrou de que as crianças precisam de um pai
natal. mesmo que a descoberta da realidade traga alguma tristeza – tenho a
certeza de que as recordações daquelas noites mágicas acabam por compensar a
descoberta da realidade – pobre sociedade. que retira a inocência da vida das
crianças. tirando-lhes a possibilidade de criar as suas próprias fantasias –
mas. por muito que a sociedade tente dizer que o pai natal não existe. eu só
sei dizer que isso é uma grande mentira – para mim. o homem vestido de vermelho.
de barba branca. barrigudo e amigo das crianças existe e existirá sempre – sei
até que um dia me trouxe um avião maravilhoso. e sou até capaz de jurar que vi
o seu trenó com as renas paradas no meu terraço. e eram lindas. majestosas
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