.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/12/2024

eu. e o natal de 1969

 





vou contar algo que aconteceu comigo em um natal já distante: estávamos no ano de 1969. eu ainda era uma criança. e não me passaria nunca pela cabeça que este viria a ser o natal de todos os natais – apesar de várias tradições existentes no minho. o pai natal na minha casa só rompia pela chaminé à meia-noite – começava-se a fazer os preparativos para a sua chegada por volta das 23.30. dando início à recolha de um sapato por cada elemento da família. todos tinham direito a um presente – depois. eram colocados na cozinha. espalhados por tudo quanto era sítio – isto porque estávamos habituados a ter em nossa casa muitos familiares. além de alguns amigos. vinham consoar connosco – todos eles sabiam que o meu pai fazia deste dia um momento especial. uma verdadeira celebração de boas práticas cristãs – sendo assim. mais nada restava senão esperar pelas doze badaladas para dar início ao verdadeiro natal – este começava apenas após o papai noel despejar as prendas nos sapatinhos – naquela idade. esperar pelas doze badaladas era um verdadeiro suplício. o tempo parecia não andar. e a ansiedade crescia inversamente à tranquilidade – a alegria. essa. reinava em toda a família – a meia-noite avançava no seu vagar. para os adultos. parecia que nada de especial se passava. mas para mim era tortura – creio que só a inocência das crianças é capaz de não perceber que o papai noel não existe – afinal. quem conseguia manter a serenidade sabendo que estaria para breve a entrada em nossa casa de uma tão ilustre personalidade? eu não conseguia – apesar da angústia. o tempo caminhava devagar. e os minutos pareciam passar ainda mais devagar. muito devagar. mas o tempo seguia seu curso e a meia-noite estava prestes a chegar – era o momento em que me parecia que estávamos todos no mesmo pé de igualdade. eu e os adultos fazíamos um enorme reboliço. o barulho não parava de aumentar. todos gesticulavam e gritavam uns com os outros – para mim. a maior parte das coisas era impercetível. gestos e códigos que só os crescidos pareciam entender. mas era evidente que tudo tinha a ver com a chegada do pai natal. e com a distribuição das prendas – de repente. ouve-se uma voz na sala: está a chegar o pai natal – ó meu deus. todo eu era alegria. incapaz de caber no meu mundo ainda tão pequeno. mas bem lá no fundo. trazia comigo um medo infantil. incapaz de ser anunciado – o silêncio era agora total. apenas ouvia o meu coração eufórico e as pernas a varejar— apagavam-se as luzes da sala. apenas a iluminação do pinheiro continuava a piscar. fazendo sobressair na sua base a sagrada família – era ali que residia a força daquele dia. era nessa fé de que um dia um menino nasceu para salvar o mundo do pecado que. aos meus olhos. não restavam dúvidas era mesmo o redentor – a minha família era tão perfeita. tão genuinamente bondosa. o meu pai não parava de distribuir atenção e cuidados a todos os presentes. não podia faltar nada em cima da mesa – o bom vinho. escolhido religiosamente para este dia especial. era o ponto culminante das preocupações de um bom chefe de família – aos meus olhos. via apenas um homem feliz. com o sentimento de que tinha cumprido com as suas responsabilidades familiares e estava agora a ser recompensado. com alegria e fartura transbordando na mesa – até a minha mãe. sempre muito mais receosa do futuro. espelhava naquele dia a felicidade estampada no seu rosto – de dentro dos seus gestos brotava aquela ternura que só os filhos sabem alcançar pelo olhar. a sensatez. a ponderação e lucidez davam lugar a um olhar de esperança e felicidade – meu irmão. mais velho dez anos. faz então um número de teatro e diz: tchchhh. e a algazarra calou-se. suavam as pancadas na porta da cozinha. violentas. para que não houvesse dúvidas de que o pai natal tinha descido pela chaminé – a meu lado. a minha irmã. para quem o natal já não tem segredos. mais velha do que o meu irmão dois anos. estava habituada as festividades natalícias dos meus pais. segurava-me o olhar. sabia que era no meu contentamento que o natal podia ter mais brilho – mais ao lado. a alegria daquela que todos os dias substituía a minha mãe nos afazeres de educar: a 'ua'. como várias gerações têm vindo a chamar carinhosamente. um diminutivo de lourdes. minha protetora até hoje. também ela estava rendida à minha felicidade. os seus olhos não se desprendiam da minha jubilação. todos queriam ver-me feliz. era o alvo das atenções – apesar daquela mistura de sentimentos. em cada pancada da porta vinha a esperança de que fosse a última. mas pareciam eternas. sempre aparecia mais uma. uma tortura para um catraio – finalmente. o fim das míticas doze pancadas – saía então disparado para a cozinha. na esperança de que o meu sapato estivesse repleto de prendinhas – os olhos rebentavam de alegria. era a cozinha mais bonita do mundo. as prendas subiam em pirâmides intermináveis. o chão estava completamente coberto de embrulhos. e a algazarra à minha volta era infernal – a minha montanha de embrulhos obrigava a várias viagens de ida e volta para os levar até o meu local de deleite – minha mãe era o pai natal lá de casa. eram dela as economias que juntava durante o ano — então. apesar de muitos embrulhos. quase todos eram roupas que. mais cedo ou mais tarde. eu iria precisar para o meu dia a dia – obviamente. truques impostos pelos orçamentos controlados. neste pacote de prendas não podiam faltar as meias e as camisolas interiores. porque na época nenhuma mãe mandava o filho para a escola sem estar bem agasalhado – mas. no meio de todos esses embrulhos. lá vinha sempre um ou dois brinquedos. não eram os que eu tinha pedido na carta ao pai natal; esses eram muito caros. próprios de famílias endinheiradas. de dinheiro fácil. mas vinham uns parecidos que. no entanto. eram de uma terceira categoria. suponho que minha mãe os comprava numa 'lojeca' onde. depois de marralhar durante dez minutos. conseguia um desconto substancial – brinquedos são sempre brinquedos para uma criança. e a partir daquele momento eu já não existia para o natal familiar. refugiava-me no quarto para descobrir e desmontar aqueles que seriam os únicos brinquedos que eu teria nos próximos doze meses – estava eu entretido com a imaginação. quando irrompem pelo meu quarto dizendo que o pai natal ia voltar. tinha-se esquecido de deixar um embrulho – estive para morrer. o pai natal de volta? era sorte demais para uma criança como eu – logo que me disseram que era uma nova visita. desatei numa correria estonteante – voltou-se a repetir todo o cenário anterior para a chegada do pai natal. fiquei novamente a ouvir as pancadas de molière. ainda mais nervoso do que da primeira vez – um embrulho enorme estava no meu sapato. creio até que era o único em toda a cozinha. rasguei o papel e não quis acreditar no que os meus olhos viam – numa caixa com mil e uma cores. e um avião impresso no cartão maravilhoso. que mesmo sem sair da caixa já me fazia voar pela estratosfera – o avião era fantástico. de pilhas e em chapa pintada. naquela altura não havia preocupações com brinquedos de chapa. magoava. curava com as respetivas janelas e portas. os reatores nas asas terminavam com. a sobressair uma luz vermelha e verde. que acendiam à vez. e a cauda pintada com o símbolo da tap – tudo era perfeito. ligado. fazia um zumbido que me deixava na dúvida se ia levantar voo. enquanto as luzes não paravam de acender e apagar – no terraço de minha casa. o aeroplano não parava de subir na minha imaginação. minha mãe gritava a toda a hora para que eu saísse do frio. mas o boeing não parava de piscar aquelas luzes de sonho – o avião e os sonhos caminhavam majestosamente por aquele terraço. que para mim era uma pista de aviação que me ligava ao resto do mundo – aquele avião. que nunca levantou do chão. fez-me ter o natal mais extraordinário que uma criança pode desejar. daquele terraço. parti para todo o mundo. feliz e agradecido a um pai natal que. apesar de não o ter visto. era o mais incrível do meu universo de criança com sonhos – naquela noite. dormi com os anjos. pela primeira vez tinha tido um brinquedo de 1ª categoria – tudo isto. agradeço a um amigo do meu pai que resolveu festejar o natal em nossa casa. como chegou atrasado. por culpa do pai natal de sua casa. chegou depois da meia-noite. daí termos de repetir o número do pai natal a descer a chaminé – hoje. ainda gosto do meu pai natal – as crianças. naquele tempo. eram enganadas com alegria. os pais eram felizes ao criar nas crianças a capacidade de ter fé. esperança e uma vontade enorme de sonhar – infelizmente. as crianças hoje quase nascem sabendo que o pai natal não existe. alguém se lembrou de que as crianças precisam de um pai natal. mesmo que a descoberta da realidade traga alguma tristeza – tenho a certeza de que as recordações daquelas noites mágicas acabam por compensar a descoberta da realidade – pobre sociedade. que retira a inocência da vida das crianças. tirando-lhes a possibilidade de criar as suas próprias fantasias – mas. por muito que a sociedade tente dizer que o pai natal não existe. eu só sei dizer que isso é uma grande mentira – para mim. o homem vestido de vermelho. de barba branca. barrigudo e amigo das crianças existe e existirá sempre – sei até que um dia me trouxe um avião maravilhoso. e sou até capaz de jurar que vi o seu trenó com as renas paradas no meu terraço. e eram lindas. majestosas



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