annibale carracci
o cadáver acontece – sem palavra. insignificante. inofensivo. imóvel. inocente. indiferente – tudo está agora escuro – onde não há palavra não há ruído – as mãos deixaram de escrever. estão cruzadas. a imaginação parou. fixa num ponto inventado. o verbo é agora pretérito perfeito misturado com silêncio – no fato preto a cor da minha vida – os olhos fechados. a cor da gravata não sei. nem sei quem a escolheu. pode ter sido tirada à sorte daquela última gaveta do guarda-vestidos. sei que o nó é grosso. apertado. bem apertado. estranho. há uma falta de ar dentro de mim. deve ser das tábuas. estão tão juntas aos cotovelos – a boca fechada. presa nos lábios. a cola – colaram-me os lábios. obrigaram-me ao silêncio. agora nunca mais posso dizer olá – sem palavra não sirvo para nada. nem vento sou. nem gaivota. nem desespero. nem lágrima. só choro quando falo – será que alguém teve medo que eu dissesse alguma coisa desagradável. talvez um amigo daqueles que sabem que há palavras que matam mais do que a morte – passei a vida a dizer que não sabia falar. mas assim. fechada. com cola – nunca imaginei que a morte consistisse nesta falta de palavra – sempre me vi em gestos. era assim que falava. os braços para trás e para a frente. a correrem como loucos. os olhos caídos no chão como piões rodavam entre as pernas também elas desconsoladas por nunca saberem o caminho do corpo. e a boca sempre ali. morta por dizer o que nunca sabia dizer. só na cabeça as palavras faziam sentido. e dentro. a língua. as papilas gustativas. sempre a salivar por um verbo de amor – só com o meu amor os beijos eram palavras. podia dizer amo-te sem gastar palavras – que faço sem boca? que faço vestido de preto? que faço ao corpo velho. enrugado. triste. como sempre foi. perdido. escondido em projetos. em esboços. viagens? nunca saía de dentro do meu corpo – abram-me a boca. deixem entrar o ar mesmo que esteja frio. morto. mesmo que nos côncavos olhos já não se veja os lugares onde me sentei a sorrir. aquela rocha voltada para o mar. na póvoa. onde pela primeira vez falei com as gaivotas – que dia. o céu cinza. o mar cinza. tudo estava cinza. os pescadores em terra cosiam as redes. em silêncio. era agosto – e eu ali com um agosto jovem. ainda não sabia nada de oceanos. só mais tarde descobri que o mar lava a alma – sozinho. nem ninfa se via. só eu e as gaivotas. voavam-me em círculos por cima do corpo. como abutres. já sabiam que mais tarde ou mais cedo a boca seria a minha morte – não é uma questão de falar para vós. aqui já não tenho mais nada para dizer. mas para onde vou. podem perguntar donde venho. o que fiz. ou o que gostaria de ter feito – pensando bem também não sei donde venho. nem o que fiz. ou o que gostaria de ter feito – há tanta coisa dentro de mim que nunca fui capaz de escolher. hoje queria uma coisa. amanhã outra – talvez não precise da boca. talvez tenha dito tudo que é permitido a um homem preso a um corpo que nunca para de estar quieto – não sei falar – mesmo com a boca fechada não tenho silêncio dentro de mim. nunca tive. há sempre alguém a fazer barulho. sempre alguém a querer dizer: tu não és tu – se eu nunca sou eu então para que quero viver? – não há forma de manter o corpo dentro da cabeça e rebolar até aos pés dos que me percebem – preciso de silêncio – isto de se ser cadáver em vida é complicado – quero morrer