pintura - inês dourado
onde param
os meus amigos de infância? se alguém souber do seu paradeiro. por favor. não
entre em contacto comigo. não me mande SMS. cartas. telegramas ou recadinhos em
pedacinhos de papel. não os quero encontrar e também não os quero de volta ao
meu mundo – não é por mal. acreditem que não. creio apenas que não resistiriam
ao desencontro do meu crescimento – o tempo passou. envelheci. o catraio também
envelheceu. as feições mudaram. as ideias solidificaram-se. os ossos
enfraqueceram. a alma enrijou e descobri que só o silêncio e o isolamento me
protegem dos desencantos – agora. agora que o corpo estagnou. vivo numa
toxidade só minha: solitária e silenciosa – tornei-me egoísta. foquei-me na
mirração. no agora. retirei das paredes todas as fotos da juventude. abafei as
recordações num saco plástico e atirei ao mar – o sal corrói tudo. destrói
todas as provas – solidifiquei a indiferença e rendi-me aos espaços vazios –
dentro destas paredes só existe o que sou capaz de pensar. e quando não penso.
e as paredes se tornam gigantescas. fico sem saber o que fazer ao corpo. e é
quando escrevo. escrevo tudo o que sinto e fico com a sensação de que nada sei
do que sinto – é esta insatisfação persistente. cruel e impiedosa que me
revolve o corpo. e o que estava longe está agora aqui: o primeiro dia de
escola. o carrinho de rolamentos. o autocarro para monte d`arcos. a hora de
comungar. de amar. de guiar a 4L ou das mãos a cheirar às anilinas. às máquinas
e às pessoas vestidas com batas autênticas. o tempo não mudou esta sensação de
sentir. está tudo igual – há coisas que nos ficam para sempre. é como se dentro
de nós houvesse uma gaveta mágica onde guardamos o que sentimos e sabemos o que
sentimos: este sentir não tem tempo. nem vento. nem chuva. nem andorinhas. nem
folhas caducas. nuvens para lá e para cá. sinos. azevinho ou gaivotas a planar
sobre um lago batido a vento norte. o que era continua a ser. e o que sentia
continuo a sentir – sempre estive convencido que sabia tanta coisa e agora dei
conta que não sei nada – sou afinal o que? se fosse sábio. se fosso um homem
igual aos outros. se não tivesse medo do que não sei. se não tivesse medo da
minha ignorância. não perdia mais tempo a escrever o que sinto. não. saía do
corpo e vivia. vivia sem medo de não saber o que não sei – saia das mãos.
encerrava-as no correr da morte. transformava-me numa gaivota e voava por essas
ruas desconhecidas. voava e vivia. porque para viver basta abandonar o que
pensas e quando deixas de pensar deixas de ter corpo e um homem sem corpo é um
homem livre – escrevo a liberdade que sempre desejei – é nesta
solidão-silenciosa. tranquila. plácida que recuperei o caminho para me
reencontrar na minha desarrumação. numa afetividade serena. meiga. sentida.
desprendida. despreocupada e de uma compaixão imensa. sem reacusações. sem dedo
acusador. rancor. revolta ou rebeldia – vivo num reencontro permanente. é a
minha dança com lobos. o meu passado à volta de uma fogueira onde todos os que
já foram meninos reaparecem a recontar a minha história – é neste reencontro de
histórias que adormeço como criança e acordo com a esperança de que ainda vou a
tempo de me aceitar no destino – agora. agora preciso de todo os dias que me
restam para fazer de mim o que realmente sou – cumprir os desígnios do
pensamento. aceitar a comoção. o desassossego dos reencontros. inventar
perdões. assumir culpas e relembrar insistentemente que o que se sente é a
única verdade que o corpo aceita… o que se sente é a única verdade que o corpo
aceita – já não sou capaz de vender a alma ao diabo. o que ficou para trás
ficou e não quero que volte – entreguei-me em definitivo ao isolamento
cerebral. estar só evita estar mal-acompanhado – a vida é um desafio constante
onde a desilusão está garantida. depois. ainda lhe juntamos a ingratidão. a injustiça.
o azar e os desígnios de deus. é como se fosse um circo. e nós ali sentados.
sem saber a quem dirigir as palmas. se ao domador pelo estalar do chicote se à
fera que o tenta morder – não quero ninguém do passado perto de mim. não quero
ninguém que me volte a ocupar o corpo. não quero mais aborrecimentos –
envelheci. degradei-me. perdi a inocência. a fé e a vontade de mudar o mundo –
envelhecemos todos. todos os meninos envelheceram. não há remédio contra o
envelhecimento – estou cansado. quando se perde a fé o corpo todo deixa de
acreditar. os ouvidos deixam de ouvir. a boca cala-se e mantemos os olhos
fechados mesmo quando estamos acordados – estou mais morto do que vivo – tenho
a certeza que um dia. depois da minha morte. cada palavra escrita encontrará a
razão para a sua existência – o que escrevo será para sempre o meu reflexo num
lago batido a vento norte: ondulo… ondulo… ondulo
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