pintura - kurt 2018
1.
deixemo-nos de
eufemismos. a morte é o fim da
consciência em definitivo – por isso.
quando invoco a ressurreição. o
retorno ao mundo num novo corpo. para
uma nova oportunidade. estou a
troçar. a gargalhar. porque só “gargalha de uma cicatriz
quem nunca foi ferido” – realmente eu nunca morri por inteiro. às vezes morre uma mão. o cérebro. os olhos. a vontade de
correr. de viver. e até morre as reservas de estupidez que me mantêm lúcido no
intervalo dos carateres – dentro dos carateres existe apenas vida. a minha vida. o que amei. o que aprendi. o que construí. o que perdi e me magoa com saudade e todas as desilusões que nos
mata mais do que a própria morte – e é por isso que escrevo. só a escrita me ressuscita desta morte faseada – estar morto é não
se ser coisa nenhuma e também não existir em lado nenhum – eu existo. primeiro aqui enquanto respiro. e depois. em vocês que me leem – sei que estou vivo. mesmo que às vezes cheire a defunto
2.
gosto de desvalorizar a morte.
acicatá-la. gosto de espetar-lhe uma metáfora hiperbolizada. robusta. enérgica
e incisiva. de forma a abrir roturas na semântica: o corpo que sustento dentro
desta minha cabeça respira e resiste mesmo sabendo que cheira a defunto
persiste – nenhum corpo deveria ter direito a uma cabeça que desiste do mundo –
e pergunto: se tivesse nascido em montmatre. sacré couer. e fosse um pintor de
rua será que os meus olhos faleciam antes da cabeça? e se fosse malabarista no
cirque du soleil... será que os meus braços faleciam antes da cabeça? e se
fosse uma folha perdida na floresta negra alemã… será que o vento me levaria
até ao mar? nunca saberei ao certo – nada em mim sei como certo. nada em mim é
de tal forma meu que jamais colocaria em causa que não pudesse ser de outra
pessoa. nada em mim sou eu em definitivo e tudo em mim me faz querer ser outra
coisa qualquer que não sei o que. outra coisa que não sendo minha eu
acreditasse que com sorte poderia ter sido. nem que fosse apenas por uma hora.
ou um segundo que demorasse a passar. um segundo que fosse uma vida e essa vida
não pudesse ser de outra pessoa se não eu – é esta antítese que me faz baloiçar
entre um corpo falecido e uma respiração moribunda que teima em prolongar as
dúvidas num pensamento agonizado e teimoso – é assim que me mantenho vivo – no
entanto. não me custa admitir que devo ser insuportável. nenhum corpo quer
alguém como eu. ingrato. aborrecido e mal-agradecido
3.
a simbiose continua. e eu
dentro desta troca de favores: o corpo respira para que a cabeça continue a
pensar e a cabeça pensa para que o corpo não pare de respirar – isto deveria
ser suficiente para viverem a vida tal e qual como lhes é oferecida – afinal é
assim para todos – eu não posso ser exceção por mais que me sinta a cheirar a
defunto – tudo na vida acontece num rápido. tudo é celeridade. esta ideia
errada de que a nossa passagem terrena é demorada é a maior trapaça que nos
enfiaram pelo corpo. acabei de nascer ontem e o amanhã já não sei se vai
acontecer – para acelerar ainda mais esta viagem começamos a morrer aos poucos.
às vezes o corpo respira e a cabeça já é defunta há uma dezena de anos – houve
uma época em que acreditava que morreria todo de uma vez. de velhice. de mão
dada com a minha companheira. amarrado à saudade. às memórias e a pedir a um
deus qualquer que me desse outra vida. que me deixasse voltar à juventude. às
correrias. ao amor fácil. aos carros velozes e aos amigos loucos e bonitos –
fazia tudo diferente. bem. não digo tudo. mas muita coisa seria diferente – o
que fazia igualzinho era conquistar a mesma mulher. no mesmo sítio. à mesma
hora e com o mesmo beijo – amo-a daqui até ao infinito – mas enganei-me. poucos
são aqueles que morrem de uma vez só – a fé já passou por mim. envelheci nuns
dias e apodreci em outros. e agora. nada do que resta em mim. enquanto humano
que respira. tem força para mudar esta vida que me manipulou. aldrabou e iludiu
– todos os dias morro um bocadinho – o tempo não flui num só sentido. o tempo
flui de fora para dentro do corpo e atulha-nos de anseios que não podemos
alcançar e depois. há um dia. de raiva. deitamos todo o acreditar para fora e
perdemo-nos. e já não há viagem de volta – partimos. fragmentamo-nos em pedaços
de nada e sumimos para sempre na escuridão do mundo – só inteiros somos visíveis.
só inteiros valemos alguma coisa – estou perdido. não me encontro em lado
nenhum e o que me faz saber vivo é o barulho que faço a respirar – estou entre
as mãos que escrevem e o falecimento de tudo o que me trouxe até aos dias de
hoje. perdi-me das memórias. perdi-me da chave das portas que fechei. das
orações que não rezei. e pior. das palavras que escrevi e me construíram como
se fosse uma fábrica de coisas inúteis: de facas que nada cortaram. agulhas que
nada coseram. água que nada lavou e pernas que não andaram e o baú cheio de
relíquias de vidro. frágeis. estúpidas e sem valor – nada do que deixo como
tesouro. as palavras que escrevi. mudará o que quer que seja do mundo que era
meu. digo era porque já me considero
falecido para a criação – o que criei está criado – ingratidão sempre houve e
também sempre houveram homens bons que morrem muito tempo antes de morrer a
respiração – morto sou muito mais feliz – quando um homem falece o mundo deixa
de punir e começa a perdoar – era bom homem. não teve muita sorte na vida mas
tinha bom coração… e péu péu. péu péu e péu péu – fossem todos como ele e este
mundo seria bem melhor… e péu péu. péu péu e péu péu – coitado. tanto
sacrifício para isto. morreu sem glória… e péu péu. péu péu e péu péu – esta
vida são dois dias. tanta maldade no mundo para todos acabarem assim… e péu
péu. péu péu e péu péu – que se lixe a lamechice. tudo o que fui. bom ou mau. está dentro de
mim e inevitavelmente arderá comigo no dia da cremação – e quando o corpo arder
por minha ordem. e a pó voltar. e a vento marchar. e a mar cheirar. tudo ficará
divino e novamente às ordens de um deus que me queira recriar – se este deus
existir. e se a minha imagem se fizer novamente à sua imagem. então peço-lhe:
que não me roube a memória. nem me alteres a morada de minha casa. pois esse é
o único caminho que guardo no pó – “do pó viestes. ao pó voltarás (Gn 3,19)”.
do coração te fizeste. e ao coração voltarás
4.
e assim se cumprirá a profecia
de um livro que me pesou tanto como a vida: finalmente serei corpo sem respirar
e sem fé – as palavras não ardem – é nas palavras que continuarei a respirar.
continuarei ofegante. mas agora sem mágoa. sem correrias. sem o silêncio
nostálgico. cheio de barulhos. a magoar. nascido no lado escuro da lua – bem.
confesso que não tenho a certeza onde nasceu. talvez tenha sido parido nos
anéis de júpiter. ou quem sabe. enviado numa cegonha por um deus
extraterrestre. ou então. dentro de uma pia de água benta para me proteger dos
demónios do escuro – mas já que estamos em tempo de confissões. aqui vai mais
uma. tenho medo do escuro da morte. sempre tive medo do escuro. no escuro
perco-me de mim com mais facilidade e o silêncio amedronta-se. aterroriza-se.
fica ainda mais negro do que o próprio negro do escuro. e os fantasmas. só para
me irritar. vestem-se de branco. trepam as paredes e empecilham-me as
recordações – estúpidos. abutres. quando lhes cheira a morte não nos largam –
há anos que os sinto a poisar sobre mim – só nas palavras sou eu. e mesmo que a
respiração vos pareça terminal. sou eu a resistir – a minha realidade viverá na
dignidade do pó e para sempre
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