pôr-do-sol – um gesto. uma cabeça cheia de
incertezas e os olhos pousados em coisas sem mobilidade: um candeeiro.
um lápis. uma agenda de um ano que já não me lembro. uns
quantos papeis sem o menor interesse. uma miniatura da nau de cabral e
uma parede paspatur – nesta parede existo como nunca vivi [as máquinas
fotográficas escondem coisas do tamanho do king kong] – voltemos ao pôr-do-sol.
voltemos a um não defunto avelhentado. escurecido de medo.
desacertado do relógio. do tempo que passa. da régua que mede e
de um mar-gaivota a planar no peito – tenho a certeza que numa outra vida fui
marinheiro – olho as mãos e mudo-lhes a cor. atiro-as para os raios de
luz e amarro-me ao que escapa da escureza – entre os dedos um rosário de coisas
a passar como se fossem feridas – será que ainda sou eu? ou será que se me
aplica o paradoxo do navio de teseu? acho que já nada resta do que me trouxe a
este pôr-do-sol. não tenho a mesma forma. nem os mesmos sonhos.
as mãos fizeram-se em letras e os pensamentos romperam-se pela inutilidade –
estou amarrado num corpo que se metamorfoseou para chegar a adulto – estou
agora numa espécie de estágio de crisálida. estou parado.
enrolado na vida a tentar compreender o meu insofrimento à incerteza – estou a
pensar e a sentir o corpo. a respirar em forma de perdão – quem não pede
perdão nunca será perdoado – não posso chegar ao futuro sem ter a certeza de
que a minha intolerância à incerteza não tem uma explicação – respiro.
concentro-me na parede paspatur e caminho de foto em foto – vou –
“nenhum vento sopra a favor de quem não sabe pra onde ir”* –
não
sei se a incerteza nasceu comigo ou
se me entrou no corpo com a primeira golfada de ar – há coisas que nunca
saberei. talvez seja melhor assim. às vezes é melhor não saber a
verdade – sei que a incerteza mora com os fantasmas. percorre as mesmas
paredes. os mesmo cortinados. as mesmas luzes escorridas.
os mesmos sons escondidos e solta as mesmas lágrimas – o que sei mesmo é que
tanto a incerteza como o fantasma precisam do humano para existir – e aqui
estou. parado. quase sem respirar. a controlar o medo.
a justificar-me com o paradoxo de teseu. a dizer que sou o mesmo apesar
de quase nada restar das incertezas que me fizeram crescer – se vos pudesse
mostrar como foi difícil chegar a este pôr-de-sol – estou desfigurado.
alterado. o medo ganhou garras e o que era para voar cravou-se à parede
paspatur – resta-me uma obsessão doentia de uma felicidade que em boa verdade
não sei se existe – viver não deveria ser tão complicado – ”você nunca vai
saber o que vem depois de sábado, quem sabe um século muito mais lindo e mais
sábio, quem sabe apenas mais um domingo”** – toda a minha vida
viajei pelo meu corpo à procura de explicações para as incertezas.
atraquei em lugares que nem sei se existem. mas uma coisa sei.
nunca atraquei em amesterdão e nunca encontrei a ana dos olhos enxutos*** –
uma brisa me soprou que vem aí mau tempo**** – acredito que sim.
estou quase certo de que a ira de poseidon chegará logo depois do pôr-do-sol –
viver com as incertezas não é uma escolha voluntária – e aqui estou a ver
coisas. a ouvir coisas. a misturar coisas. a centrifugar
coisas. e o centro do pensamento cada vez mais estúpido.
projetando obscenidades para a parede paspatur numa discordância trapézica que
baloiça entre merece e não merece – a parede paspatur continua indiferente. mouca.
desligada da minha incerteza doentia e melancólica – e eu preso à vida de uma
forma que não a compreendo – o pôr-do-sol está [também] prestes a falecer.
amarra-se ao que resta da cidade. esvai-se entre as casas numa tristeza
depressiva. angustiante e uma brisa fria toca a janela como se já fosse
morte – será que se pode colocar o paradoxo de teseu ao pôr-do-sol? não sei –
gostava de imaginar um corpo inteiro de certezas. gostava que abril
fosse o mês certo para quem quer nascer. gostava que todos os úteros se
emprenhassem de flores e pássaros e mesmo que os rios não cheguem ao mar com o
sol em vénus que o pôr-do-sol me conforte quando o corpo se fizer inverno – foi
tudo tão rápido e incerto – estou cansado. apetece-me encostar o corpo
ao vento e ficar para o dia seguinte – não há nenhum pôr-do-sol igual a outro –
neste corpo ocupado de incertezas o que resta de luz dá apenas para aclarar a
opacidade das coisas que me rodeiam – aos poucos. todas as coisas se
tornarão turvas. densas. estranhas e com formas monstruosas –
tenho que aproveitar o que resta do pôr-do-sol. esconder as sombras dos
fantasmas e correr como se ainda não fosse tarde para que a boca não sinta a
minha ausência – mas se o corpo cumprir um destino e as pedras do caminho uma ironia
sem tino. então… quero desaparecer. quero chorar
prostrado o fim desta minha eternidade e que esta enorme realidade termine como
se de uma história de amor se tratasse. e porque a morte não pode ser um
equívoco. nem punhal sem desígnio. enveneno o que resta de mim
numa última golfada de ar e vomito em sangue o meu nome para as pedras que um
dia pisei – só as pedras guardam em silêncio o que resta de um homem – soubesse
eu caminhar como um pássaro e sorrir como uma amendoeira em flor e a distância
para o céu nunca seria medida de abril – como será o pôr-do-sol no dia
seguinte? tenho medo do escuro. tenho medo do que vejo no escuro.
tenho medo do que não vejo no escuro. tenho medo mesmo sabendo que
algumas coisas só existem quando penso – como se houvesse um trono para quem
vive a pensar. não há. tudo o que somos está no que gerámos com
as mãos e depois. se formos sábios. levamo-nos para dentro das
coisas universais – abril é um mês cruel – e aqui estou neste pedaço de terra
minúsculo onde existo. a olhar o pôr-do-sol a morrer para mim. e
pergunto-me se o mundo não seria mais pequeno se não tivesse nascido em abril –
vivo mesmo sabendo que não sou nada. mesmo sabendo que poderia ter sido
outra coisa que não nada. se de arte o corpo se tomasse – procuro-me até
que o destino me encontre. pois sei que no fim… tudo passará se
um pouco de mim não ficar… nem que seja apenas pesar – nunca digas nada
que o mundo não compreenda e nunca faças nada que o mundo não aceite sem pensar
– o mundo é assim. é um todo distraído e impiedoso e só fazendo parte
desse todo distraído e piedoso é que serás capaz de compreender as tuas
incertezas nas certezas do mundo – e as coisas sem parar de passar pelos dedos…
a magoar – quero esquecer tudo o que guardo nesta parede paspatur. quero
apanhar o vento e navegar no que resta dos mares. procurar-me em cada
ilha. em cada gaivota. em cada dia de sol ou chuva.
buscar-me em todas as incertezas até me encontrar com a última certeza – depois…
em paz. procuro um pôr-do-sol e relembro todos aqueles que me
fizeram existir. sento-os comigo. abraço-os e segredo-lhes vida.
peço-lhes a absolvição e por fim. aceito-me numa incerteza boa e parto
na saudade de ter existido até ao meu último pôr-do-sol… como diz
gustave flaubert. salvo se formos cretinos. morremos sempre na
incerteza do nosso próprio valor e do da nossa obra – sei que um dia abril
descansará em mim
*lúcio
sêneca
**paulo leminski:
***
música de chico buarque: bom tempo – adaptação da letra
**** música de chico buarque – ana de
amesterdão –
chico buarque venceu o prémio camões 2019 –
trazê-lo para o meu texto é a minha pequeníssima homenagem à sua carreira como
músico e escritor
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