pintura - rené magritte
ninguém sabe exatamente o que sou – às vezes sou uma
coisa sem pés nem cabeça. outras vezes. tenho uma cabeça que não
me leva a lado nenhum. e nos dias em que a cabeça sabe para onde ir.
faltam-me os pés. por isso fico onde estou – quando me aborreço de ser
uma coisa sem pés. nem cabeça. sou o que encontro à mão: sorrio.
canto. danço. leio os astros. deito cartas do tarot.
faço serenatas à lua e. nas noites de lua cheia. uivo e suplico
aos morcegos para me purgarem o sangue do sofrimento – gostava de ser um
transmorfo e. quem sabe. transformar-me numa dessas criaturas que
não tem alma e se alimentam dos espíritos desassossegados. mas não sou
coisa nenhuma para além de não saber o que sou – talvez por isso. por
não me transformar em coisa nenhuma. os “outros” entendem que sabem tudo
do que sou – que palermice – esquecessem-se eles do que são e. sem se
aperceberem. transformam-se no que não é bom – desses “outros”
nada sei. às vezes acredito que
são como são porque. infelizmente. nada podem fazer para não
serem assim como são. mas confesso. não são como eu gostaria que
fossem – reconheço que não sei nada de ninguém. houve tempos em que
também acredita que sabia quase tudo do mundo e dos “outros”. agora.
com o tempo a esgotar-se. percebo que quanto mais envelheço menos sei do
mundo. dos “outros” e também de mim – não sei nada de nada e
mesmo que pudesse saber não queria. perceber o pouco que sei de mim já é
coisa séria e complicada – sou um ignorante ingénuo. um analfabeto que
sabe ler e escrever e que. com o tempo a gastar os minutos. atrás
de minutos. reconheço. agora. que apenas o que faço
com o meu destino me preocupa – todos temos uma missão a cumprir nesta passagem
efémera pela vida. tristemente e quase em agonia. eu ainda
procuro a minha – quando os “outros” creem que sou o que não sou. olho
para o céu. abano a cabeça. rezo um anjo da guarda. invoco
os meus santos protetores. são três: o velho s. judas tadeu que
controla tudo que são causas difíceis; stª bárbara porque sempre tive
medo das trovoadas; e stº estevão que em miúdo fez o milagre de me tirar
uma dor de dentes e. porque quero muito acreditar nesta fé invisível.
a troco de umas quantas orações. suplico-lhes que me aligeirem a
carga dessa gente que me pesa – mas quando essa malta me aborrece mesmo muito.
e não quero maçar os meus benfeitores. saco da flauta mágica e
disfarço-me de hamelin. e tudo que rasteja levo para desaparecer e o que
é exasperação… deixa de ser – estou demasiadamente ocupado com esta nova
certeza de que estou mesmo a envelhecer.
não posso. não quero e nem necessito de me aborrecer com o que
não me pertence – de seguida invoco o destino e renovo-lhe a minha lealdade ao
caminho traçado: sou o que sou e assim será até ao seu final – por mais
volta que deem à balança ela tombará sempre para o meu lado. tranquilamente
e em serenidade – no entanto. nem sempre estou no mesmo lado do
equilíbrio. às vezes estou do lado da razão. outras da emoção.
mas na maior parte das vezes. estou no outro lado de mim. no
escuro. no silêncio. onde o medo acontece e os pecados se espiam
– só eu sei onde centro a coerência. sendo eu um homem com valores
renascentista recordo leonardo da vinci num dos seus muitos pensamentos:
“é preciso deixar a sua marca na história. fosse em que campo da
existência fosse” – é neste caminho. que é só meu. que tudo
faço para me tornar mais indulgente. tolerante e condescendente com o
que os “outros” pensam que sabem de mim – continuo a ser como sou.
continuo à procura do melhor em mim e para mim. contínuo à procura de
fazer o que ainda não consegui fazer. encontrar a minha marca para a
minha história. para o meu bem-estar. que bem pode não ser o
vosso – termino com duas anotações de leonardo da vinci
“Posso
sorrir, e matar enquanto sorrio,
E
proclamar-me feliz com o que me aflige o coração,
Molhar
as minhas faces com lágrimas fingidas
E
acomodar a minha cara a todas as ocasiões...
Posso
acrescentar cores ao camaleão,
Mudar
de forma mais depressa que Proteu
E
mandar para a escola o sanguinário Maquiavel!”
//
“Vede
aqueles que podem ser chamados
Simples
condutores de comida,
Produtores
de estrume, enchedores de latrinas,
Pois
deles nada mais se vê no mundo
Nem
qualquer virtude se observa no seu trabalho,
Nada
deles restando além de latrinas cheias”
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