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nota
de autor.
vinte
e oito meses depois resolvi terminar esta saga analítica de quatro tipos de
morte – confesso-vos que a morte emocional e terapêutica me custou imenso a
escrever. verdadeiramente. só agora estou a disfrutar dessa
descida ao inferno – não foi fácil estender a escada para pular do mundo das
dores. mas agora sei que o tempo é um erro. “a
distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”*.
o sofrimento esgueirou-se silenciosamente. e as palavras adocicaram-se
– é com esta memória persistente e resistente que aprendi a encontrar-me no hoje.
quero-me em papel – sei agora melhor do que nunca. que qualquer uma das
minhas mortes. num tempo que não sei contar. resolverá com
crueldade esta minha forma de escrever o que sinto – aqui estou com a última
parte. a morte dolosa ou fraudulenta e. ao contrário das mortes
anteriores. onde tinha descido ao inferno. nesta. subi ao
céu e diverti-me com anjos e querubins
4. a morte dolosa ou fraudulenta
introdução.
finalmente uma morte que traz boa disposição – confesso
que já sentia falta de uma escrita levezinha. tranquila. serena.
uma escrita tipo chazinho de camomila – nesta saga analítica de quatro tipos de
morte. a morte dolosa ou fraudulenta. que vos entrego.
foge completamente ao estilo de escrita do sampaio rego. creio que é
mais o género do joão surreal – mas não importa quem escreve. o
importante mesmo é esta vontade de compor a vida que me sai de dentro.
esta emoção. esta perturbação. este desassossego que me magoa e que
simultaneamente me ilude com o tempo. faz-me viver. faz-me
sorrir – meu deus. como sou feliz nesta busca incessante das palavras
que nunca sei onde estão – hoje. graciosamente. trago-vos uma
morte que é uma história embrulhada numa bela surpresa. com um final
tipo alfred hitchcock – tentarei então fazer um embrulho com um laço bonito.
quer dizer. um laço pomposo e misterioso. só espero que o papel chegue
e a história no final mereça o vosso sorriso – vamos começar então
1.
um marido convencidíssimo de que a sua esposa o
atraiçoa sente-se completamente desesperado. e de tal forma encasquetou que
essa deslealdade era real que a sua vida se tornou num verdadeiro inferno – o
ciúme passou a administrar totalmente a sua racionalidade.
transformando-a numa irracionalidade absurda e absoluta – afogado nesse
sentimento egoísta e incapaz de dialogar com a sua companheira. busca em
si um motivo para essa traição. mas por mais que procure uma mingua de
razão para essa evidente deslealdade. não a enxerga – está desesperado.
sempre amou esta mulher. sempre foi um homem fiel. sempre viveu
para a família – à falta de uma resposta que lhe alivie o sofrimento deixa-se
tomar por uma raiva silenciosa e o desfecho é o colapso emocional – não quer
acreditar que se tenha enganado a respeito de uma companheira que conheceu
ainda adolescente. não quer e não pode. a mulher que um dia jurou
amar pela santidade do casamento católico é o centro do seu universo – o que
seria da sua vida sem a única pessoa que deu sentido à sua existência – com a psicose
gravemente instalada. esta leva-o a um pensamento delirante. pouco
lúcido. sistematizado pela negatividade e dotado de uma lógica errática
própria de quem está doente – uma mente doente pensa doentiamente – a falta de confiança arrasta-o para uma agressividade
interior perigosa e desgastante e a relação entra definitivamente num estágio
dramático – o silêncio é agora o seu maior inimigo – o fim do seu casamento
está por um fio. a angústia é contínua e as noites uma enfermidade dolorosa
que o impede de descansar – deita-se infeliz e levanta-se ainda mais infeliz.
sente-se o pior homem do mundo – inseguro e com a sua autoestima a roçar a lama.
percebe que não aguenta muito mais esta sua indeterminação e. resolve
partir em busca da verdade. doa o que doer – ele sabe que o tempo está
contra si. este medo de perder a mulher que ama está a enlouquecê-lo – o
coração está prestes a implodir de sofrimento. é hora de saber toda a
verdade. é hora de saber se ainda é o homem que a sua mulher quer ter a
seu lado para o resto da vida – chegou o momento de enfrentar o medo.
é urgente saber a verdade. a sua amada tem que lhe dizer. olhos
nos olhos. que o amor
acabou. que foi bom. mas chegou ao fim – depois de muito ponderar
concebe então um plano que lhe permita. objetivamente. aferir se
as suas preocupações são reais ou apenas a alma doente – tem que saber se a sua
esposa tem um caso ou não. se o ama ou não. meios termos já não
são aceitáveis. a dor é colossal. insuportável. há que colocar
tudo em pratos limpos – reconhece as suas fragilidades por que está a passar e
reconhece também que só um amigo verdadeiro será capaz de o compreender e ajudar
– está desesperado. sabe que o plano é arriscado e maquiavélico. mas
parece-lhe ser esta a única solução capaz de lhe devolver a paz e o casamento
2.
o amigo dirige-se a sua casa. toca
a campainha. aguarda uns segundos. a porta abre-se e dá de caras
com a esposa do zé meireles que. surpreendida com a visita. lhe
pergunta:
-- a esta
hora aqui. aconteceu alguma
coisa?
o amigo pesaroso e pouco à vontade
responde-lhe a gaguejar:
-- si... sim
há. nem sei como te dizer…
faz-se silêncio. os olhos da cutilde
arregalam-se. o corpo entesa-se. as faces ruborizam-se enquanto a
mudez é consentimento para que o amigo do seu marido diga rapidamente ao que
veio – o jeremias entristecido. com os olhos encharcados de dor.
a tremer e a gaguejar diz-lhe então:
- o… o zé acabou de falecer. foi atropelado
.
[colocado
num local estratégico. camuflado. mas com uma perfeitíssima visão
para o patamar da sua porta. o zé tenta perceber nos meneamentos da sua querida
esposa se realmente vislumbra algum detalhe de júbilo ou tristeza]
.
a
cutilde estremece. bamboleia. como se também ela tivesse sido
atropelada e. enquanto os segundos se multiplicavam por uma eternidade
toda ela é tomada por uma dor paralisante. não consegue pronunciar uma
única palavra – não se ouve um único som ao redor de si. parecia até que
o mundo tinha acabado de falecer – o jeremias. em pânico. arruma-se
igualmente dentro do silêncio. concentra-se e projecta os olhos para
dentro da alma da cutilde – também ele quer saber se o seu amigo está.
ou não. a ser enganado pela esposa – o zé meireles é o seu amigo do
coração. cresceram juntos. fizeram a escola juntos. andaram
nos namoricos juntos e quando um tombava com um copo o outro nunca ficava para
trás. se tivesse que dar a vida por alguém. esse alguém. seria
o zé – são mais do que amigos. são manos e o sofrimento de um mano não
dói. mata-nos – a cutilde dá dois passos atrás. encosta-se à
porta. percebe que está prestes a colapsar. e sem que o jermias lhe
pudesse valer. o corpo desfalece e as pernas acabam por ceder – cutilde
está prostrada no chão – o jeremias entra em pânico. pela primeira vez
percebe que talvez o plano possa não correr como tinham planeado. dá-lhe
duas bofetadinhas ao de leve. abana-a. chama-a pelo nome em
desespero e. com custo. tempo e terror. a cutilde reabre
os olhos – completamente desfigurada. rapidamente recupera a memória do
drama que está a viver e. numa agonia de estraçalhar o coração. recusa
a acreditar que o seu zé a tenha deixado ficar para sempre – a dor é insuportável.
o coração está prestes a partir-se e o corpo a sufocar perde-se em lágrimas – completamente
desorientada levanta-se. anda de um lado para o outro sem discernir o que realmente deve fazer. sente-se
perdida e não consegue raciocinar – se por um lado quer sair a correr para abraçar
o zé. por outro. recusa-se confrontar com a verdade – já
ninguém tinha realmente dúvidas que a cutilde amava o zé. era fácil de
perceber que a dor era genuína. saí-lhe da alma. o zé meireles era
o único homem da sua vida – quem entrou em pânico foi o jeremias. também
ele começou a sentir as pernas a desfalecer enquanto o corpo tremia como varas
verdes – estava metido numa alhada e agora não sabia como descalçar a bota – com
a voz trémula tentou rapidamente encontrar um paliativo para o drama. pelo
menos adiar um pouco o que parecia já não ter solução – foi uma grande
estupidez. diria mesmo. do tamanho da sé de braga – amarrou nas
mãos da cutilde. olhou-a nos olhos e pediu-lhe para ter esperança porque.
em boa verdade. ele não viu o corpo. apenas tinha recebido um
telefonema do hospital a dar conta da tragédia. mas o melhor era
realmente verificar se o falecido era mesmo o zé – lembrando-lhe um episódio
recente que passara na TV. também anunciaram a morte de alguém que
afinal não tinha acontecido – suplicou-lhe para que dentro do possível relaxasse
e descansasse um pouco. em breve lhe daria notícias a confirmar ou não a
morte do seu marido – a pobre mulher consumia-se em dor. mas percebeu
que o melhor seria mesmo recolher-se um pouco e esperar pela confirmação do seu
amigo – o momento era de solidão. precisava ficar só. libertar
a sua raiva com deus. perguntar-lhe porquê o seu zé. qual a razão
para lhe roubar o homem da sua vida
3.
o
jeremias completamente tresloucado foi rapidamente ter com o seu amigo a um
café nas redondezas – o zé já o esperava agitado e tomado por uma cor que
prognosticava grandes sarilhos. tudo apontava para que fosse ele o
próximo a desfalecer – o jeremias sem deixar que o zé dissesse uma única
palavra disse-lhe: zé não tens razão nenhuma para desconfiares da
cutilde. ela não só não tem ninguém como te ama perdidamente – os olhos
do zé. momentaneamente. encheram-se
de alegria – mas agora te digo meu amigo. depois do que vi. creio
que ela vai mesmo deixar de te amar – não sei como vamos descalçar esta bota.
fizemos asneira da grossa – juro-te que não sei o que fazer para reverter esta
palermice – o zé se por um lado se sentia feliz por saber que afinal o amor da
sua mulher era realmente verdadeiro. por outro. compreendeu que a
sua cabeça lhe tinha pregado uma partida – e agora o que fazer? o coração
acelerou. o suor começou a escorrer-lhe pela face e o pânico tomou-lhe
conta da emoção. estava como o burro no meio da ponte. não sabia para
que lado se deveria virar – fiz asneira e vou perder a cutilde. desabafou
o zé – desesperado mais uma vez pediu ao amigo para o ajudar a reverter a doidice
em que se tinha metido. não podia perder a mulher que amava por causa de
uns ciúmes estúpidos – e ali ficaram aquelas duas almas descarnadas a tentar
encontrar uma solução para resolver o imbróglio. a preocupação era que a
cutilde não desconfiasse que afinal tudo não tinha passado de um teste estúpido
e doentio para aferir a sua lealdade
4.
a
cutilde. afogada em dor. não encontrava justificação para
continuar a viver sem o seu zé e. num ato tresloucado e desesperado. ingere
um frasco de calmantes – a vida sem o seu grande amor não faz sentido. a
solução é também ela acompanhar o seu marido na viagem final – tudo para ela
tinha sido bem claro no dia em que desposou o zé. viveria a seu lado
para o bem e para o mal. na saúde e na doença e até que a morte os
separasse – sim. que a morte os separasse quando a velhice já não tem
remédio. não assim. ainda se estavam a conhecer. eram umas
crianças. dentro de poucos dias comemorariam o quarto ano de uma união
sagrada – que deus lhe perdoe. mas prefere estar ao lado o seu marido no
céu
5.
entretanto
o zé continuava a discutir com o seu amigo a melhor forma de resolver o
problema e. por mais voltas que dessem. rapidamente perceberam
que a única saída para aquela palermice era regressar a casa. pedir
perdão à sua mulher e esperar que ela compreendesse que esta loucura só
aconteceu porque a amava loucamente e não a suportaria perder por nada deste
mundo – assim fez. encheu-se de coragem e pôs os pés rapidamente a
caminho. quanto mais depressa resolvesse esta sua triste história mais depressa
a sua vida voltaria à normalidade – entra em casa e depara-se com o corpo da
cutilde estendido no chão da entrada do quarto – toma-a nos braços.
e em desespero. abana-a. chama pelo seu nome umas quantas vezes.
pousa o ouvido no seu coração e rapidamente percebe que a cutilde já não pertence
a este mundo – senta-se no chão e com a sua amada nos braços aperta-a contra o
seu peito e ali fica em silêncio a embalá-la como se estivesse a dormir –
revoltado com ele mesmo. percebe tarde de mais que foi a sua insegurança
que acabou por lhe roubar o seu grande amor. tinha estragado tudo e ele
era o único culpado do que acontecera
6.
entretanto
a cutilde chega ao céu e a primeira coisa que faz é perguntar ao s.
pedro onde está o seu zé. e quando não é o seu espanto quando ele lhe
diz que a morte do zé foi um embuste. infelizmente para ela o zé não
faleceu. mas pode ficar tranquila. o seu amor por ele foi altamente
recompensado. o zé ficou com a casa e o carro pagos ao banco.
para não falar nos milhares que vai receber do seguro de vida
7.
moral
da história: não acredite em tudo que lhe dizem – antes de tomar uma
overdose de pastilhas. atirar-se de um penhasco ou dar um tiro na cabeça.
verifique com os seus olhos se ninguém o aldrabou – e mais um conselho senhor
leitor. tome muito atenção à vida. na maior parte das vezes é
mesmo essa ordinária que nos engana. amámo-la e em troca faz-nos um
manguito – mas no meu caso. que sou o contador da história. aviso-vos
desde já que não tomo pastilhas. excetuando as que me aliviam o relinchar
dos bicos de papagaio – pobre cutilde
- *título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu
peito não cabem pássaros
*
albert einstein
1. morte física ou da personalidade - https://sampaiorego.blogspot.com/search?q=1.%09a+morte+f%C3%ADsica+ou+da+personalidade
2. morte emocional - https://sampaiorego.blogspot.com/search?q=2.++++a+morte+emocional
3. morte terapêutica - https://sampaiorego.blogspot.com/search?q=3.%09a+morte+terap%C3%AAutica+
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