horace pippin
escrever é um desafio perigoso.
digo eu que quase não escrevo – as palavras mergulham para um vazio quase
imenso. quase branco. quase com linhas especialmente concebidas para se
tornarem numa espécie de céu – infelizmente o quase acaba num genuíno e real
caminho para o inferno – tudo agora é ardor que arde sem se ver – enlaça a
palavra nunca lida e aconchega-a num leito peregrino como se soubesse que está
para breve o fim da ilusão – a almofada deslumbra-se. finalmente novos sonhos.
acomoda-se aos lençóis entregando-se por inteiro à luxúria do caminhante. é
agora penetrada pela loucura dos sinónimos – nem sempre as palavras dizem o que
querem dizer. a ambiguidade arrasta-se de parágrafo em parágrafo em busca do arco-celeste
– não tarda nada e tudo é papel – o momento é do peregrino e da almofada.
reflexão – gosto de palavras. são graciosas. harmoniosas. aprimoradas. as
palavras são um eu com representação em três d. – fazem abraços. alguns
apertados. para toda a vida ou até mesmo só por um dia. um dia grande e intenso
a valer uma vida inteira – há palavras que nascem com o corpo. não as aprendemos.
são nossas como são a carne que se amarra aos ossos. como são os olhos que as sentem
e as mãos que as escrevem. depois. depois basta uma almofada revigoradora.
atravancada de penas do arcanjo gabriel. e tudo se converte em esperança – todas
as palavras querem dizer coisas mesmo que não digam – há palavras que são
portas abertas. avejões que não morrem. vomitam profecias de guerra para
palavras que dizem o que dizem mesmo que insistam em dizer que não tinham
intenção de o dizer – existem quatro coisas na vida que não se recuperam: a
pedra depois de atirada; a palavra depois de proferida; a ocasião depois de
perdida e o tempo depois de passado – o que está dito está dito. nenhuma
almofada tem o poder supremo de mudar o rumo das palavras lançadas ao papel – o
dono das palavras é o peregrino e o caminho são os seus pés. o papel é o fiel
depositário – nada do que está escrito é fruto da árvore que deu papel – o
papel guarda a vida que acontece no interior do peregrino – se estás com um
livro na mão. o papel guarda. se estás com uma folha. o papel guarda. se estás
com um lenço de papel. o papel guarda. se estás com um post-it. o papel guarda.
o papel não é eterno mas as palavras quando lidas passam milagrosamente à
narrativa em primeira pessoa – eu li – sempre que lês dás a eternidade ao
peregrino – perfilam-se. armam-se. e como estratégia militar marcham sobre os
mais incautos leitores. e a narrativa em primeira pessoa cada vez mais enorme –
de palavras algemadas à carne prisão passam a palavras gaivota. livres. destemidas.
audazes. palavras com alma – nunca me canso de falar de palavras. também não
tenho mais nada para vos oferecer. são estas que realizam o meu destino – estas
palavras não temem a luz. não temem a clarividência de outros saberes. não
temem o julgamento da imperfeição. e eu. mais gaivota sou. cada vez mais
narrativa em primeira pessoa
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