pintura - rafael pintos
I.
há um dia em que despertamos e dizemos: já tive o bastante desta vida – e ali ficamos enrodilhados. num estado vegetal. meio a dormir. meio acordado. acomodado em lençol que já não é branco nem tem cor. nem é comprido. nem curto o suficiente para me acabar com esta pré-existência para a vida – revolvo-me no lençol e enrodilho-me comigo – recuso-me a abrir os olhos – sinto aquele pano enorme por inteiro. não sei a origem do tecido nem como foi feito. sei que me começa nos pés. depois. depois sobe até me esconder do insuportável. escorado numa moral categórica: o que está errado. errado está – as leis científicas são universais. enquanto as leis da moral são unicamente do meu lençol. um lençol bipolar. extremado. inflexível. às vezes leve porque me deixa levitar acima do que na realidade sou – revolvo-me. o lençol também. arrasta-se comigo de um lado para o outro. numa transparência que me permite rever com crueldade o que teimosamente quero esconder de mim – há coisas que não param de doer. nem com o tempo – gostava de perder este apego ao mundo. juro. juro que gostava – obrigava-me então a dormir sem roupa. sem nada que me revestisse o corpo de uma pele que não é minha. uma pele que se fez diabólica. cruel. desumana porque se está nas tintas para as teorias de kant – é um lençol. como direi. é um lençol que me cobre do mundo e me destapa de mim – debaixo dele sou solidão dorida. sou um eu fragilizado. agrilhoado a silêncio cruel – enrodilho-me então mais uma vez e auto-comunico. protesto. bato-me pela razão. enraiveço. juro justiça. vingança. sou cru. mau. bárbaro e de dedo em riste ameaço. julgo e condeno – é esta a forma de perdão que encontrei para dar repouso à moral kantiana: agir de acordo com a minha vontade para que as minhas ações se transformem válidas para todos – sei agora que a perfeição não existe. o ótimo é inimigo do bom – nem sou ótimo. nem bom. sou uma equação com um número interminável de soluções aproximadas – corre-me então um suor estranho pelo corpo. que não se apega a nada. esguio. desvairado. como se quisesse fugir da pele. assim como quem vai dizendo em forma de alerta: cuidado. o pior ainda está por aí a chegar – talvez este suor nojento saiba algum segredo do meu interior profundo. talvez – há dias em que despertamos e dizemos: já tive o bastante desta vida – desperto. não abro os olhos. estão inchados. enquanto o cabelo se arrepia em direção ao céu. os fantasmas não o largam. cara amarrotada de insónias. mau hálito. boca empalhada de fel. e aquele cheiro a putrefação dos sonhos mortos. mortos aos milhares. degolados. privados para sempre da ilusão – nenhum homem consegue sobreviver sem sonhos. nenhum homem – por cada volta nos lençóis mais um pedaço da vida para experienciar. em voltas que nada mudam e que magoam cada vez mais numa tortura que atormenta mais do que chicote – e o corpo a dobrar numa moral que me foi vendida como elixir de sucesso – mas não. o mundo mudou e eu também. estou mais antigo. mais sem forças. agora há mais um joelho a dobrar. e depois dobro o corpo. de seguida chegam as mãos com o peito e por último os olhos. tristes. apagados. agonizados. desocupados. a teimar com a luz. encovam-se numa omissão de meter medo. dissimulam-se em morte. impingem-se ao escuro numa graça de quem sabe que a morte é feita apenas de ausência – na escuridão é sempre mais difícil demonstrar que o corpo ainda quer viver – enrodilho-me noutra volta. uma perna no passado enquanto a outra pede caminho. pede angústia. dor. mutilação. só caminhando se faz passado – todo o meu futuro se faz de um presente que não controlo – revolvo-me. por cada volta chega a certeza que já nada existe dentro de mim que valha a pena acreditar. a fé morreu primeiro do que o corpo – resta-me um desejo carrasco de me desapegar da vida –
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parte II - em breve
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