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dezembro de 2012 – chove copiosamente na minha cidade. braga. mais propriamente na sua sala de visitas. avenida central – estou agora na livraria centésima página e tenho
a honra de vos anunciar de que o antónio lobo antunes é muito mais bonito ao
vivo do que nas contracapas dos seus livros –
entrou na livraria assim
como um cowboy entra no saloon. passo
certo. acelerado. ritmado. sem desviar
os olhos do infindável destino: uma cadeira
e uma mesa rasca decorada com uma garrafa de água – visita a minha cidade para uma sessão de autógrafos a propósito do seu novo
romance: “não é meia-noite quem quer”
– o silêncio foi-se arrumando pela sala conforme as cadeiras se ocupavam – os
seus admiradores miravam-no de soslaio.
como se tivessem pavor de olhar de frente o seu ídolo. talvez com receio de que a todo o momento ele perguntasse: -- está a olhar para onde amigo? toca
a andar. desocupe-me o espaço – sempre
foi de conhecimento público o seu mau feitio. coisa de nascença. sorrisos
só mesmo para o que lhe interessava. já nessa altura a sua mãe reclamava: -- só tens interesse pelas raparigas
e pela escrita. ao qual lhe
respondia: -- há mais alguma coisa? por
isso não é de estranhar o seu afastamento seletivo do resto do mundo. nunca foi muito dado a intimidades
com o seus leitores. para não falar
da fama de aterrorizar os entrevistadores.
como o próprio diz: “não [me] é
fácil viver comigo” – sentado. inquieto. ajeitou o corpo. fletiu as pernas.
atirou os olhos para o nada e ausentou-se do mundo que o rodeava. assim como quem diz: usem o meu corpo mas não abusem da minha
paciência – estou convencido de que para lobo antunes a sala naquele momento encontrava-se
vazia. presente só mesmo ele e os
livros interrompidos nas prateleiras – e ali ficou sentado. a remoer o ossos. de
um lado para outro. como se tivesse
bichos carpinteiros. enquanto as
mãos trabalhadas descansavam em cima da mesa. sabiam que a todo o momento eram obrigadas a dar início a mais
uma palestra – o sr. antónio fala muito com as mãos – o momento era particular
para mim. pela primeira vez tinha o
autor em carne e osso ao pé de mim. nos
livros já o tinha tido por perto muitas vezes. agora é diferente. agora
posso senti-lo num único aroma – o
momento não era fácil para mim. sentia-me
nervoso. agitado. impaciente por ver o
tempo passar sem que se desse início à cerimónia – não havia alternativa. tinha que aguentar firme. afinal este é um dia único. um
dia especial para os seus admiradores. até os livros interrompidos nas
prateleiras me pareciam engalanados de atenções. bonitos. com as capas
a reluzir. tudo edições raras e de autores
consagrados. em destaque a nossa
maior obra poética. os lusíadas. ao seu lado a sophia andresen. como era bonita esta mulher. só a sua escrita lhe ultrapassa os
encantos. e logo de seguida o meu
adorado júlio dinis. quantas vezes
chorei nos seus livros. marcou-me a
vida para sempre. ao seu lado o eça. sempre empoleirado no crime do padre
amaro. que loucura de história. o júlio não podia ter melhor companhia. seguem-se os poemas do eugénio. na
sua sensibilidade. como se pode
dizer tanto com tão poucas palavras.
e mais o camilo com aquele bigode inconfundível. e o saramago empoleirado no nobel. meu deus que loucura. que
honra. olha! mais um que um dia vai
dar que falar. o josé luís peixoto. gosto deste homem. já brilha. e tantos. tantos outros. aos magotes – dos estrangeiros
não falo. afinal estamos na pátria
de camões e não é todos os dias que uma pequena livraria recebe em sua casa um
galardoado com o nobel latino – o cenário era nobre. gracioso. não podia
ser melhor. o maior escritor português
vivo rodeado de livros por todos os lados – escondi-me na segunda fila tentando
passar a ideia de que estava por ali apenas pelo mau tempo. chovia. passava à
porta e pensei: ai está um local
agradável para me abrigar da intempérie.
“voilá” – nunca gostei de estar na primeira fila
– certo dia contaram-me uma história curiosa sobre a entrada em cena dos
actores: dizem que quando sobem ao palco
tentam perceber que tipo de público está na sua presença. dão dois passos em frente.
dobram-se em vénia. e colocam os
olhos na primeira fila. conforme
levantam o corpo. em movimento lento. olham para as últimas três ou quatro
filas. o que sobra é povo – aí está
o dia perfeito para confirmar a teoria.
espero bem que não me tenham aldrabado e que o sr. antónio me considere parte
desse povo. sentei-me na segunda
fila – abriu-se a sessão com a intervenção do
responsável pela editora com amabilidades perfeitamente dispensáveis – mas o
protocolo é para cumprir. felizmente
logo perceberam que o melhor era entregar a palavra ao convidado – começou a
roçar o corpo na cadeira de um lado para o outro enquanto as palavras começavam
a sair a custo. um gaguejo tranquilo
para ali e logo outro para acolá.
depois. um silêncio que parecia uma
eternidade. e tudo num vagar de
assustar. e lá chegava outra palavra. outra ideia. e os fãs a baloiçar na entrega. e mais uma palavra. e
mais um silêncio e as dúvidas a crescer na plateia: será que o homem quer mesmo falar para estes pacóvios? e o emudecimento
a ganhar distancia. as palavras cada
vez mais espaçadas – o silêncio crescia atabalhoadamente sendo apenas abafado
pelo barulho da chuva no exterior.
chove a cântaros na minha cidade – só não chovem palavras – por momentos fiquei
convencido de que o autor iria sair como entrou: a galope e aos tiros para o ar. os cowboys são assim – não quis saber. e disse para mim mesmo.
se não falar com a boca fico-lhe com os gestos. com os olhos. com os
tiques. com a cor das mãos. da pele. afinal não é todos os dias que tenho o antónio lobo antunes na minha
cidade – mas aos poucos as palavras começaram a cair-lhe da boca. como se descobrissem que estava na
hora de tomar a plateia – e eu ali. estarrecido
de medo. babado. doido para não perder uma única silaba. com a cabeça dobrada para a frente. todos queriam ser os primeiros a agarrar as palavras. e os olhos esbugalhados de tanta
excitação e por dentro uma sensação de orgasmo. quente. com o coração
a bater um tic tac explosivo. um
contentamento estranho. louco. maravilhado. e a pergunta. porque
não fiquei na primeira fila – e ali estava eu com o meu corpo estátua. completamente paralisado. perdido entre a imortalidade dos
deuses e a gratidão eterna por existir aquele momento – só os olhos lhe acompanham
as mãos. tudo o resto é paralisia. não se pode irritar os deuses – enquanto
a chuva amainava as palavras caíam-lhe da boca em enxurrada. afinal havia uma razão para o mau tempo na minha cidade –
finalmente tínhamos lobo antunes. o
corpo atirou-se definitivamente para cima da mesa. estava agora ainda mais perto de mim e eu sem medo de o olhar
naqueles olhos translúcidos. livres. bonitos. amenos. feitos de um silêncio-solidão-doce
– só quem fala conhece o verdadeiro valor da palavra – os lábios sem descanso. falavam agora desconcertadamente. contorciam-se de prazer. numa cadência harmoniosa. com paixão. com gosto. com ternura. com entrega. agradecidos ao momento – a vida é feita de momentos. alguns ficam guardados para sempre. outros. nunca se fazem palavra – e não se cala. e a voz em inflexões subtis alerta: deitem atenção que esta parte é importante. e os afetos finalmente ali.
ali à minha frente. a tocarem-me por
dentro. e pela primeira vez senti um
sofrimento que dói mas não é dor. é um
desconforto feliz. uma vontade de
chorar por não lhe poder dizer: eu
já senti isso. eu já passei por isso. eu já fui assim. eu já quis escrever isso.
afinal também é um de nós – e eu pensei que era extraterrestre – finalmente
senti um silêncio bom. pacato. sereno. a plateia em ar de graça entregou-se ao autor sem medo – havia
uma espécie de bonança. a tempestade
perdeu toda a sua força e os sorrisos do autor estavam sem dono. eu guardei um só para mim – é enorme a porra deste homem e eu ali de braços
cruzados. a olhar para tudo que é
dele. com um ar sério-doce. sério-aceitação. sério-bondade. sério-fraternal. amigo. camarada. sério-triste
também. até o casaco estava triste. pingado. amarrotado. talvez da vida. não sei. que mais
poderia fazer pingar um casaco de um homem tão especial. não creio que não tivesse outro casaco. acredito é que todos os casacos quando lhe caem nos ombros ficam
pingados. possivelmente pelo peso
das palavras que transporta com ele –
[tenho o sentimento de que
neste texto ainda falta mais um prego.
enorme. capaz de segurar o prosista]
brevemente a parte III
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