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I.
na hora da conclusão do trabalho nunca pode faltar
martelo e prego – o mestre ganha distância da obra. fecha um olho. inclina a
cabeça para um lado. mira. de seguida repete o gesto para o lado oposto. mira
novamente. arreguila os olhos. finca os pés. aponta o prego. ajusta os dedos em
pressão. atira o braço para trás. ganha balanço e espaço e… zás. duas
marteladas certeiras e a consciência em paz:
venha daí um terramoto que daqui não abala para mais lado nenhum – sou
livro. agora e para sempre – acredito que o antónio lobo antunes nos retoques
finais dos seus livros também sinta
necessidade de pregar sempre mais um prego – se o antónio fosse engraxador daria aquele remate
final de lustro: aquele movimento de arvorar o pano tingido de graxa. ora vai
para um lado. ora vai para o outro. ora mais depressa. ora mais devagar para
aniquilar o bacilo anti brilho. e agora um movimento circular. e o pano a
enrodilhar-se num círculo cada vez mais estreito e tudo de volta ao começo com
as mãos a puxar o pano para um lado e para o outro e nos intervalos deste vai e
vem um lance de génio e o pano a subir
em diagonal. como se fosse uma montanha russa e de seguida uma queda abrupta.
em força. e o barulho do pano a estalar no couro. trás. trás. trás – nos olhos
um prazer que nunca percebi de onde vinha se do movimento enérgico do braço ou
do barulho do pano a estatelar-se no brilho do sapato – o que seria do brilho
do sapato sem aquele estalar do couro – e
no final. quando os pés se acercavam do chão os olhos afundavam-se nos sapatos. lindos.
como se voltassem a novos. quase jurava que me via no seu reflexo – mas o
antónio diz que é um carpinteiro e sendo assim. só pode mesmo cravar uns pregos
para ter a certeza de que a sua obra ficará para a eternidade – no caso do sr.
antónio. que é um escritor enorme. do tamanho de uma biblioteca. creio que lhe baste
um pequeníssimo prego. uma taxinha finíssima. quase invisível para ter a
certeza. mais uma vez. de que a sua obra perdurará para todo o sempre – este
homem é especial. ele não escreve. ele entrega-nos as palavras ao ouvido. como
se estivesse a falar apenas para nós – como explicar – assim tipo uma conversa
tu cá. tu lá. de braço dado. num tom de voz tão sereno que mais se aprece um sussurro
entre amigos de cangosta – e o eco das palavras a percorrer o ouvido como uma
delicadeza fascinante. e o corpo arrepiado com tanta amabilidade. mel.
graciosidade e por dentro uma sensação de conforto. de aconchego. a fazer bem.
a dar luz a umas quantas incoerências – e
repete. e repete. e repete. e o ouvido sempre à procura de mais delicadeza. de
mais conforto. de mais tranquilidade. com uma atenção que desconhecia para as palavras
escritas. e a repetição no ouvido sem parar a embalar o corpo para uma paz que
me aperta com carinho – sou um apaixonado pelas crónicas do sr. antónio. para
cada um dos seus textos. um milhão de perguntas por lhe fazer: como se lembrou de escrever essa
coisa? – o sr. antónio diz que foi por dinheiro. a pedido de um jornal. e que
até nem lhe tinha grande amor – bendito jornal – eu amo as suas crónicas.
fazem-me bem. distraem-me. fico assim um pouco como a sua tia velhota que
quando lhe perguntavam porque não tinha TV lhe respondia: quando fecho os olhos vejo tanta coisa – poi eu estou igual.
quando fecho o seu livro de crónicas também passo a ver tanta coisa – mas
quando caio em mim novamente sou invadido por uma realidade danada – levo um
soco no ego. caio para o lado atordoado. e à cabeça o raio de uma pergunta: não sei como tenho coragem de
escrever
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