gustavo rosa
é
noite. vagueio. vagueio em ruas que aos poucos se fizeram minhas – vagueio
porque é noite escura e sei que depois de uma noite escura nasce a luz e com a
luz renasce a esperança e sempre que há esperança os “pássaros de ruy belo
voltam a nascer nas pontas das árvores” – é noite. é março. e é inverno em todo
o mundo e em mim também. as noites estão cada vez mais escuras e eu sem saber o
que fazer a tanta imensidão de negro – é noite. vagueio. vagueio porque o corpo
continua a mendigar fé. a suplicar luz e esta só chega quando as manhãs brilham
com o canto dos pássaros – com a escuridão não se veem as árvores e sem árvores
não há pássaros e sem pássaros “as árvores não cantam” e a primavera não nasce
– o que faz um homem sem primavera? não sei. sei que “amo as árvores
principalmente as que dão pássaros” – pergunto. que é feito das minhas árvores e
dos meus pássaros? calaram-se como se me cala o coração – dizei-me vós senhor
que sois dono de todas as coisas do mundo. dizei-me porque me roubaram as
árvores. dizei-me uma palavra e sei que serei salvo – e agora senhor em que
mundo cantam os meus pássaros? em que mundo senhor? – se na noite o silêncio me
cura. a luz que me entregas faz-me morrer como morrem os dias de inverno:
frios. escuros. sozinhos e sem um único pássaro – deixa-me poisar na noite como
se fosse um pássaro e quando te encheres de mim deixa-me cair nos teus braços.
pois tu sabes. tal “como pássaros. poisam as folhas na terra quando o outono
desce veladamente sobre os campos” – vagueio triste. desgostoso e amargurado.
vagueio comigo. sozinho. com o passado num relógio a bater termo e a vida
escorrer-se devagarinho. segundo a segundo. olho-me para matar saudade e não me
encontro. já não me lembro de mim. tenho saudades de ouvir os meus pássaros.
acordar com o doce sabor da primavera mesmo que os campos se cobram de medo e
geada – não quero morrer longe de mim. não me posso esquecer das minhas
gaivotas e de todas as árvores que dão pássaros. não posso. ainda necessito de
saber “quem é que lá os pendura nos ramos? e de quem é a mão. a inúmera mão?” –
e o corpo parado em março como se fosse outono a anunciar inverno. e nem um
único pássaro a nascer neste mês de morte e primavera – as árvores sem pássaros
é silêncio que mata – só este meu abandono me ocupa com coisas que não servem
para nada – imobilizo-me para ouvir o que não digo. o coração bate. ouço-o.
ouço-o para saber que existo. e ele bate para se fazer sentir no mundo – não
existe mais nada entre nós a não ser o bater estardalhado do coração e o
silêncio do corpo. estamos sozinhos e o mundo abandonado de tudo que é meu –
“gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores” tal como eu emano do
nome com que me batizaram – faço de conta de que não estou onde estou. sorrio
secretamente. trinco os lábios enquanto o corpo se mutila num futuro que
começou no dia anterior e encolho-me até que o corpo volte à posição fetal.
escondo-me dentro de mim porque fora já nada existe – até os pássaros de ruy
belo partiram. foram ter com o poeta – perdoai-me senhor. perdoai-me se não
encontrei no corpo os desígnios da tua palavra. perdoai-me por não nascerem
pássaros nas minhas árvores. mas sabes. não sou poeta e só os poetas são
capazes de domar as árvores. só os poetas sabem falar com os pássaros e só “os
pássaros fazem cantar as árvores” eu não sou nada. não tenho árvores que dão
pássaros. não tenho nada além do que sobra de mim que não é nada – “eu [apenas]
amo as árvores. principalmente as que dão pássaros”
este
texto faz referência a algumas proposições com pássaros e árvores do poeta ruy
belo e estão devidamente identificadas no texto
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