ron mueck
encosto o corpo à cadeira.
recolho-me num escritório esgotado de reboliço. retiro as concordâncias para o
lado. fecho o word e olho a janela com a sensação de dever cumprido – dou o que
tenho e o que não tenho por cada palavra e quem assim o faz a mais não é
obrigado – a noite anuncia para breve a chegada do dia. as estrelas estão em
debandada. o escuro já não é um escuro de meter medo e os demónios fogem a sete
pés para as catacumbas – reconforto-me numa poltrona que é só minha. o tempo
cavou-lhe o esboço do corpo. acerto-me. encaixo na perfeição e procuro
arredar-me do que resta da noite. engulo duas golfadas de ar. desimpeço-me na
desarrumação mental e livro-me do corpo – por fim. livre de todas as malapatas
emito um último pedido em banda divina: encomendo aos meus guias espirituais
dois ou três sonhos felizes – quando encontrar esse sono afortunado terei então
oportunidade de descansar da vida retratando a morte: sossego absoluto – viver
é uma barulheira infernal – sentado e sem corpo. coloco os olhos no parapeito
da janela e ordeno-lhes num semblante autoritário: façam o favor de me trazer
ao corpo os primeiros raios de luz da manhã – ninguém consegue dormir em
silêncio sem pelo menos um raio de luz dentro do corpo – esta não é uma manhã
qualquer. é a manhã que traz a primavera. a estação das flores. dos pássaros.
das frutas. dos sorrisos em dias grandes. dos namorados encantados com os
ninhos das andorinhas. das amizades leais. dos abraços entre pais e filhos. da
esperança. da fartura e do conseguimento do corpo para apreender que a vida
depende de um raio de sol – com a primavera esqueço que o março é madrasto.
esqueço a saudade do meu pai e também esqueço a saudade que tenho de mim –
tenho tantas saudades de mim – cresci em demasia. nunca deveria ter crescido.
nunca me devia ter desfeito daqueles calções com suspensórios. da bola de couro
e aquele chapeuzinho redondo com que um dia atravessei o rio minho no colo de
minha mãe. do cheiro a terra na minha aldeia ou do reboliço na minha cidade com
a feira semanal – cresci. cresci mas não esqueço a minha rua. o mercado. os
camiões da fruta a chegar e os carrejões sujos como áfrica a carregar as
primeiras uvas do algarve – não esqueço as tendas a vender coisas e coisinhas e
aquela gente de preto. mal vestida. suja por fora. limpíssima por dentro e o
bom dia numa vénia humilde. límpida. de gente boa. gente do meu chão que
carregava à cabeça sorrisos de encantar. simples. bonitos. agradecidos a cada
raio de sol mesmo quando a boca se fechava de fome – nunca deveria ter
crescido. era um miúdo feliz. bonito por dentro e por fora. gostava da minha
escola com os seus catraios esfarrapados. pobres como jó e eu a comer pão com
marmelada e eles especados. com os olhos a afoguear necessidade e eu de bata
azul às riscas a imaginar o mundo do tamanho do recreio da escola. raparigas de
um lado. nós do outro e a professora a meio. alta num corpo de mulher perfeita.
bata branca. como se tivesse vinda do céu. linda. com as mãos a cheirar a
alecrim e a boca cheia de letras e números – e assim aprendi a ler. os olhos
grandes de alegria e o a. e. i. o. u desenhado na perfeição num caderno de duas
linhas que nunca se cruzavam – o mundo cabia-me tudinho nos olhos. os sinos
batiam as horas certas e o carteiro nunca tocava duas vezes. gostava de viver e
gostava de falar com deus – mas cresci. e agora estou enorme. numa cadeira
maior do que eu. com umas mãos que não sabem escrever em cadernos sem linhas – agora
já não há magia. nem hora para o recreio e deus deixou de falar comigo.
roubou-me a professora – estou cansado de mim. o sol nasce todos os dias da
mesma forma. sem anunciar o imprevisível. a inocência. a esperança
incondicional ou a teimosia. é um sol amorfo. batoteiro. sem aquele calor que
queimava mas não trilhava e sem aquela vontade ingénua de arrastar o corpo para
um imenso que afinal nunca descobri – aqui estou nesta primavera que já não
aprovo como minha. a apontar para dentro do corpo perdido de quase tudo. a
olhar o passado como se tudo em mim cheirasse a defunto. imóvel. sem uma única
palavra da minha escola. com a linha do sorriso a cair do queixo e os olhos
emudecidos seguram as pernas para não saírem a correr pela desgraça – que
saudades tenho do pão com marmelada. que saudades tenho de mim – olho-me de
cima a baixo. junto ao corpo uma pistola imaginária pronta a disparar contra o
que resta do meu nome. e o dedo a tremer. disparo? não disparo? – onde anda a
minha professora? onde anda a minha tabuada? tanta reguada para nada – agora as
máquinas fazem as contas de uma vida num segundo – um segundo que nunca terá a
magia da minha professora. uma máquina nunca será alta. bonita. nem nunca virá
do céu. nunca. talvez do inferno. porque tudo à minha volta é máquina e tudo é
um inferno – mas não é a mesma coisa. as máquinas não cantam a tabuada. fazem
as contas. mas não cantam. nem sabem o valor de um pão com marmelada e muito
menos do que é ter uma professora dentro de um caderno de duas linhas – estou
triste. amargurado. abril trouxe-me ao mundo e o mundo é demasiadamente belo
para tanta tristeza dentro de mim – nunca sabemos quando vai ser a nossa última
manhã. mas também não importa. hoje tenho este dia para viver e vou amarrá-lo
ao corpo como se ainda usasse calções e a bola rolasse de pé em pé. os amigos a deitar passos para escolher a
equipa do maior para o mais pequeno e o jogo a mudar aos oito e acabar com
oitenta primaveras. para todos – brevemente será abril. o mês que me trouxe à
vida enrodilhou-me num trapo e ali fiquei para crescer. escondido de mim e de
todas as palavras do mundo – é nas noites de abril que resisto aos intervalos
do coração a bater. resisto em silêncio para que a magia volte a romper num
amanhecer e me traga pelo menos um raio de sol inocente. porque em cada raio de
sol vive uma gaivota e em cada gaivota um vento sul aberto a abril – sei que um
dia levarei comigo todos os amanheceres de abril – mas resisto. resisto
amarrado a um raio de sol. de primavera. de abril
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