quarta-feira.
estou cansado da idade. todos os
dias mais velho. todos os dia a
andar para a frente. para a frente
do fim. do fim do papel. do lápis. dos leitores. dos
amigos. dos filhos. da minha maria joão e desta vontade de vos falar
escrevendo – hoje. dezoito de abril
de dois mil e dezoito. mais uma vez
vestido de meio cowboy. estou na escola
gulbenkian num carnaval de catraios e fantasias – o mundo completamente perfeito. mascarado de alegria. intenso
nos sorrisos e nas notas de um piano de cauda que continua a tocar mesmo que hoje
nada se ouça – e eu parado na foto.
como se não houvesse tempo entre aquele dia e o dia de hoje – viajo: os mesmos olhos negros. o mesmo jeito do corpo. as mesmas mãos caídas como se
adivinhassem o que estava para vir e um silêncio secreto na boca que ainda
hoje continua a lacerar – e eu ali de pé.
estático. sem medo que a foto me
roube a alma. a respirar o presente
porque o futuro só aparece quando o corpo cresce – pelo chão. às cores. raspas de papel em alegria contorcem-se num alvoroço descontrolado
e invadem o corpo num sorriso tímido e inocente – na foto todo o caminho está suspenso no tempo e num lenço ao
pescoço. vermelho vivo. da cor do sangue… e no peito. do
lado contrário ao coração a estrela dos justos: sou xerife – e assim fiquei.
xerife de mim para toda a vida – nesse dia.
distante. era um cowboy meio
escangalhado. o dinheiro era caro e
a minha mãe entendeu que meia fardeta já seria suficiente para sair aos tiros
pela vida fora – não me tornei num homem sem lei. nem andei fugido à justiça.
saí a correr comigo e acabei aqui. defronte
a este papel que é metade desabafo e outra metade sentença – a vida puniu-me
devagarinho para não ser muito
injusta. roubou-me um dia de cada
vez. com malvadez. numa morte assistida de que sou o
único responsável. eu e o destino
escondido na foto – nada podemos fazer contra o destino – envelheci. perdi aqueles olhos negros-inocentes carregados de futuro e caminho e
desatei a fugir da fotografia – a vida é imperfeita e talvez por isso sobrevive
neste mundo imprevisível – atirei-me ao destino e magoei-me. atirei-me à verdade e desiludi-me. atirei-me à injustiça e cansei-me e atirei-me às palavras e nunca
mais fui justo comigo – com o tempo
fui perdendo tudo. primeiro a
estrela. depois o lenço. de seguida o colete e o chapéu e por
último a pistola. e lá se foram os
sonhos que estavam dentro das balas – quando dei conta já não estava no
carnaval e o mundo já não disfarçava a tristeza – o tempo no meu caso serviu
apenas para medir a distância entre a esperança e a morte. não digo a morte física mas a morte dos sonhos que se realizam com
um tempo que sabes já não ter – um homem sem sonhos não tem noites e sem noites
não há manhãs – o fim da vida acontecerá com o fim das minhas coisas escritas –
vivemos a fazer coisas. algumas coisas
sem nenhuma utilidade. outras. só são relevantes porque nos permitem
caminhar como caminham os homens e por fim.
as coisas que realmente nos dão dimensão temporal e que nos fazem existir como
existem as lágrimas e a saudade: a
família. os amigos do coração. os abraços que entregamos. adoro abraçar. os afetos trocados. adoro
afetos. e as fotos onde aparecemos a
rir e a sonhar – são estas fotos que me obrigam a viver mesmo que os sonhos já não
passem de curtas metragens – aqui estou.
dezoito de abril de dois mil e dezoito. a
respirar calmamente. mãos caídas e
os olhos negro-saudade a imaginar a vida depois da minha última foto
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