pintura - willian michael harmett
um
dia serei livro mesmo que não seja o dia mundial do livro – mas enquanto não
sou livro. enquanto a lombada não se enche de mim. enquanto não engendro o
título e o prefácio se faz e desfaz. numero os dias que escrevo como se em cada
momento me escorresse pelo braço a espada de salomão – e tudo feito numa
palavra-silêncio reles. tão reles como o artista. tão podre como poeta. tão
chula como o sujeito [poético] que escreve o que mata e mata com o que escreve
– o livro cheio de coisas que pode ser nada ou pode ser tudo o que um homem tem
para sobreviver à morte – um dia serei capa. com letras enormes. redondas.
pintadas a ouro e alinhadas numa estética pró venda. mágica. a ilustrar o que
não é – do outro lado a contra capa. envergonhada por encerrar
tudo que é livro. diz apenas o que o autor manda dizer – e o que está para lá
da capa a falar baixinho. tão baixinho que só os pássaros de ruy belo sabem
pousar nas entrelinhas de um livro fechado: um dia todo o livro terá a hora da
morte assinalada como efeméride apoteótica [quase sempre morre o livro antes do
autor] – para o escritor um livro é punhal encostado ao batimento da mão que
escreve. é sofrimento e paixão. raiva e sossego. é vida feita palavra tantas
vezes incompreendida. rejeitada. ostracizada e deportada para uma ilha sem
olhos – bonita ou feia toda a palavra sozinha é inútil. mas cem palavras. cem
palavras a falarem de si. fazem alimento para uma multidão – um livro é mais do
que uma vida. é a vida de quem lê – hoje é o dia do livro e eu sem parir porra
de livro nenhum – juro que um dia terei um livro só meu e os sinos baterão ao
nome do seu criador: aleluia. aleluia. salvação e ressurreição às metáforas
porque as portas do céu abriram-se ao inferno da vida – não importa quantos
páginas se prendem à lombada. não. o que importa é que será para sempre um
livro do mundo. mesmo sem ser mundial – todo o livro encerra dentro de si um
mundo. o do seu criador – mas o meu livro. que será o livro da minha vida por não
ter outra para escrever. será também vil. ordinário. será fodido. mas também
será verdadeiro. guardará tudo o que presta como o que não presta – o meu livro
será injusto. muito injusto e justo também. será fel e mel e terá letras
direitas com tudo que nasceu torto dentro de mim – será raiva. será de gente
que ainda vive e de outra gente que por não estar viva já partiu sem saber ler
nem escrever – no meu livro. aqueles que o lerem encontrarão o que não procuram
e descobrirão que o certo será quase sempre incerto – um dia serei livro mesmo
que não seja o dia mundial do livro. ou do poeta egocêntrico ou mesmo de um
escritor que nunca soube escrever e escreve. como aquele que não sabendo ler
folheia página a página a história que vive na ponta dos seus dedos – um dia.
mesmo que não seja o dia do livro. pode ser até a merda de um dia qualquer.
serei livro contra a vontade do sonho e por cada página escrita entregarei um
grito de clemência e tolerância – nesse dia serei o que o livro quiser. vontade
e ilusão. vontade e nada ou nada de nada e serei também o que cada um souber
ler – um dia. no meu livro. serei mesmo só o que quiserem que seja e se não
quiserem... também nada serei para além do livro que sou
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