pintura - dyanne
[o autocarro só passa uma vez à
nossa porta]
depois de
uma determinada idade perder o que quer que seja é um aborrecimento e. em meu entender. deve sempre merecer a nossa melhor atenção e reflexão. se essa perda se tratar de pessoas
que prezamos – podemos perder a carteira por descuido. o cartão de crédito por tontice. o carro gamado por um meliante sem escrúpulos ou a pantufa para a boca do nosso fiel amigo – todas estas coisas
se podem recuperar ou em último recurso redimensionar para baixo os danos da
perda – é hábito dizer que só a morte não tem solução. e é verdade – mas há uma coisa que já não dá mais para perder. falo de amigos ou mesmo apenas de pessoas
que estimávamos e que. com as suas
diferenças. nos ajudavam a manter a
nossa saúde mental e principalmente.
lustram emocionalmente a nossa passagem terrena – o que seria de nós sem amigos
– mas já todos perdemos um amigo. creio
que são poucos aqueles que nunca tiveram uma desilusão com alguém que estimavam
– eu não sou diferente. já perdi
amigos e confesso-vos que não foi nada fácil – mas são estas perdas que nos
fazem valorizar aquelas que resistem ao tempo. com diferenças. com
brigas e com a nossa constante adaptação ao tempo que gastamos. o envelhecimento – como diz o ditado
popular os amigos veem-se no hospital e na cadeia – por mais teorias. juras. abraços. boas palavras
e sorrisos de orelha a orelha só saberemos o valor de uma amizade depois de
testada – é nos momentos menos bons que ficamos a saber quem realmente está
connosco e dá o corpo às balas – e não raramente temos surpresas. os que pensávamos estarem connosco
são os primeiros a abandonar o barco.
e quando olhamos para o lado somos surpreendidos com a presença de alguém que
não imaginávamos ser possível estar ao nosso pé a segurar as pontas – o que
acontece é que as amizades mais antigas.
fruto dos anos. acabam por cair numa
rotina impostora – isto é. fruto de
um conhecimento adquirido ao longo do tempo acabamos por nos desviar de nós
para agradar exclusivamente aos nossos amigos – os amigos fazem o mesmo e tudo
parece perfeito até que um dia a faísca acontece. a combustão lenta mina a tolerância e a lealdade. os laços desfazem-se e quando ninguém
espera dá-se a explosão – lá se foram dezenas de anos por água abaixo – no
passado raramente demonstrava interesse por conquistar novas amizades. achava sempre que já tinha amigos
suficientes – com o tempo passei a dar mais oportunidades às amizades recentes. surgem numa fase da vida em que
estamos mais sábios e mais competentes para ver além do papel embrulho – geralmente. estas novas amizades. acontecem já fruto de uma comunhão de
interesses. se gostamos de futebol fazemos
esse novo amigo num jogo de casados e solteiros. se gostamos de pesca fazemos o amigo a vender o seu espólio na
lota e por aí adiante – são momentos fantásticos. o mundo parece-nos perfeito e estamos-lhe grato pela sua imprevisibilidade – com milhões de hipóteses para o desencontro e contra todas as estatísticas a
equação deu erro e o encontro aconteceu quando menos esperávamos – e dizemos os
dois: olha a sorte que tivemos. quem havia de dizer que nos
haveríamos de conhecer neste lugar – e é assim mesmo. quem haveria de dizer.
ninguém. mas aconteceu e estamos
todos muito felizes por habitar o planeta terra – olhamos em frente e passamos
a acreditar no destino: estava
escrito nas estrelas. ainda bem que
assim foi. estamos agradecidos por
fazerem parte da nossa vida – finalmente podemos arrasar com a teoria de que é
necessário andarmos todos na escola para construir um relacionamento de amigo
verdadeiro baseada no respeito mútuo.
na verdade. na cumplicidade e na
lealdade – mas com a idade. e apesar
de toda a sapiência adquirida ao longo da vida. perder uma amizade levanta outros problemas: a vida começa a escassear e pode cair por terra aquela velha
máxima de que o tempo coloca tudo no seu lugar – pode muito bem não colocar já
coisa nenhuma e não coloca só por falta de tempo. não coloca também por falta de paciência. já não há força e muito menos a ingenuidade e perseverança da
juventude – o corpo está cansado e a
mente já não tem flexibilidade ou disposição para grandes reflexões sobre o que
está certo ou errado. o que pode ser
desculpado e o que não tem desculpa – as atenuantes para o erro. ou para o perdão cristão. já não são levados em conta. não porque não haja atenuantes ou por
não querermos perdoar e desejarmos até um mal maior em forma de pena
compensatória. não. o problema não é esse. é bem mais simples do que se possa
imaginar – em boa verdade. há apenas
o desejo de uma nova vida. um
recomeço. os limites para a
tolerância alteram-se e já não há pachorra para aceitar mais do mesmo. oferecer a outra face está definitivamente
fora de hipótese e que se lixe o caminho para o céu – que se dane o paraíso. o preço da entrada é demasiado alto –
dobramos a curva da tolerância.
deixamos de a ver. e não fazemos
conta de voltar para trás para a recuperar – já não dá. estamos esgotados e sem forças para compreender os outros –
chegou a hora de nos compreenderem.
e principalmente. de nos aceitarmos
exatamente como somos – já não dá para fazer fretes – recordo aqui uma frase de
clarice lispector que no meu entender resume bem a perigosidade de conceder… “Até
cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito
que sustenta nosso edifício inteiro.” – já entrei naquele estágio da vida em
que pago para não ter aborrecimentos e.
sobretudo. não ter que aturar cromos
– nem tudo na idade é mau. nestas
coisas de gerenciar relações a idade é um posto e quando deixamos para trás
qualquer coisa já não há volta a dar – se no passado era um problema que nos
tirava o sono. ficávamos tristes. os dias confundiam-se com a noite. a comida não passava. os cigarros acumulavam-se na boca e a
vontade de dar dois murros no culpado eram substituídos por um murro numa porta
e os dedos é que pagavam com um inchaço durante oito dias – ficávamos para
morrer. e não havia forma de acabar
com a depressão. aziumávamos. sentíamos-mos injustiçados. protestávamos com o mundo e connosco
e só o tempo nos lavava a alma – agora.
maduro. mas ainda sem estar a cair
de podre. percebo que a vida é assim
mesmo. todos diferentes por dentro e
todos iguais por fora. é feita de
perdas e ganhos. de alegrias e
dissabores. de gratidão e ingratidão
e de opções que não podemos nem devemos questionar porque não nos dizem
respeito – cada um sabe o que é melhor para si e para os seus – as amizades
podem ser negociadas. mas nunca
compradas – estes são apenas contratempos que nos obrigam a reajustar a nossa
entrega aos que queremos e gostamos de ter por perto – fecha-se uma porta. abre-se outra. redireciona-se o tempo para mais de mil coisas que ainda nos
falta fazer. a vida pode ser
inventada todos os dias. há tanta
coisa ainda por fazer – por mais que nos custe. estou certo. que o
melhor para todos é a arquivação das comoções. boas e más na pasta dos diversos – já não compensa a trabalheira
de refazer uma relação de amizade ou apenas de cordialidade – assim faço. sempre que uma pretensa amizade me
aborrece. não há papas na língua. bato a porta e siga o andor que o santo
tem pressa – confesso. nem quero
saber se tenho muita ou pouca razão.
sei que tenho a suficiente para não me aborrecer ou maltratar-me – o importante
mesmo sou eu e quem comigo caminha – o autocarro só passa uma única vez na vida. se o perdes já não há volta a dar –
podes mudar de local e apanhar outro. mas
já não leva o mesmo destino nem os mesmos passageiros – uma coisa eu sei. tudo que fazemos tem um preço na vida
– eu pago o meu preço. a diferença
em relação ao que fui em tempos idos é quero sorrir para o futuro em vez de
chorar para o passado
Sem comentários:
Enviar um comentário