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[texto redigido
enquanto o pânico tomava de assalto tudo o que tinha como certeza absoluta – março
e abril – confesso aqui o meu medo]
nem uma palavra para enfrentar o medo.
resmas de papel e nem um mísero vocábulo para me alentar. encorajar.
acreditar que sim: tudo vai ficar bem – o corpo à roda por esse mundo
fora. de imagem em imagem. de grito em grito. de família
em família. e as camas dos hospitais em afligimentos. às vezes
paradas. outras. ligadas a sirenes aflitas. a romper ruas num
desespero desvairado – e a cabeça a estardalhar-se de pânico. de
tanto pânico que nem a porta da casa sustém este medo medonho que me encutinha
na TV – exilam-se os olhos medrosos pelo raso do corpo. tão raso como soalhos
gastos de quem vai para lá e para cá. polido ao osso. num
arrastar de pernas que não conta tempo. só medo. medo-covarde.
tão grande que as paredes procriam em urgência recordações. e o passado dependurado
em candeeiros que acendem a distância dolorosa entre o certo e o errado.
entre o que já devia ter sido dito. e o que a boca calou – tanta
coisa errada em tantos anos de luz – o homem bom é preguiçoso – nasci para isto? para morrer calado?
sufocado por palavras que não disse – que fiz eu para que a espera se aparelhasse
em medo? bem sei que a morte é uma curva certa na estrada* – tanta
gente sem falar. sem gritar. sem gritar pelo nome de quem os abriga
na história. presas ao branco. à máquina que respira porque
respira. sem coração por perto. e os estetoscópios mortos de
cansaço. estupidamente inúteis sentem a morte a perpassar pelas covas
das mãos. trémulas. magoadas em susto numa terra cada vez mais minúscula.
escura como breu. coberta de uma fatalidade estranhamente selvagem.
insuportavelmente selvagem. pérfida. e infinitamente traidora –
tanto silêncio. tanto em silêncio branco. tanto medo.
tanta casa fria. silenciosa. como se cada parede descesse ao
inferno e o céu se esculpisse à mão do diabo – que te fizemos deus? este grito
ensurdecedor à minha cabeça. as máquinas a respirar. a resistirem
vida estoicamente. e o sangue a correr por tubos transparentes clareiam humanos
que se extinguem num corrupio de extenuação que não chega para dizer adeus – as
camas não andam. não marcham. não voam – morrer é só não ser
visto e acompanhado* – quero continuar a ser visto e acompanhado
– preciso de uma nova oportunidade. juro que falarei sem tento – nem
a merda de uma palavra contra esta coisa cobarde. uma injeção. um
martelo. ou uma bomba presa a um dedo engatilhado – estou com medo. em
pânico. não há dignidade nesta coisa. os mortos escondidos do
mundo. num mutismo asqueroso. triste. malparecido.
sem beijo. sem adeus. sem que as lágrimas possam imitar salvas de
canhão – o mundo não pode desaparecer assim. renegado por todos. ajustado
à sua terra sem aconchego – há coisas que não merecem existir: verdugo.
tirano da morte silenciosamente desacompanhada – o fim deveria ter
dignidade: morreu de cancro de pulmão. mas fumou até ao último
dia; morreu de cirrose. mas bebeu até cair na cova; morreu
de sexo. mas fodeu até murchar – só se morre uma vez – que raio faço eu
em casa. podia ser médico e estava na cura. na guerra. estava
a auscultar o medo em cada alma minha. a celebrar esperança. a forjar
tempo para viagem escoltada de afetos – que raio faço eu em casa? se nem
palavras encontro para me descansar do medo
* frase
alterada de fernando pessoa
sampaio
rego – 15 de junho de 2020
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