.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

15/06/2020

eu e o medo






imagem - google


[texto redigido enquanto o pânico tomava de assalto tudo o que tinha como certeza absoluta – março e abril – confesso aqui o meu medo]

nem uma palavra para enfrentar o medo. resmas de papel e nem um mísero vocábulo para me alentar. encorajar. acreditar que sim: tudo vai ficar bem – o corpo à roda por esse mundo fora. de imagem em imagem. de grito em grito. de família em família. e as camas dos hospitais em afligimentos. às vezes paradas. outras. ligadas a sirenes aflitas. a romper ruas num desespero desvairado – e a cabeça a estardalhar-se de pânico. de tanto pânico que nem a porta da casa sustém este medo medonho que me encutinha na TV – exilam-se os olhos medrosos pelo raso do corpo. tão raso como soalhos gastos de quem vai para lá e para cá. polido ao osso. num arrastar de pernas que não conta tempo. só medo. medo-covarde. tão grande que as paredes procriam em urgência recordações. e o passado dependurado em candeeiros que acendem a distância dolorosa entre o certo e o errado. entre o que já devia ter sido dito. e o que a boca calou – tanta coisa errada em tantos anos de luz – o homem bom é preguiçoso – nasci para isto? para morrer calado? sufocado por palavras que não disse – que fiz eu para que a espera se aparelhasse em medo? bem sei que a morte é uma curva certa na estrada* – tanta gente sem falar. sem gritar. sem gritar pelo nome de quem os abriga na história. presas ao branco. à máquina que respira porque respira. sem coração por perto. e os estetoscópios mortos de cansaço. estupidamente inúteis sentem a morte a perpassar pelas covas das mãos. trémulas. magoadas em susto numa terra cada vez mais minúscula. escura como breu. coberta de uma fatalidade estranhamente selvagem. insuportavelmente selvagem. pérfida. e infinitamente traidora – tanto silêncio. tanto em silêncio branco. tanto medo. tanta casa fria. silenciosa. como se cada parede descesse ao inferno e o céu se esculpisse à mão do diabo – que te fizemos deus? este grito ensurdecedor à minha cabeça. as máquinas a respirar. a resistirem vida estoicamente. e o sangue a correr por tubos transparentes clareiam humanos que se extinguem num corrupio de extenuação que não chega para dizer adeus – as camas não andam. não marcham. não voam – morrer é só não ser visto e acompanhado* – quero continuar a ser visto e acompanhadopreciso de uma nova oportunidade. juro que falarei sem tentonem a merda de uma palavra contra esta coisa cobarde. uma injeção. um martelo. ou uma bomba presa a um dedo engatilhado – estou com medo. em pânico. não há dignidade nesta coisa. os mortos escondidos do mundo. num mutismo asqueroso. triste. malparecido. sem beijo. sem adeus. sem que as lágrimas possam imitar salvas de canhão – o mundo não pode desaparecer assim. renegado por todos. ajustado à sua terra sem aconchego – há coisas que não merecem existir: verdugo. tirano da morte silenciosamente desacompanhada – o fim deveria ter dignidade: morreu de cancro de pulmão. mas fumou até ao último dia; morreu de cirrose. mas bebeu até cair na cova; morreu de sexo. mas fodeu até murchar – só se morre uma vez – que raio faço eu em casa. podia ser médico e estava na cura. na guerra. estava a auscultar o medo em cada alma minha. a celebrar esperança. a forjar tempo para viagem escoltada de afetos – que raio faço eu em casa? se nem palavras encontro para me descansar do medo

* frase alterada de fernando pessoa

sampaio rego – 15 de junho de 2020


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