.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/10/2021

eu. e o confinamento II e III














II.

as cadeiras certas em volta da mesa. e eu a contá-las. uma. duas. três. quatro. cinco. seis. sete. oito. nove. dez. onze. e duas guardadas com saudade – quando voltaremos a ocupá-las? o dia igual à noite. e a noite igual ao dia. e os olhos acertados com o que é importante: a minha casa-família – pergunto-me: o que trouxeste ao mundo nesta vida? por onde caminhaste? aonde chegaste? ainda não tenho resposta. mas sinto-me em paz. sinto que o melhor de mim ainda está para chegar – se eu tivesse experimentado esta paz em gaiato nunca tinha envelhecido cansado e atormentado – um homem em paz é muito mais generoso – a cuca e o max confinados aos meus pés. como se o mundo dos caninos vivesse também uma pandemia. a fitarem-me os olhos num sossego absoluto. a perguntarem-se: porque está ele ali sentado se o sol está no ar – tantas vezes invejei a sua vida tranquila. tantas vezes me interroguei: porque não fogem para a liberdade? porque aceitam este cativeiro a troco de uma malga de comida? a resposta é simples: por amor. gostam de mim. adotaram-me. mesmo sabendo que caminho em duas pernas trôpegas – eu também estou confinado por amor. amo a minha família. os meus amigos. os meus cães. amo até as pombas que diariamente pousam no beiral do meu terraço a troco de umas migalhas – amo o mundo mesmo com todos os seus paradoxos e imperfeições – como poderia desafiar esta doença maldita correndo o risco de perder todos aqueles que amo? não podia – preciso ainda de fazer tanta coisa. preciso de alcançar a honradez do meu pai. preciso de continuar a ser pai. avô até que os ossos rajam. até que o coração se canse e morra enlaçado em saudade – tenho absoluta necessidade de morrer de amor. assim como pírame e tisbe. romeu e julieta. ou pessoa e ofélia. não importa como parto. desde que parta numa viagem de amor. se possível perfeito – “se queres ser [um amor] perfeito. vende o que tens e dá-os aos pobres – depois segue-me – não leveis nada pelo caminho. nem bastão. nem alforge. nem uma segunda túnica”. crente ou não a bíblia é um bastião de saber – a felicidade encontra-se na humildade. na simplicidade. no sorriso. na bondade. no silêncio e na contemplação. diria. nas coisas simples – o belo emerge do nada sempre que nos despojamos do supérfluo – quero um amor perfeito para uma vida eterna – talvez os meus cães vivam comigo um amor perfeito. despojaram-se do supérfluo. vivem sem bastão. sem alforge. e sem uma segunda túnica. vivem em paz – agora tenho a certeza de que são eles que me invejam. e se interrogam: porque não corre ele pelo mundo fora? porque tenho o meu prato de comida. a minha malga de água. as cadeiras que conto por amor. e a certeza de que se ocuparão de alegria muito para além da minha vida terrena – amar é ressurreição. e o único caminho para a imortalidade – só me falta deitar no chão. ao pé dos meus amigos mais fiéis. dar duas voltas sobre mim. enroscar o corpo. e fechar os olhos num vagar doce e sossegado. e se alguma coisa me aborrecer. liberto um latido mimado. ou rosno com ferocidade. de seguida. volto a enroscar-me e adormecer com o melhor da vida: paz – nesta brevíssima passagem por este mundo complexo. podemos comprar tudo. podemos viajar. ir ao cinema. à discoteca. ao restaurante. agora até já se pode ir ao espaço ver as estrelas de mais perto. mas a paz… a paz verdadeira… não se pode comprar. é preciso procurá-la conquistá-la. trabalhá-la. encontrar um espacinho dentro do corpo. mesmo que pequenino. e depois aconchegá-la às memórias. e quando nos olhamos para trás. percebemos que a juventude acabou. percebemos que as rugas e os cabelos brancos são a contagem do tempo – o confinamento deu-me essa oportunidade. arrumei o que há muito tempo estava desarrumado.  empilhei tudo a um canto dentro de mim. e instalei pela primeira vez a paz no corpo por inteiro – foi muito bom ter encontrado essa paz. confesso-vos. foi mesmo muito bom. fui feliz. feliz como se fosse um catraio – como é bom viver com paz e luz – só os cristais ficaram foscos. sem brilho. zangados penso eu. talvez adivinhassem o fim das festas. das visitas. do champanhe. do reboliço e das conversas sem interesse. tudo o resto numa calmaria bela: telefone. campainha. TV. despertador. tudo num marasmo absoluto. como as manhãs de sol nas pradarias. com aquele ar pejado de silêncio-calmo. e o vento escorrido das montanhas a tombar as searas para o lado certo da vida – está tudo parado em minha casa. eu também. faço companhia aos relógios. sem corda a meu mando. sem que um único ponteiro possa correr pelo meu novo tempo – e eu ali sentado. a olhar a minha maria joão. mais minha do que nunca. e a interrogar-me: o que verá em mim agora que nos escondemos do mundo – eu sei. paz. paz como nunca tivemos – nascemos e logo nos ensinam a juntar coisas. a procurar ser o melhor na escola. depois chegam as melhores notas. a melhor criança do mundo. chegam os louvores: é um bom rapazinho e muito inteligente. ainda não perdeu um ano – depois. a barba chega. em passo acelerado chega também a vaidade. e já tem carro. e tem amigos que nunca mais acabam. e o sucesso à medida de cada mente infetada. agora mais uma viagem à volta do mundo. e férias nas maldivas. e depois no japão a degustar um peixe balão. e uma foto em áfrica abraçado a uma hiena que não para de rir à gargalhada. para de seguida mergulhar no oceano à procura do tesouro do pirata das caraíbas. e agora só quero chegar à lua e pôr um pé em marte – mais isto e aquilo. e ainda mais. e ainda mais. e quando não tinha imaginava ter. amanhã levanto-me e faço isto. e depois aquilo. e mais não sei o quê. e tudo isto deve chegar para dar mais duas voltas ao mundo – foi preciso uma pandemia para compreender que afinal tudo o que quero está dentro da minha casa – a pandemia trouxe-me o medo e o desespero. mas também a sabedoria para compreender que é nas coisas mais simples que existimos com verdade e paz – nada do que pudesse ter comprado ou amealhado se compara à paz de estar naquele sofá. mesmo desaparecido em medo e rezas – encontrei o que tinha perdido com o crescimento. ouvi pela primeira vez em muitos anos o meu silêncio. encontrei uma paz que nem sabia existir. e vivi o tempo em pleno. sem que um único relógio marcasse o meu envelhecimento – se com a morte alcançar esta serenidade. então… estou pronto


III.

confesso que nunca fui tão feliz como em todo o tempo que passei confinado – bem sei que muitos foram obrigados a trabalhar e a colocar a sua vida em perigo para que eu pudesse estar a salvo da covid – a todos esses heróis o meu obrigado eterno – também sei que muitos milhares de pessoas perderam os seus negócios. as suas casas. o seu emprego. famílias inteiras ruíram. e como sempre as crianças são as que mais sofrem. para não falar no isolamento dos idosos. meses a fio sem um único abraço. sem verem uma única cara familiar – foi tudo muito mau. o nosso mundo não estava preparado para esta maleita. diria que a pandemia foi a nossa terceira guerra mundial. desta vez. infelizmente. não pudemos declarar neutralidade. tivemos baixas em combate. muitas. foi tudo aterrador e angustiante – àqueles que estiveram doentes e principalmente para os familiares daqueles que pereceram. o meu lamento sincero – felizmente a covid não passou aqui por casa. também é verdade que tudo fizemos para que a maldita não tivesse nenhuma oportunidade de continuar a sua propagação. mesmo assim. acreditamos que na vida é sempre preciso uma pontinha de sorte. nós tivemo-la. e estamos gratos por isso 


 

14/10/2021

eu. e o confinamento










I.

aqui estou neste ano de 2021. no meio de uma pandemia. com o mundo suspenso em medo. escondido em máscaras e morte. e eu a contar os dias para a imunidade de grupo. para uma liberdade falsa. tão falsa como todas as pretensas razões que procuro na rua para alimentar a alma de alegria – as ruas desertas de medo. e eu em casa a contar as mortes pelo mundo. agora mais mil. agora mais uma cidade. e mais um país. e a TV aterrorizada. a dizer que a covid pode chegar até pelo ar. ou quem sabe pelo olhar. e eu escondido. fechado numa casa a cadeado. a contar os dias com saúde. a resistir ao medo. ao fim do mundo. e a cabeça a lamentar tanta coisa que ficou por fazer. a lembrar os amigos: quantos abraços ficaram por dar. quantas palavras ficaram por dizer – que estupidez. gastamos o tempo a correr e afinal tudo pode acabar de um momento para o outro – tenho saudades de não ter medo. de tocar por tocar nas coisas. de passar a embarrar. de querer conhecer quem nunca conheci. de falar. de tossir sem estremecer. e a boca em rezas contínuas. em promessas a s. bentinho da porta aberta: se me livrar desta maleita ofereço-lhe uma vela do meu tamanho e derreto-a até o último fio de luz – assim estava eu. parado em rezas e pedidos de perdão. acabrunhado em quatro paredes. sem que o tempo contasse para mais nada a não ser envelhecer – sentado no meu sofá. a olhar a sala como se o mundo todo coubesse no seu interior. os espelhos a dar conta de uma vida numa verdade crua. a desmanchar a alma. a fazer arrependimentos como se dentro de mim houvesse uma linha de montagem. só que em vez de balões. confeitos ou fustão. eram contrições – resisto em lamentos: que pena não ter percebido mais cedo que esta vida são dois dias. às vezes nem isso – a barba por fazer. o corpo mole. imolado num fato treino que não me faz correr para lado nenhum. vou do quarto para a sala. da sala para a minha escrivaninha. da escrivaninha para a sala. e o corredor cada vez mais escuro e cumprido. a levar-me de um lado para o outro como se fosse o corredor da morte. e eu à espera da injeção letal – a pandemia trouxe-me o pânico. os arrepios e as interrogações. o medo da falência dos pulmões. o pavor de morrer sozinho. envolto em tubos e batas brancas sem compaixão: mais um. e a TV a dar conta da minha partida num número frio. duzentos e oitenta mortos de covid. a mortalidade com maior incidência no minho – e a urna fechada. lacrada. enviada com urgência para debaixo da terra. esburacada por um coveiro também cheio de urgência. e o padre mais perto de deus do que do defunto. com a boca a correr para fora do cemitério. a despachar os louvores de uma vida com água benta apavorada. e a família contada pelos dedos de uma mão. sem saber se a terra leva o que é seu. sem beijo de despedida. sem saberem se as lágrimas se ouvem naquele silêncio-pânico – medo. muito medo. e a cabeça dia e noite a interrogar-se: de que mal morrerei? que praga me comerá a carne? em casa. de porta fechada a sete chaves. com as mãos mergulhadas em álcool gel. carrego poetas e escritores de um lado para o outro numa cabeça assustada. às vezes escrevo eu. abro o word e escondo-me em rascunhos medrosos e sem sentido. folha atrás de folha. e a reciclagem do PC a abarrotar de inutilidades. e o medo das palavras infetadas de terror. a viajar pela internet à velocidade da pandemia. e as curas aos milhares: tens de comer muito alho; vitamina D mata todos os vírus. e se juntares a C então não há mal que te chegue; no japão um velhinho com cento e vinte anos curou-se da covid com escaldas pés e calinhos de habushu; e mais um outro na finlândia. espeta agulhas nos pés sentado num cubo de gelo; e um feiticeiro em áfrica esmagou os testículos de um leão num pilão. acrescentou-lhe dois dedais de capuca. uma asa de morcego. e dança kuduro todas as noites – que posso eu fazer em minha casa para que a maleita se distraia comigo? nada. fecho as janelas e espreito pelas frinchas o que resta do mundo que um dia conheci – pelo menos as casas não ruíram

 

música de fundo - beethoven moonlight sonata no. 14