1.
stutz. psiquiatra americano. famoso pelo
documentário produzido pelo realizador jonah hill. e que pode ser visto na netflix.
disse: não existe progresso sem vulnerabilidade – ainda não me tinha apercebido
da imiscuição desta palavra no nosso processo de crescimento: vul-ne-ra-bi-li-da-de
– resolvi perguntar-me: quando foi a primeira vez que me senti vulnerável? que
impacto teve essa vulnerabilidade na construção da minha personalidade? como
estou aceitando [agora]
essas vulnerabilidades? qual a relação entre as minhas vulnerabilidades e as
regras que a sociedade impiedosamente impõe? não será fácil responder a todas
estas incertezas depois de tantos anos sem me questionar. não porque não
passasse toda a minha vida a questionar-me. mas na verdade. nunca tinha
introduzido a palavra vulnerabilidade na equação do meu crescimento – mas aqui estou
em viajem por mim. descobrindo-me. procurando-me. desbravando-me. levando luz à
escuridão. tratamento à dúvida. paz ao destino final – todo o homem nasce livre.
mas rapidamente é arrastado para cativeiro. as sociedades são as grades do
corpo e. principalmente. da mente – somos todos. sem exceção. aprisionados a
dogmas. a leis. a hábitos e costumes. e estas. impiedosamente. impede-nos de viver uma liberdade absoluta – malditas
sejam. digo eu. benditas sejam. digo eu – estas leis. absolutamente
necessárias. não digo todas. mas a maior parte. têm como objetivo regular
comportamentos. criar padrões de aceitação coletivos. e deste modo. acertar procedimentos.
catalogá-los entre o bom aceitável. e o mau inaceitável. reordená-las por ordem
de grandeza e importância. penalizando com multas ou censura pública os casos
menos graves. castigos corporais e privação da liberdade. para os casos mais graves – é deste modo que o
mundo gira certo todos os dias. repetindo-se. castrando a criação. inventado mandamentos.
criando doutrinas. limitando horizontes. parindo diariamente novos zombies – as
regras podem ser morais. sociais. religiosas. políticas. às vezes impostas de
forma violenta. às vezes castradoras. às vezes democraticamente. mas quase sempre
refletindo padrões e valores da sociedade em que estamos inseridos – todas as regras
tem apenas uma finalidade: possibilitar a comunhão comunitária. evitar a
anarquia coletiva. fortalecer o controle de quem tem o poder – nascemos. e automaticamente somos injetados de um vírus.
que nos torna adaptáveis ao sistema de valores e regras do mundo que nos recebe.
e aos poucos. tornámo-nos repteis. começamos a rastejar entre o que os outros
são. e o que não queremos ser – aceitámo-lo porque isso é o antidoto para
que sejamos também aceites. e de tempos em tempos. mudamos a pele. tal como os
répteis. e expomos as nossas vulnerabilidades. ou inadaptabilidades. ou mais
grave. um cérebro que se recusa imperiosamente em pertencer a esta ordem
imposta – então. enquanto a nova pele não adquire defesas. cobrimo-nos com um
cobertor que nos torna invisíveis. e caminhamos pelo mundo em silêncio. pedindo
apenas pão e água para sobreviver. fazendo rolar as pedras dentro de nós.
ajeitando o cérebro ao desconhecido. mutilando-o. amedrontando-o. dizendo-lhe:
cuidado com o que queres ser. podes muito bem cair pela tua escada de caracol –
somos. em cada instante. uma história em construção. onde os outros. de forma
direta ou indireta. colaboram na criação das nossas vulnerabilidades – cabe-nos
encontrar as ferramentas certas para que possamos ter uma leitura correta
dessas mesmas vulnerabilidades. depois. controlá-las. domesticá-las. ou simplesmente
aceitá-las – para encontrarmos certezas é preciso compreender cada momento da
vida. não podemos caminhar pelos anos e. tresloucadamente. arrastar
violentamente a cabeça para a adolescência. já não encontraremos o mesmo miúdo
– mas podemos trazer e tratar as vulnerabilidades criadas no passado longínquo.
ou mais recente. na cabeça de hoje – e nesta nova conjetura. com mais liberdade.
mais coragem. e porque um homem envelhecido é sempre mais sábio. identificar
cada vulnerabilidade. tratar o que for de tratar. e o que já não tiver remédio.
resignarmo-nos. aceitarmo-nos com perdão. untarmo-nos de mel – em boa verdade.
nunca saberemos em que pilar assentou o nosso crescimento. ninguém nos pode
garantir que não foram essas vulnerabilidades a principal razão de termos
sobrevivido às interrogações com que fomos obrigados a crescer. a viver – respirar
será sempre uma interrogação. interrogarmo-nos a solução para sobreviver – nenhum
homem saudável cresce sem se interpelar diariamente – sobrevivemos numa
comunidade selvagem com regras que nos tornam inertes. mansos e adaptáveis. onde
os outros raramente são neutros. são antes. outra história vulnerável dentro da
nossa
2.
passada a introdução. aqui estou para falar
de mim. do presente para o passado. e do passado. para a verdade de hoje. pois
não estou certo se era a verdade do passado – era demasiado novo para saber
pensar. nesse tempo veloz. preferia correr com as minhas certezas absolutas –
nunca podemos esquecer que por essa altura eu era imortal. e mesmo admitindo
que não sabia tudo. acreditava que já sabia o suficiente para ter mais ouvidos
para mim do que para os outros – agora. e depois de viajar por mim. num vai e
vem alucinante. e em total liberdade intelectual. fruto da ancianidade. e desta
minha enraizada convicção de que nasci selvagem e assim morrerei – compreendo
que de alguma forma. sendo mais cruel comigo ou menos. sempre me senti
vulnerável – no entanto. ainda hoje não sinto que as minhas vulnerabilidades se
tenham tornado estruturais no meu crescimento. talvez me tenham obrigado a
colocar mais cobertores. mais armaduras. mais ferro para cimo das costas. mais
bandeirinhas na ponta da lança. e por via deste ferro pesado. tenha caminhado
mais curvado. mais lento. e mais trôpego – creio até que foram essas
vulnerabilidades que me tornaram mais capaz de enfrentar o crescimento. de
enfrentar a verdade. de recusar a mentira. de fazer da justiça o meu estandarte
de armas – a pergunta sem resposta é se chegaria ao mesmo destino sem a
armadura – a minha primeira memória de vulnerabilidade chega-me da adolescência.
com os amigos de porta – naquele tempo brincávamos na rua. crescíamos na rua. e
esta. tal como se fossemos plasticina. moldava-nos. às vezes fortes. às vezes
com vulnerabilidades para o resto da vida – a rua habita em mim. cravou-se-me
no corpo. atravessou-me a alma. e tal como um delta de um rio é formado por
vários canais. também eu me dividi em interesses. em vulnerabilidades. em
traumas. em dor. em abraços também. em amizades para toda a vida. em inimigos.
em arrependimentos. etc. – no meu cérebro desaguaram todos os sedimentos da
vida em que naveguei. nada deixei ao abandono. nada ficou sem travesseiro – é
isso que agora procuro. nas borras. catando os imponderáveis. olhando as
cicatrizes. as dores que sofri. as que escondi. enterrando as mãos pelas
vísceras. apertando-as uma contra a outra. entrelaçando-as. espremendo-as com
cólera. saber e justiça. decantando-as ao tempo. e no vagar do mundo de hoje.
esperar. e acreditar que a qualquer momento. uma pulga gigante me salte das
mãos. do coração mais profundo de mim. e
instantaneamente. como as luzes de um fogo de artifício. a história verdadeira
das vulnerabilidades me jorre em luz. e como estas. viga mestre. ou de amparo. me
suportaram. moldaram. adaptaram. ou induziram negativamente. ou positivamente. o
meu caminho até aos dias de hoje – no entanto. mais do que
descobrir o que deixei para trás por causa das minhas vulnerabilidades.
importa-me saber o que posso mudar para a frente – o futuro é sempre mais
importante. é lá que um dia morreremos. e é bom manter a gaveta arrumada. nunca
sabemos o dia em que apanharemos a barca para outra dimensão
3.
sempre
achei os meus amigos mais interessantes. mais bonitos. mais inteligentes. e
mais capazes de serem felizes – nunca me tive em boa conta. mas também nunca
foi coisa que me preocupou. sempre acreditei que haveria um caminho para mim e
que o iria fazer com mais ou menos brilhantismo – o que sempre soube. porque há
coisas que sabemos e não sabemos explicar o porquê de as sabermos. é que construir-me
daria muito trabalho – assim foi. confirmo. foi uma
trabalheira gigantesca chegar até aqui – mas cá estou hoje. a falar livremente
e sem medo. porque quando alguém ler estas parvoíces que escrevo. será passado.
e o passado nunca mudará o futuro. só o presente tem essa dinâmica. e é por
isso que escrevo. hoje. este meu presente. que fará o meu futuro mais
compreendido – saí de casa para chegar aos amigos em total liberdade.
diria. dono de mim. tudo o que os meus pais exigiam é que regressasse a casa
para as refeições. que mantivesse a roupa asseada e composta. não estragasse os
sapatos a jogar à bola. o que nunca respeitei. e por isso. recebi várias
reprimendas da minha mãe. ameaçando-me com a compra de chancas – assim viajava
todos os dias para a minha rua. que na altura era do tamanho do mundo. dono e
senhor de mim – maior do que a liberdade em que vivia só o pudor que carregava.
escondido debaixo da roupa. com a cabeça abatida. medroso. inadaptado. com a
subserviência estampada na cara. afinal não passava de uma criança a dar os
primeiros passos na selva – as crianças e os adolescentes podem ser cruéis.
todos sabemos. e foram comigo. rapidamente perceberam as minhas vulnerabilidades
e atacaram como leões. esfarrapavam-me diariamente – a grande maioria dos meus
amigos tinham os seus progenitores a trabalhar para o estado. e como era
habitual naquela época as mães eram donas de casa. com tempo para tudo ou quase
tudo. uma das principais preocupações era manter os filhos debaixo de olho o
dia todo – os meus pais eram industriais. tinham o seu negócio. uma
pequeníssima fábrica de artigos de pele. que sobrevivia com muitos momentos de
agonia e sofrimento. como quase todos aqueles que tinham os seus negócios
próprios na época do estado novo – a minha liberdade não foi conquistada.
chegou naturalmente. o meu pai viajava e a minha mãe era a mulher guerreira.
era quem geria toda a fabricação e. por isso mesmo. e também porque a vida era
dificílima. e o dinheiro escasso. eu era deixado um pouco à minha sorte – não
estou a queixar-me. muito menos a acusar. nunca me faltou nada. nem amor. nem
preocupação. os meus pais são os meus heróis. a minha família é uma cruz que
carrego com honra – aos olhos das mães dos meus amigos esta minha liberdade
nunca foi acolhida com agrado. eu era um filho da rua. um potencial marginal.
quem sabe em adulto um serial killer – havia um preconceito racista contra os
filhos de industriais. que na maior parte das vezes se traduzia num assédio
persistente. procurava-se o erro e o defeito. e quando não se encontrava.
sempre restava a indiferença e marginalização – o respeito pela individualidade
era reduzido ao sorriso preconceituoso. maldoso. na maior parte das vezes tortuoso
– todo o industrial é burro. e filho de burro. burro é – na época havia dois
tipos de industriais. os imensamente ricos. com empresas enormes. centenas de
empregados. e que pela sua importância local eram idolatrados e respeitados –
no final do século XIX e princípio do século XX. muitos desses industriais.
geralmente ligados ao setor têxtil. foram agraciados com títulos honoríficos –
ser conde ou visconde era apenas uma questão de dinheiro – claro que nem todos
se tornaram nobres. mas os industriais de empresas de grandes dimensões tinham
um tratamento diferente. a sociedade pela frente respeitava-os. nas costas.
eram como os outros – a outra linhagem. a pobre e desgraçada. emergiu na
sociedade fruto do trabalho duro. alguns sem nenhum tipo de instrução. mas com
uma vontade enorme de triunfar na vida – eram homens de família. rompiam as
alvoradas com uma única ideia presente. uma vida melhor para os filhos –
geralmente. estas pessoas vestiam-se mal. eram broncos. e tudo se resumia a
força. pouco asseados e pouco dados a boa vizinhança – felizmente os meus pais
eram o oposto desta elite negativa. mas mesmo assim o preconceito resistia e sobrevivia.
principalmente em vizinhos dependentes do soldo estatal: trabalhadores da
função pública. câmaras municipais. governo civil. militares. legião
portuguesa. professores. etc. – por incrível que possa parecer nos dias de
hoje. naquele tempo. estes funcionários do estado. tinham um estatuto
diferenciado. uma espécie de uma segunda elite. que se alicerçava no fato de
saberem ler e escrever. e por isso. serem melhor remunerados – como ganhavam
mais do que a maioria da população. tinham uma vida bastante mais melhorada.
podiam alugar casas de construção mais recente e mais centrais. alguns já
tinham o seu automóvel. andavam mais bem vestidos. os seus filhos apresentavam-se
na escola asseados e calçados. e depois da primária seguiam os estudos no liceu
– a elite das elites. naquela época. eram as profissões com canudo. médicos.
advogados. engenheiros. que por serem escassos. gozavam de um estatuto muito superior.
eram endeusados – vivíamos todos a época da vénia. o mais pobre fazia a vénia
dobrando o corpo até fazer um ângulo de 90 graus. as elites mexiam o pescoço
uns centímetros para a frente. talvez num ângulo de 9 graus – a briga do pobre
era o reconhecimento do seu papel na sociedade. o fim do servilismo. da
bajulação. da indiferença – eu não fazia parte desta rede servil. sempre me
senti um revolucionário. um contestatário. nos primeiros anos da minha
adolescência. em silêncio. a tenra idade não me permitia grandes aventuras.
apenas em casa. contrariando os meus pais. era a preparação para mais tarde
enfrentar o mundo. pelo menos o mundo que me servia. ao pé de casa. junto dos
amigos. na escola. e depois no mundo do trabalho. aqui sim. sempre fiz o que me
ia chegando à cabeça – a partir dos meus dezasseis anos. carreguei o corpo de
catanas e comecei a desbravar terreno – não foi fácil crescer no colete de
arrogância. sentia diariamente na pele o racismo. e na maior parte das vezes
eras marginalizado e ignorado. ou pior. tornavas-te invisível. desprezado –
quando tinha os meus doze anos. talvez treze. já não sei. qualquer coisa por aí.
jogávamos aos centros. isto é. um amigo na baliza. um outro a centrar a bola. e
quem conseguisse ultrapassar o guarda-redes. metesse a bola entre as duas
pedras que faziam de postes. tinha direito a mandar sair um jogador. o último a
ficar em campo era o vencedor – pois bem. eu era sempre o primeiro a sair do
jogo – lembro-me que um desses amigos. que por sinal era o mais velho de todos.
teria mais uns quatro ou cinco anos do que eu. o que na altura era imenso. um
já homem à procura de acasalamento. encontrou em mim o seu inimigo de
estimação. e sempre que marcava golo. o braço estendia-se na minha direção numa
velocidade estonteante. e da sua boca saía com jubilação a palavra mestra:
r-u-a – bem me custou. mas depressa aprendi a aguentar firme a guerrilha. e
quando por artes mágicas. ou divinas. porque na época era crente. eu marcava
golo. não imaginam o prazer que me dava em retribuir. era preciso coragem. acreditem.
e da minha boca saía à velocidade do som a palavra mestra: r-u-a – os outros
putos quando marcavam golo nunca mandavam sair um dos grandes. ficavam
aterrorizados. e mandavam também eles sair um dos mais pequenos – ainda hoje
consigo visionar os olhos-bala do meu amigo. nunca morri alvejado. porque o meu
sorriso protegia-me. carregava toda a alegria do mundo. a justiça reparadora –
o meu amigo mandava-me para a rua vinte vezes. eu mandava-o apenas uma. mas
valia por duzentas. fazia-me david. e ele… apenas mais um golias. morto por um
golo de um puto – foram precisos mais uns quantos anos para que pudesse
reverter este bullying permanente e persecutório – com os meus quinze anos
comecei a conduzir. o meu pai tinha uma carrinha da empresa e tornou-se fácil
ficar com a chave – sem que ele soubesse comecei a deslocar-me a combustão –
era uma época diferente desta em que vivemos. havia pouca polícia. e a que
havia era conhecida – naquele tempo conduzir sem carta não era socialmente
reprovável. era tolerado. principalmente em cidades pequenas como braga. todos
se conheciam – era muito raro um jovem ter carro. ainda para mais. com quinze
anos – entre os onze e catorze anos li praticamente todos os clássicos da
literatura portuguesa. ao contrário da maior parte dos meus amigos. que os
únicos livros que lhes passavam pelas mãos eram os almanaques da disney –
confesso que não me sentia capaz de lhes dizer que o meu hobby preferido era a
leitura. isso ficou para mais tarde com o meu amigo tiago. preferia o silêncio.
era um gosto pouco recomendável para rapazes. e ainda menos para um filho de
industrial – esta minha paixão ainda me tornou mais diferente. e possivelmente
mais um bom motivo para chacota dos mais velhos – não foi fácil crescer.
principalmente para um miúdo protegido como eu. cheguei passado onze anos do
meu irmão. e treze da minha irmã. mas confesso que nunca me dei bem com essa
ideia do benjamim da família – carreguei-me em liberdade. e fui pelo mundo sem
queixas. habituei-me. e aprendi a não me lamentar de nada. preferi sempre
acreditar que tudo acontece por uma razão. e tenho boas razões para acreditar
que ainda bem que assim aconteceu
brevemente
a parte 2
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