[tratado
sobre amizade]
I.
o que seria da
nossa vidinha sem os amigos? sinceramente não sei. sempre tive os amigos perto
de mim. a ocuparem espaço. a absorver-me. a falarem muito. e eu também. a
ocupar muito espaço. a absorver. a falar. a acenar para trazê-los para dentro do
que sou e sinto – com a idade vamos perdendo amigos. amigos ou coisa parecida.
encostos. passageiros do nosso tempo sideral. almas com mágoa e dor. como eu –
destes amigos. alguns apenas dormitaram de um dia para o outro. e pela manhã.
fizeram um café forte e partiram em expresso – outros. estalaram-se.
depositaram o corpo em mim. e obrigaram-me a ficar fiel depositário. e ali fiquei. com as mãos estendidas. como
deve um amigo ser. presente. para evitar males maiores. ou que se aborrecessem.
ou partissem. afinal os amigos são coisa fina. cristal de murano – mas o tempo
é ruim. e tal como o cometa halley. alguns destes amigos seguiram viagem. é a
vidinha. talvez apareçam daqui por setenta e cinco anos. serão bem-vindos se
tiverem boas razões para voltar. e muitas histórias para contar – os amigos são
assim. humanos como eu. às vezes precisamos de partir. precisamos de abalar
para local desconhecido. para ser como somos. para ter tempo para ser o que realmente
somos – mas. enquanto nos escondemos na vidinha que nos tocou. sim. porque às
vezes não temos escolha. precisamos do escuro para clarear ideias. procurar o
que demos por perdido. aprender a escutarmo-nos. aceitarmo-nos. limar as
complexidades com uma pequeníssima lima de manicure. os amigos abalam. e quando
voltamos do escuro já não temos ninguém à espera – a vida corre sempre para a
frente. para a invisibilidade. e o que ficou para trás não passa de nevoeiro.
igualzinho ao de d. sebastião. acreditamos que um dia tudo volte a ser como
dantes. não volta. como não voltou d. sebastião – depois. ainda há os amigos
intermitentes. aparecem e desaparecem consoante o que lhes convém. ou os
humores. ou as tragédias. e chegam como se nunca tivessem partido. a sorrir. a
dizerem que a vidinha é uma trampa. que o tempo é como as enguias.
escorregadias. e abraçam-nos até os ossos estilhaçarem. juram saudades que são
quase dor. e convencem-nos que no canto do seu olhinho reluzente. a ramela é
verdadeira. sobra da última lágrima. que depois de bem seca. se faz cristal.
possivelmente também de murano – com o tempo fui perdendo amigos. ou coisa
parecida. mas quem não os perdeu? só não os perde quem nunca teve o privilégio
de os ter – crescemos e tomamos caminhos diferentes. é a vidinha. digo eu agora
que já não encontro razões para tanto desencontro. a juventude envelheceu.
passou a sénior. o corpo amadureceu. a memória enfezou. as mãos aceitaram os
tremores. o coração bate e esbate. e o céu ficou mais perto de belo – agora.
neste estado de pré-decadência apressada. mais complacente. mais sabedor de que
nada sei. encontro outros entendimentos. mais nobres e mais rebuscados.
acertados com mais predicados. o corpo roga mais tolerância e menos ego. e
finalmente. percebemos que os amigos vivem na arca do nosso santo graal. com a
família. e guardam em si todos os seus mistérios. como eu – o que mora dentro
de cada um dos nossos amigos apenas pertence a um só corpo. e só esse corpo
conhece e sabe as verdadeiras razões da sua viagem – como disse agustina bessa
luís. o mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única – é a
vidinha – envelheci demasiado. quando quero lembrar-me de mim. com o corpo
esguio. e o cabelo a cair para o lado dos sorrisos. tenho que me procurar nas
fotos. e fico sempre espantado. e interrogo-me: este sou mesmo eu? parecia
passado a ferro. lisinho. as pontas dos pés acertavam-me em cheio no nariz. e
os lábios sempre prontos a falar. às vezes a desatinar. quando ficavam
excitados anunciavam bom tempo. com as gaivotas a saírem-me do céu da boca.
loucas. e o vento… sempre a puxar sul. acompanhado de um aroma suave. fresco. e
a pele eriçada. arrepiada com um mundo redondo. azul. com mares. com alma. sol
e sal. e o pulôver atado à cintura a desafiar o outono. o meu outono. era um
miúdo com uma vidinha gira – e eu sem saber quão rápido chegam os outonos.
ingénuo. é a vidinha. não apenas a minha. mas a de todos – mas enfim… é o que
é. consola-me saber que os meus amigos também envelheceram. fizeram-se das suas
razões. tornaram-se no que quiseram ser – as histórias de amigos acabam sempre
com um final feliz. ou quase sempre. as que acabam mal existem para nos obrigar
a ter cuidados redobrados. cada amigo tem um mundo que é só seu. tem o seu
mistério – o tempo coloca tudo no seu lugar. acerta as horas pelo fuso de cada
um de nós. e depois. aparece aquele momento. que relembraremos para sempre.
principalmente nos desequilíbrios. nas noites mais cumpridas. nas dores
invisíveis. em que nos tornam eleitos. únicos. diferentes das maiorias. que é
quando nos dizem: és um bom amigo. especial. singular. e sorrimos tímidos e
envergonhados. estranhamos. mas depois entranhamos. e obrigamos as gaivotas a
sair da boca. pedimos-lhes que levem a boa nova ao mundo. e ficamos em festa.
gratos. encantados com o que somos. e esquecemos por mais um século o que
gostaríamos de ser – os amigos são a nossa rosa dos ventos. e o norte aponta
sempre para eles. para eles e para a família – a felicidade não é assética. mas
é quase sempre efémera. às vezes ilusão. às vezes apenas o contrário de dor.
que acabamos rapidamente por a rejeitar. medramos só de saber que está a
caminho de nos encontrar – para cada segundo feliz sofremos horas de agonia.
foi assim a vidinha. não foi feita para nós. não somos dignos de a saborear por
um ano. um mês. um dia. temos apenas direito a momentos felizes. espremida
apenas de pensamentos joviais. em noites de auto-satisfação – é como vestir
umas calças com dois números acima. se não usamos cinto. caem-nos. se colocamos
cinto. encarquilham. num caso. ou noutro. ficamos em dúvida se engordamos. ou
emagrecemos. e acabamos por preferir a neutralidade. nem feliz. nem infeliz.
usamos um número intermédio. e tudo encaixa na perfeição. é o número mágico.
faz-nos invisíveis. assim. ninguém nos pergunta se está tudo bem. ou mal.
estamos sempre com ar de nem oito. nem oitenta. às vezes quase mortos. às vezes
na lua. mas aos olhos da multidão. está tudo legal. como sempre – enquanto a
infelicidade que infligimos aos outros. digo. aos amigos. fica para sempre. e
quase todos os dias vem à memória o dia do pecado mortal. arrependemo-nos.
laminamo-nos. sangramos até à exaustão.
mas a vidinha não anda para trás. e em dor e fogo tatuamos na pele três
palavras: és uma vergonha – e quando estamos sozinhos. apenas connosco.
vestimos uma túnica branco. e tal como egas moniz. ajoelhámo-nos. entregámo-nos
em perdão. e ali ficamos à espera que a cabeça nos caia nas mãos. com os nossos
olhos. nos olhos dos amigos – não se pode virar as costas a um amigo de olhos
no chão – agora. as gaivotas já não me passam pelos lábios. penduram-se como
morcegos no céu da boca. a degustarem o meu refluxo estomacal. e o verme do
tempo a mastigar a vida num vagar tonto e esquizofrénico – finalmente
absolvido. mortal. finalmente todos mortais. todos perdoados. eu também
II.
mas que importa isto. ou aquilo. o que
sei é que comecei a caminhar onde o passado me criou. e às vezes passo pela rua
que me viu nascer. e tento encontrar-me. e não me vejo. desapareci daquela rua
para sempre. ou fiquei invisível. e por mais tentativas que faça para me
encontrar. não me encontro. a vidinha é isto. uma ilusão de eternidade. e o que
nos espera é uma sucessão de pequenas mortes. que nos faz desaparecer aos
bocadinhos. e um dia. sem nada pudermos fazer. desaparecemos para sempre – como
eu. os amigos. desapareceram por culpa da vidinha. tornaram-se invisíveis. e
quando tentamos recuperar a sua face. já não conseguimos. esfumaram-se na
vidinha. ficou-lhes o nome. que viverá enquanto eu viver. e depois. também um
dia. quando eu expirar. quando as gaivotas me morrerem na boca. e o verme
saltar para a terra. morremos todos para sempre – a vida corre desenfreada para
o fim. para o pó. e nesta correria parva espera-nos a invisibilidade. a minha.
e a dos meus amigos – e a rua onde eu nasci. será a rua de um outro como eu.
que perderá amigos como eu. e envelhecerá como eu. e tornar-se-á invisível como
eu – é assim que o mundo gira. é a sua vidinha – às vezes desistimos da vida e
ainda respiramos. estamos fartos de perder coisas: perdemos os sapatos de pele
que nos custou uma fortuna. perdemos o
avião para veneza. perdemos o nascer do sol. perdemos a chave de casa. perdemos
tempo. e logo logo perdemos a esperança. e a honra. e a dignidade. e a calmaria
que nos faz esperar pelo nosso dobrar dos sinos – pedimos então suicídio. e é
quando nos perdemos de nós. do caminho que sonhamos. e metemos a mão à boca
para deixar de respirar. e ouvimos o verme a agoniar. e as gaivotas loucas na
escuridão a cravarem-se nos dentes. e as lágrimas que nunca serão cristal de
murano caiem-nos em cima da verdade. cristalizam-nos – cristalizam-nos na
verdade absoluta – não somos nada. somos apenas passageiros da vidinha – e a
saudade de todos os que amamos a passar pelos olhos ainda abertos. em
desespero. numa agonia brutal. e aos poucos vamos sufocando. e a morte acontece
na sua imperial simplicidade – é o fim da vidinha. único acordo de cavalheiros
apalavrado com o primeiro sopro de vida: um dia morrerás e serás para sempre
invisível – é a vidinha – envelhecer nem sempre é castigo. envelhecemos para
termos a última aula de saber. começamos a respeitar o tempo. aprendemos a
amaciá-lo. a torná-lo num chá quente. reconfortante. e percebemos que enquanto
respiramos é nossa obrigação juntar as moléculas e marchar. meter as esporas nos
pés. deitar o corpo sobre a vidinha. como um jockey se deita no seu cavalo para
que o galope alongue. e partir desenfreado pelo o que nos resta de tempo.
conquistá-lo com dignidade. atingir a meta com honestidade – por minha culpa.
tão grande culpa. às vezes creio que também sem culpa. para cada amigo que ia
conquistando. perdia três. às vezes perdia uma mão cheia de uma assentada. e
nem um me chegava em troca – pensava. é o êxodo. castigo de deus ou do universo.
ou então. iam em busca da sua vidinha prometida. que mal lhes posso ter por
quererem a sua vidinha – com o meu outono chegaram os novos amigos. mais
compostos. mais parecidos comigo. mais doces. a falarem de coisas mais
adocicadas. talvez porque também eu me tornei mais meloso. mais cuidadoso com
as portas que abro. culpa da vidinha. ou da minha falta de maleabilidade – a
plasticina ao tempo fica rija e impossível de trabalhar. e posso confessar-vos
agora. já não me trabalho como antigamente. agora prefiro escrever e abraçar os
amigos mais certos. os que me tocaram por gosto – não foi de propósito. foi a
vidinha. outonos em demasia. amadureci. como se fosse um fruto. talvez um
morango. ou uma laranja. ou a maça do paraíso. que estupidez. como é que algum
dia poderia ser um fruto. petrifiquei-me. e mesmo abrindo a boca e espantando
as gaivotas. não fui suficientemente bom comigo. não me perdoei. às vezes
perdoo-me. mas muito devagarinho. suportando-me. serrando os pulsos – sem dor
não há perdão sentido – mas confesso. ainda não consegui desfazer-me do amargo
da vidinha que fui esbanjando – infelizmente. nem sempre vento e liberdade são
sinónimo de envelhecimento com estima
III.
os
amigos são como elevadores. apanhámo-los na vidinha. e rapidamente os
convidamos a subir ao último piso de nós. chegados lá. sem custo. animados pela
conquista. ainda fazemos questão de subir mais uns degrauzinhos. queremos chegar
mesmo ao topo. para o céu nos escutar sem esforço. e para terem uma vista real
da nossa magnitude. e logo dizemos: estás a ver tudo isto à tua volta. é tudo
meu. é o meu pé-de-meia da vidinha – a amizade é uma forma de amor. e tudo o
que é amor é lei universal. augusto comte. fundador da sociologia moderna.
escreveu um dia o seguinte: “o amor por princípio. a ordem por base. e o
progresso por fim” – por princípio os meus amigos. são aqueles que se
predestinam a sofrer a meu lado. para sorrisos nunca me faltou espaço no
relicário – os meus amigos sempre foram os meus heróis. eram todos aquiles.
guerreiros. poderosos. inteligentes. bonitos. apenas pequeníssimas debilidades
nos calcanhares. por serem aquiles. presentes nas horas más. sangrando comigo.
chorando. agoniando. apoiando. dizendo-me: amanhã é outro dia. acredita – os
meus amigos são a minha poesia épica. a epopeia da minha vida. da nossa vida –
eles e a família são o meu anel de fogo. que me protege no tempo. que é a minha
vidinha. e que por ser escassa e trabalhosa. acabou tresmalhada nos seus
enredos – na nossa vidinha não há grandes possibilidades de voltar atrás para
refazer o destino. o que nos em calhou em sorte. ou desnorte. ou então sou uma
experimentação de deus. ou extraterrestre. uma ordem do universo. com o rótulo:
experiência 17552. do ano estelar -41296.36. o que está feito. feito está – é
por isso que os levamos para o último piso. que é o mesmo que lhes oferecer um
sofá para dentro de nós. sentamo-nos nas telhas. algumas de vidro. que são o
calcanhar de aquiles. e mostrámos-lhes como tudo é fantástico. damos-lhes o
melhor do que gerámos. escondendo o nosso buraco para o inferno – e depois do
barulho. quando o silêncio nos despe. humildes. falamos-lhes da nossa
pequeníssima vidinha. sem interesse. nebulada. escura. fria. e irritante –
somos o que somos. independentemente do que nos rodeia – apontamos para uma
árvore. uma que está mais acima do que as outras. talvez com as folhas mais
verdes. talvez também mais elegante. e apenas dizemos: olha que árvore bonita.
que bela. e olha a cor. e o tamanho das folhas. tão geométricas. tão certas.
tão perfeitas – procuramos o belo-estético onde não existe mais do que apenas o
belo de uma árvore. igual a tantas outras. e que não servem para mais nada do
que para poiso de pássaros – e as minhas gaivotas presas ao céu da boca.
incrédulas por tanta louvação e esplendor. a interrogarem-se para que servem
tantas árvores se lhes falta um mundo redondo. azul. com mares. alma. sol. e o
sal – um dia. estas árvores tornar-se-ão também invisíveis. apodrecerão. ou
acabarão nas mãos de um marceneiro. nada fica para sempre. nem a água da chuva.
nem o vento. nem o amor. nem os olhos que o veem – respiramos o belo como se
estivéssemos drogados com tanta afinidade. como dizia miguel torga: daqui se vê
o belo absoluto – olhamos um para outro e interrogamo-nos: o que há dentro de
nós de tão mau para nos darmos tão bem? quando gostamos de um amigo perdemos o
nosso vento sul. e as gaivotas voam de olhos fechados. afinal o mundo é azul.
com mares. alma. sol e sal – olhamos ao redor e todos as árvores são especiais.
e todas diferentes. umas mais pequenas. encorpadas. mais esguias. e até as
atarracadas te seduzem. e dizemos em uníssono: um dia serão enormes –
interrogamo-nos. porque são as árvores tão esguias? e concordamos: para se
protegerem do outono. das intempéries. dos ciclones. dos dias frios. e do gelo
da vidinha – mas um dia. se tiverem sorte. darão uma
credência d. maria às mãos de um marceneiro – que final feliz para uma vida – e
ali ficamos. dias a fio a olhar a imensidão das árvores. a imensidão do futuro.
o infinito. a contar credências d. maria. a viver a vidinha. a sorrir. a ser um
bocadinho felizes – depois. e como a maior parte dos amigos que levamos para o
nosso terraço. deixam de ver árvores. e o céu desaparece. agoniam no nosso belo
absoluto. cansam-se. arfam. bocejam. arrotam a fim – é a vidinha – os amigos
não passam de humanos com as suas vidinhas. iguais a todos os humanos. mas diferentes
de mim. não por não ser humano. mas por razões que desconheço. ou conheço e não
compreendo. o que sei. mesmo não sabendo explicar. é que num instante absoluto.
ou não. aos seus olhos. às vezes também aos meus. o belo falece. e um deserto supremo
emerge. é como se de repente estivéssemos acampados no saara. e o desespero do
fim amarra-se à vidinha que ainda sobra. como a areia ao vento – agora. eu e
alguns amigos. ou coisa parecida. percebemos que as árvores afinal não são tão
altas como pareciam. e as credências d. maria. não passam de bancos saloios de
três pernas – é quando entra em equação o tempo. essa coisa que muda tudo.
transforma o novo em velho. as ideias geniais em ideias parvas. o pensamento
positivo em negativo. e o belo… num susto – começas a centrifugar-te. cada vez
com mais velocidade. numa circunferência descoordenada. e percebes que o que
era belo já não é assim tão belo. afinal a grande maioria das árvores nunca
serão credências. nem bancos de três pernas. serão somente árvores. nada mais
do que árvores – juntas eram uma floresta. sozinhas não são nada. talvez quase
nada. porque mesmo sozinhas não deixam de ser árvores. existem. mas mais tarde.
ou mais cedo. serão lenha seca. é a sua vidinha. e ao fim de cada dia. o sol
desaparece por detrás de cada uma delas. desaparece para todas. para mim também
– e cada um de nós guarda o seu universo. mais nosso. e deles também. tão nosso.
e deles também. que apenas nós. e eles também. o compreendemos – começamos a
preferir-nos. a querer mais para o que somos de verdade. nem que seja um dedal
de felicidade. um sorriso que dure mais que um instante. que cavalgue pelo
tempo. anunciando a boa nova: chegou a idade do saber – mas se for mentira. que
nos engane com classe. e nos faça acreditar até que o último suspiro caia por
terra. com o verme – percebemos que em qualquer vidinha somos únicos e
fantásticos. é altura de apostarmos em nós. ganhamos coragem. e assim fazemos. metemos
então as fichas todas no tempo que nos falta viver. e cruelmente. deixamos de querer
compreender as outras vidinhas. e dizemos: é a vidinha – voltamos a ficar sós.
como árvore. podíamos ser uma floresta. mas não somos. somos apenas nós com a
nossa vidinha – metemo-nos novamente no elevador e começamos a descer. primeiro
apenas um andar. depois outro. às vezes dois de cada vez. e em cada um dos
andares deixamos sair amigos que connosco subiram ao topo do belo absoluto – é
quando começamos a contar os amigos que perdemos ao longo da nossa vidinha. e
percebemos como é cruel. alguns não gostaram do meu terraço. das alturas.
outros deixaram de gostar de árvores. e outros não gostam de nada. nem de si. é
a vidinha. digo eu – e eu a interrogar-me: porque estão tão longe de mim? juro
que não sei. a mim parece-me que estou sempre mais perto deles – o que sei.
palavra de honra que sei. é que os meus amigos de verdade estão mais perto do
céu do que eu. são especiais. mais tarde ou mais cedo todos serão credências d.
maria. é a vidinha – a minha grande interrogação é porque não fui capaz de os
manter a todos no topo do meu edifício. não pode ser culpa só deles. eu também
me devo ter perdido com a vidinha. talvez por acreditar que nunca seria uma
credência d. maria – é a vidinha. mas esta vidinha. esta minha vidinha.
interroga-me todos os dias: porque raio é que vivo num edifício tão alto? se
vivesse mais perto do chão tudo seria mais fácil. abria a janela e todos
aqueles que me quisessem conhecer só teriam de espreitar. e mesmo que não
gostassem das quinquilharias que carrego. podiam sempre ir passando. porque
afinal estamos sempre a mudar de quinquilharias. e quem sabe um dia. passavam
com outros olhos. noutra vidinha. e até talvez parassem para conversar. e
falassem um pouco da sua vidinha. e eu falaria da minha. falava-lhes do desejo
de um dia ter uma credência d. maria em casa. para por ao lado de um banco
saloio de três pernas – mas é a vidinha. feita de caminhos que nos cercam por
todos os lados. e ali andamos como se fosse uma ilha. com o nosso oceano de
árvores. e de outras coisas que por serem muito nossas. guardamos em buracos
que são o inferno. protegidas por fantasmas. guardiões do calcanhar de aquiles –
e agora. neste caminhar vagaroso. percebo que poucos ficaram na minha vidinha.
mas os que ficaram. os que vivem em mim. sei bem porque os amo. porque todos
eles são credências d. maria – não quero mais portas a abrir e a fechar. quem
entrou é cristal de murano. é para segurar de mãos abertas. é para nos
sentarmos no sofá e apreciar o belo absoluto. amaciar os silêncios. enganar o
verme. e libertar definitivamente as gaivotas. as minhas e as deles – e se por
acaso o tempo se fizer mau. se chegar uma borrasca. abro as janelas para que o
vento me limpe as lágrimas das ausências – sei agora que a culpa da vidinha que
escolhi é minha. só minha. e com ela. um dia. me tornarei invisível – mas agora
também sei. que não posso perder mais ninguém. tenho o corpo lotado de campas e
saudade
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