espero
que a cada dia que passe a solidão se torne num chocolate quente. revigorante e
reconfortante – hoje comecei a ver uma série na netflix – renascer – passa-se
em florença onde uma jovem procura renascer para um novo desafio. estudar arte
– acabei por me lembrar de ti. do teu gosto pela história. pela arte. pelo
belo. bastou isso para me levar de volta a veneza. onde a beleza de séculos resiste
à modernidade. entre canais silenciosos e pontes que guardam histórias.
permitindo que nós quatro fôssemos felizes – nunca tive um amigo que gostasse
de arte. o que. hoje. acredito. foi a minha tragédia grega – a maior parte dos meus
amigos sempre procuraram o belo nas mulheres. nos carros. e no futebol. eram
outros tempos – o que se pode fazer quando somos novos e procuramos aceitação e
sucesso? nada. a não ser. ser um deles. mesmo que muitas vezes num silêncio-crítico
– florença é uma cidade belíssima. onde fruto do meu trabalho me levou dezenas
de vezes. todos os anos. e foram vinte – vinte anos é muito tempo. mas eu não
sabia – o mais engraçado é que. durante a visualização dos episódios.
teletransportei-me para florença: passei a revisitar alguns daqueles lugares
mágicos. e senti uma nostalgia que era quase dor – queria mesmo estar lá. no
berço do renascimento. sorver toda aquela magia da família medici. de leonardo
da vinci. de michelangelo. do campanário de giotto. da cúpula de brunelleschi. da
ponte vecchioe. e o inesquecível pôr do sol na piazzale michelangelo com o céu a
adquirir as tonalidades de laranja. rosa e paz – mas o mais engraçado. ou
talvez não tão engraçado assim. é que percebi que daquele miúdo não resta nada.
digo. quase nada. cresci e fiz as pazes com o tempo e com o novo homem que
despertou em mim – hoje. nesta série que é um romance entre dois jovens. compreendi
que vi mais de florença sentado no meu sofá do que em todas aquelas viagens idiotas
– sempre procurei o belo. mesmo quando trabalhava a confecção das peles. mas
infelizmente não sabia nada de arte. talvez me faltasse uma amiga para me
apontar o belo dos artistas. das sombras e da luz – dizem que o meio onde
crescemos acaba por determinar o que somos – acredito que seja essa a minha
verdade. nasci numa fábrica. filho de patrão. mas nunca me senti patrão de coisa
alguma. nem de mim. mas era o meu meio. a família sempre foi o único lugar onde
me senti perfeito – mas é o que é. e com o desenrolar do filme. dei comigo a
magoar-me por cada ano estragado. e a interrogar-me: quanto tempo me sobra para
ser o que quero ser – não sei. como ninguém sabe. mas sei que não devemos
estragar o que a vida nos oferece. e no meu caso. não foi pouco. mesmo sentindo
que não foi totalmente justa – lá terá as suas razões – e. agora. cheguei a uma
idade que já não aceita renascimentos. o novo homem envelheceu. cresceu em
demasia – a memória é a única fonte de conhecimento. eu tenho a minha. e esta
leva-me ao arrependimento. tardio bem sei. mas é ao que me apego. descobrir em
mim os enganos para que os meus filhos os contornem sem sobressaltos – mas se
não fosse este caminho. duro. e eu sofri imenso. ainda sofro. mesmo já se
tornando um hábito que aparece todas as noites. e se cura com o amanhecer. ou
com uma aspirina de fé. como teria conhecido tanta gente boa que passou por mim
e vive em mim – é a isso a que me agarro. às pessoas que me chegaram por bem.
aos amigos que me aceitam como sou. à maria joão. minha companheira de riso e
sofrimento. aos filhos que são uma bênção. às noras que adoro. e agora aos
netos. que me tornam pai duas vezes – é o que me sobra para ser feliz. e não é
pouca coisa – e quando te escrevo este pequeníssimo desabafo estou a ser feliz
– tu e o teu companheiro fazem parte das minhas boas memórias – foi pena não
vos ter conhecido trinta anos antes. talvez me procurasse melhor. quem sabe.
florença tivesse sido a cidade que encontrei hoje – amarremo-nos então ao que
sobra. às vezes acho que é pouco. mas talvez esteja a ser mal-agradecido – falta
de gratidão seria tão grave como perder a memória. pois ambas são fontes de
conhecimento que devemos preservar – é na memória que guardamos todos aqueles
de quem gostamos – saber que existiram na minha vida é fazerem parte do meu
belo
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