diz-se
que todo o homem. bravo ou amedrontado. percorre a estrada que a fortuna lhes
traçou – é assim. nada mais do que assim. somos o que somos. nascemos para ser
o que somos. o livre-arbítrio ou liberdade de escolha. é apenas um truque para
nos culpar. ou desculpar de um qualquer erro. e para os crentes. absolver deus
da sua criação – para santo agostinho o livre-arbítrio é a própria vontade. e
apenas a possibilidade de escolher entre o bem e o mal – todos os dias fazemos
as nossas escolhas. às vezes bem. outras. carregamos as costas com
arrependimentos. que por serem isso mesmo. arrependimentos. já não tem remédio
– na filosofia o determinismo opõe-se ao livre-arbítrio. defende que são os
nossos atos que determinam as escolhas que fazemos – para o determinismo o
homem é o único responsável pela estrada que constrói – eu tenho a minha
estrada. feita apenas por mim. e agora sei que para trás já não posso voltar. também
já não encontraria nada com valor. prefiro o caminho que faço hoje para chegar
ao dia seguinte – vou tentar encontrar-me com a minha natureza. perdoar-me e perdoar.
amar os amigos que trouxe até aqui. e enroscar-me nos abraços dos meus
filhos. é deles que ouço a mais bela de todas as palavras: pai – e quando as
estrelas se acenderem no céu. deito-me no colo da minha companheira. e peço a
deus. ou ao universo. que me leve sem temor. que chore ela. mas que eu não
ouça. que os tímpanos rompam e os olhos ceguem – é a sua paz. bondade e tranquilidade
que quero levar para a viagem. senão a minha estrada ficaria sem sentido –
muitas das minhas pedras-caminho foram colocadas por si. com coragem. com
sacrifício. com dor. com paixão. mas principalmente com uma vontade enorme de
me amparar – caminhamos lado a lado quarenta anos. parece muito. mas não. preciso
de mais quarenta. e então sim. posso morrer nos seus braços e ela nos meus – o
amor só faz sentido quando tem um sentido – nós fizemo-lo ter quando
construímos a nossa família. agora maior com a chegada das noras e dos netos. e
outros que um dia chegarão – a família é o centro de todos os estímulos – a
minha companheira tem tudo o que falta em mim. completa-me – juntos fundimo-nos
em compromisso. respeito. verdade. lealdade. e companheirismo – e nas amarguras da
nossa estrada. feita por nós. abraçamo-nos. chorámos juntos. e adormecemos um
no outro – e ao nascer do dia nasce também uma nova esperança. renovada em fé.
a dizer-nos: levantai-vos e caminhai – e assim fizemos. caminhamos. e assim faremos
até que o caminho finde. e os corpos se desfaçam em pó
P.S. “filosoficamente
o livre-arbítrio opõe-se ao determinismo. defende que são os nossos atos que
determinam os acontecimentos de hoje. o homem é o único responsável pelos seus
feitos – mas recentemente os deterministas ganharam um reforço de peso. o dos
neurocientistas – experiências recentes realizadas por cientistas mostraram a
existência de atividade cerebral antes que a pessoa tivesse consciência do que
iria fazer – o livre-arbítrio não é mais do que uma ilusão”
hojeseria o dia
perfeito para me encontrar com a minha mãe. sinto a saudade amargurada – ouvi
dizer que está calor. e que os entendidos aconselham a beber muitos líquidos.
mas eu não sinto nada. nem calor. nem frio. talvez uma pequenina arritmia no
coração. ou a falta de uma fala. ou uma cadeira de encosto virada para o mar –
sempre precisei do mar por perto. o mar relaxa-me. sossega-me. desfadiga-me. e também
gosto da forma zangado como abala do areal. para logo de seguida voltar pé ante
pé – gosto das gaivotas. da sua ligação íntima com o oceano. e da forma como
cortam o vento. parecem toureiras com asas. corajosas como ulisses. aliadas de
bóreas. e livres de convenções. os dias pertencem-lhes por inteiro – gosto de
enterrar os pés na areia para não ir a lado nenhum. ficar sozinho comigo. a
escutar-me. e sempre que me escuto acrescento-me. encontro sempre alguma caixa
perdida de bugigangas. é quando as gaivotas se precipitam na imaginação. tão
doidas como eu. e começamos a contar grãos de areia. a separá-los. os
arredondados para sul. e os que tem arestas para norte – é nesta loucura de
contas duvidosas que me agarro à liberdade das gaivotas. e voo sem destino.
livre de interrogações e dúvidas. e sorrio ao me ver. desigual por ser apenas
eu na minha realidade – quando estou com a cabeça no ar é quando gosto de mim.
e me interrogo: porque não posso sentir na terra o que sinto a voar? mais uma
vez a resposta é não sei. talvez seja da gravidade. do peso do céu no cérebro.
ou cresci demais. e já não me esgueiro das pessoas como antigamente. não posso.
são reais. andam sempre com os pés acorrentados à terra. e sobrevivem sem
interrogações – o que sei mesmo é que quando estou junto ao mar. com os pés
enterrados no areal. para não poder fugir de mim. fico como se não existisse. e
são as gaivotas que me ajudam a voltar à realidade que. inevitável. faz de mim
menos humano. digo. sobrevivo a competir diariamente comigo e com as minhas
interrogações – gostava de voltar à puerícia. quando partilhava o areal cheio
de ilusões. e onde construí castelos e desejos maiores do que o empire state
building – hoje era o dia perfeito para me encontrar com a minha mãe. sinto a
saudade a segredar – se lhe encontrasse as mãos talvez o meu rosto pudesse
sorrir ao me ver. ou sossegar por apenas ser – para uma mãe somos sempre
superlativos. perfeitos. futuro. esperança – mas a esperança não existe quando
o mundo que construí está incompleto. mas que posso eu fazer? nada. é na
imperfeição que sou. é na imperfeição que deixo de ser. e entre me ver como
sou. e o que não consigo ser. há um caminho que é somente meu. é a minha vida.
e em cada lamento. em cada pedra pisada. a interrogação de muitos: porque raio
foste por aí? não sei. talvez pelos ais que me tornaram mais piedoso. talvez
para viver num corpo que não sorri ao se ver. talvez pelos sacrifícios. ou
pelos desencantos. ou para sossegar por apenas ser – hoje era o dia perfeito
para me encontrar com a minha mãe. sinto-a por perto – se lhe pudesse falar
dizia-lhe que foi muito bom nascer nos seus braços. e que gostava de ter a sua
capacidade de trabalho. do seu cuidado em unir a família. de a alimentar de
perseverança e coragem. e de me chamar até ao último dia meu filho. foi quando
cortamos o cordão umbilical – mas não posso minha mãe. não nasci com esses
desígnios. restam-me as memórias. e as fotos que a fazem visitar no meu cosmos
– nascer é muito complicado. crescer é um drama. e envelhecer um terror. mas é
assim para todos. eu estou nesta leva. apenas com mais interrogações – e mesmo
que fizesse um buraco até ao outro lado da terra. e me erguesse de mim para ser
maior. eu seria o que sou. falava a língua de camões. em verso ou em prosa. de
pé ou de rastos. a sorrir ou a lamentar-me. sou o que o destino fabricou – todo
o meu passado foi ontem. e tudo foi tão rápido – hoje sei que sou apenas uma
brisa que vai passar – agora. o meu futuro é falar com os fantasmas que me
ocupam o corpo e a mente. entendermo-nos. acertar contas antigas. aceitá-los. e
dar-lhes um quarto com uma janela para fora de mim – e quem sabe as gaivotas me
pousem nas pontas dos dedos. e me ajudem a escrever outra vida. sorrir por
apenas ser. aceitar-me por apenas ser. e viver como as gaivotas. livres. surfar
o vento. toureá-lo. e um dia. lá para depois de amanhã. poder morrer como
sempre desejei. em liberdade – como diz eduardo lourenço. mais importante que o
destino. é a viagem – eu vou dentro de mim. só não sei para onde. mas algum
lugar me há de albergar
“Neste
exato momento – é assustador – se eu existo é porque estou horrorizado de
existir. Eu sou aquele que me puxo do nada a que aspiro. Você acha que eu conto
os dias? Resta apenas um dia, sempre recomeçando: nos é dado de madrugada e
tirado de nós ao anoitecer” jean-paul satre – lutamos por mais um dia. e no
escuro resistimos à decantação do cérebro. rodeamo-nos do que sobra. injetámo-nos
com um ponto de luz minúsculo. giramos os olhos para dentro. acionamos o modo
de contenção de danos. e por ali ficamos a fingir que dormimos. a suster a
respiração. a cavar o que é nosso. a enterrar os dedos nos ossos. até que uma
descarga de saudade nos faça voltar ao que amamos. que é dor também – tal como
o solstício de inverno nos presenteia com a noite mais extensa do ano. também o
escuro traz à alma o medo e a tristeza mais extensa em mim – é assim sempre que
o dia se esvai. e eu… por ali ando. a escurecer aos bocadinhos. até que a noite
se funda em mim – pela manhã. quando a luz desperta os olhos para o mundo das
vontades. o corpo. essa coisa enorme que me carrega o medo. esperta para mais
um dia também. apenas mais um dia – e o corpo vai. e leva o cérebro para recomeçar
tudo o que foi interrompido. que é apenas ser. nada mais do que ser. não
importa o quê. ser unicamente – e vai pela pressa. o caminho das vontades é que
faz o destino – passo a passo vou sem querer ir a lado nenhum. como direi? vou
meio hirto. meio curvado. a olhar para o que vem de encontro. mas fico sempre
por saber. se o que vejo é o quero ver. ou se me é imposto pelo caminho –
talvez sejam as duas coisas. afinal. eu sou mais um deste mundo. peregrino da
minha própria crença. do meu próprio versículo: “não me peço para sair deste
mundo. mas que me livre do mal que há em mim – sou do mundo. como eu do mundo
sou – santifico-me com a minha verdade; a minha palavra é a minha verdade” – perdoem-me
por tomar as palavras de são joão batista. mas tal como ele. eu também sou um
peregrino deste mundo – vivo a minha própria crença. a que me releva. e também
releva o que os outros me entregaram. que recebi como dádiva. então… eu só sou
o que sou. porque os outros entraram em mim – eventualmente. sem perceber que
também eles tinham a sua própria crença. que o senhor deles. e eu. revelamos
por vontade – pertencemos todos a este mundo. e todos somos o que todos se
fizeram. às vezes fizeram-se bons. às vezes maus. mas se somos todos de todos.
então os maus estão perdoados. por serem também um pouco de todos. e deste
modo. de mim também – e o que é mau em mim. é também dos outros. que posso
fazer. se o mundo é assim. esta centrifugação louca que nos faz desunir. e nos
faz existir tal e qual como somos. como todos somos – bem sei que às vezes
demora a encontrarmo-nos. mas é o que é. o mundo tem o seu próprio tempo – e
eu. neste mundo. não sendo nada. sou também o que me calhou em sorte. ou por
vontade – é o mundo. o meu mundo. que começa em mim. e acaba para lá do que não
vejo – no escuro. ou no caminho das vontades. sou o que posso ser e o que os
outros me ofertaram do seu caminho – o que me alivia a pena. que é do tamanho
de uma cesta de roupa. é que à noite posso morrer novamente como sou. tal e
qual como sou. e com o que sonho ser – mas vou. levo comigo a invisibilidade. ninguém
pode desdenhar do meu corpo. o que me restaria se perdesse o invólucro que sorri?
como engaria o mundo? não é fácil viver. ou sobreviver. resistir. ou aparecer
sem pungimento. e os noturnos de chopin a chorarem por mim. enquanto os olhos
padecem de uma solidão cheia de gente – tomara que um dia me preguem dois
pregos nas pálpebras. e assim possa fingir que vejo o que mais ninguém quer ver
– esta espera é desespero. e o fio da navalha nos pulsos a matar as vozes. a
engolir os atalhos. a tocar as cordas da incerteza. só pela noite sou o que
sempre quis ser – para que preciso de mais um minuto se a hora de sonhar não
chegar? para que quero ver as gaivotas a voar se a sua prisão é feita de mim? que
raio de alma pede castigo e vento? que raio de alma pede para ser o que não sabe
ser? que raio de alma obriga o corpo a caminhar aonde nunca vai chegar? não
sei. lá terá as suas razões. talvez sejam as razões de todos. dos que me entram
no corpo. ou do mundo com o seu tempo. ou talvez eu seja egoísta. egocêntrico.
ególatra. sei lá que mais – alma malvada? às vezes. mas que lhe posso eu dizer
para a melar – prepotente e tirana? também. mas que posso eu fazer para a
aliviar das pedras que carrega – sem perdão? não. senão estava a condenar quem
comigo caminha. já que sou de todos. e com todos caminho – mas mesmo que haja
outro destino. e esta vida que consumo seja apenas purificação. ou
aprendizagem. ou sei lá. qualquer coisa que ainda ninguém sabe. eu vou até onde
chegar. mesmo teimando e doendo – o que sei. e é tão pouco. é que quero ser o
que ainda não encontrei. sei que está algures por aí. sei… porque sinto falta.
e só se sente falta quando o sono é leve e a alma aparece – mas se assim for. o
que me espera? que vida viverei? apenas um dia nesse outro mundo? mais do que
uma hora? mais do que um mês? estou sempre em cotejo. como se dentro do que sou
houvesse dois lados: o lado morto onde sou feliz mesmo
não sendo o que quer ser. e o lado vivo onde sou vontades sendo o que não quero
ser – o lado morto resigna-se ao que tem e sonha. e o lado vivo procura o que
não sabe se vai encontrar. e suporta as vontades sem quantificar o tamanho da
dor – é o meu princípio de incerteza heisenberg – quando se conhece a
grandeza da dor. perde-se completamente o sentido da vida – e vou por mim. como
se não houvesse mais nada para onde ir. e com prazer ou terror. vou à
descoberta. às vezes com espanto. às vezes apenas com a curiosidade de saber
quem sou. e para cada descoberta. o padrão dos descobrimentos a marcar a minha presença
naquele bocado meu – e depois de me descobrir. de colocar ordem na desordem.
luz na ignorância. parto para o que me resta do mundo. do meu mundo. que é
enorme. digo eu. que o imagino do tamanho de um continente. e levo a boa nova.
que às vezes sou somente eu. diferente apenas por saber mais de mim – e a minha
invisibilidade sempre tão perfeita. é agora. coisa perdida no achado – tenho
medo dos homens. que são também um pouco de mim. mas não tenho medo do que
descubro em mim. compreender-me é a minha última viagem pelo mundo das vontades
– a palavra que me ocupa o corpo é: falta. falta. falta… falta saber ainda mais
de mim. mas confesso que não tem sido fácil. talvez por ser enorme e cheio de
cantos e recantos.por isso me procuro. às
vezes em mim. às vezes nos outros – mas se só sentimos falta do que já tivemos.
expliquem-me os outros. que são quase todos sábios. porque é que sinto falta do
que nunca tive? e porque quero ter o que não sei se existe? – talvez intuição.
talvez pressentimento. magia. um dia destes deito as cartas. ou búzios. a
resposta estará em algures – sou o que sou. nada mais. digo eu. por não ter
conhecimento para dizer mais nada – o meu lado vivo resiste
onde sou vontades e procura o que desconhece. mas no entanto. não inveja o lado
morto. que não sente falta de nada. e é feliz com o que lhe oferece os sonhos –
é este vai e vem de tristeza de um lado para o outro que mantém o morto a
querer viver. e o vivo a querer morrer – amarra-me à vida uma única lei: a luz
das minhas noites é a testemunha dos meus dias de escuridão – acreditamos que nascemos
para ser felizes. e não é verdade. não é possível ser feliz. apenas é possível
ter alguns momentos de felicidade. o nosso cérebro não foi trabalhado para nos
tornar felizes. foi antes para nos manter vivos – anders hansen. psiquiatra
sueco. diz que devíamos olhar para o mundo e para os problemas “através das
lentes do cérebro” – diz-nos também que temos um “cérebro da idade da pedra” e
que não está organizado para nos tornar felizes: “A principal função do cérebro
não é fazer-nos felizes, mas nos manter vivos. A coisa mais importante que você
pode aprender sobre o cérebro é que ele não mudou durante os últimos 10 mil
anos” – começo a compreender o meu cérebro. afinal apenas me quer manter vivo.
e está a conseguir – vou pelo caminho das vontades. às vezes de vagar. outras.
a fugir de mim. para encontrar o que quero ser. tal como o burro vai atrás da
cenoura – o ontem apenas existe porque somos capazes de usar o nosso cérebro.
tudo o que pensamos torna-se automaticamente em passado. e o presente. é a
caixa onde guardamos os raros momentos de felicidade. e que existe para tornar o
futuro mais agradável. menos sofrível – este. só existe se formos capazes de
nos libertar das pedras. mas se não formos suficientemente audaciosos. então o cérebro
deixará de nos manter vivos. escolhemos o nada – é o cérebro que nos comanda.
há uma alma dentro dele. que faz de nós o que somos. únicos e especiais. se não
o formos para mais ninguém. é para ele que nos lidera. que nos ensina a não
desistir – e naqueles dias em que o escuro é o fim do destino. o cérebro não
desiste. mesmo que estejamos a respirar dor. ou sem amor próprio. ou sem… sei
lá. um vazio. um buraco negro que nos suga para o nada. mas a nossa massa
cinzenta. como dizia hercule poirot. sempre a lutar. às vezes a provocar. como
se tivesse uma vara com um agulhão. e nos tangesse com dureza. como se dissesse:
toca a andar para o futuro. o passado está na ponta da vara – e lá vai ele
processando o que somos. porque o que não conseguimos ser. resiste na
esperança. na resiliência. na capacidade de sonhar. de amar. e de nos
perdoarmos por ser apenas o que somos – e o cérebro. essa máquina maquiavélica
e ao mesmo tempo fascinante. lá continua a fazer futuro. de picareta na mão. a
escavar cada neurónio. a fazer cada vez um buraco mais fundo. mais dentro do
que somos. para que quando não aguentarmos mais… possamos nos esconder dentro
dele – e mesmo que os corvos poisem no ombro. a nossa luta para procurar a
felicidade será sempre o único caminho para chegar mais adiante. e viver.
apenas viver o presente porque só este controla o tempo do cérebro – a
felicidade não existe como um todo. existe a chuva. o vento. a terra. o fogo. e
outras coisas que não sei explicar. mas a felicidade é apenas o truque que nos
ilude para resistir ao caminho. e alcançado. logo a perdemos. porque queremos
mais. queremos mais caminho. e assim voltamos à infelicidade. para voltar a
procurar o que não sabemos se vamos encontrar – somos procura. somos exagero. mas
também somos feitos de uma benquerença que nos faz acreditar. e muito. e que
numa das extremidades do arco-íris. há um trilho que nos leva a ver como
realmente somos. e principalmente. que papel desempenhamos nesta passagem
terrena – e a chave mestra até então pendurada num erro trágico. agora… pendurada
numa exatidão atómica. que no vagar interstelar. nos abrirá o cérebro até à
fusão dos átomos. que eu quero acreditar. que foi na barriga da minha mãe – e
assim. finalmente. nos mostrará definitivamente a razão de termos nascido. crescido.
de termos aprendido a sonhar. a amar. a compreender o valor da simplicidade e do
belo. de termos resistido. suportado as pedras. o medo e a invisibilidade – e a
resposta. creio eu. será a família. a que me fez nascer. e a que fiz a partir de
mim – eles são a razão porquê resisti quando tudo dentro de mim se desmoronava.
quando o belo não passava de uma careta. e o corpo. o meu único corpo. desfeito
de sentido – a felicidade não se guarda. se a tentarmos guardar implodimos. por
isso a atiramos ao ar como fogo de artifício. e adoramos vê-la explodir nos
olhos de quem por nós passou. às vezes vaidade. às vezes apenas vontade de
dizer: hoje sou feliz. sou eu o feliz contemplado. e tu. que és também um pouco
de mim. resigna-te. já tiveste a tua poção mágica. bebe a minha. junta-te a
mim. pois não é alma de bem quem não se alegra com este meu raro contentamento.
e que também é teu – e por cada estoiro no ar a certeza de que amanhã haverá
mais um dia. e o que me faz feliz hoje. fará amanhã a um outro – a felicidade é
para entregar a quem precisa. não podemos guardá-la. ou escondê-la. seria uma
ironia iconoclasta se o tentássemos. correríamos o risco de deixar de estar
vivo. de perdermos o belo. o sorriso das coisas simples – eu tenho sempre muito
medo de ser feliz. não é culpa minha. é coisa do caminho das vontades. ou do
destino. e quando ainda vivo a felicidade. já me interrogo qual será o seu
preço. que mal me chegará para voltar a ser eu – sinto esta coisa medonha.
maldosa e matreira. uma ignomínia. como se perdesse a sombra. e um homem sem
sombra não merece nada de bom. mas sou o que sou. nada mais – às vezes. naqueles
dias especiais em que estou a gostar mais de mim. ainda tenho a ousadia de
pensar que a mereço. e digo-me: o que já sofri não é recompensa para este laivo
de luz e paz. e aceito-a. afinal. a cavalo dado não se olha a dente – mas o
importante mesmo é que o cérebro teime com o corpo. que liberte as pedras. porque
dentro do cérebro não existe uma pessoa. existe uma alma que é uma multidão. uma
alma que é feita de todos aqueles que acordam para mais um dia. apenas mais um
dia – e sim. é assustador. temos apenas mais um dia para nos absolver de todas
as pedras. de todos aqueles que nos tomaram o corpo para pesar. de todos
aqueles que por serem de todos. se fizeram assim como são. nada mais do que o
que são – sei agora que para sobreviver precisamos de estar infelizes. se não
estivéssemos infelizes. não mais procuraríamos a felicidade. e sem essa
necessidade. absoluta. ficaríamos parados. e o mundo parava. todos os cérebros
paravam. não haveria mais poetas. mais escultores. mais pintores. mais
pianistas. os pássaros deixavam de voar. os peixes de nadar. a lua caía no mar.
e os cães deixariam de ladrar e de nos amar incondicionalmente – o mundo ficava
plantado de espantalhos – eu tenho amor pelo certo. pelo saber. mas
tragicamente. sou viciado na dúvida. desorganizo-me. remexo os papeis.
espanto-me. e depois. para não ficar louco. curo-me com o que sobra de mim: e penso.
porque pensar é conversar com a alma. e a minha resiste no cérebro – “Acredito
que a teoria de tudo na vida de cada pessoa não envolve explicações
científicas, mas sim um sentimento chamado amor, e se você já amou vai entender
o que digo, apesar de que nem tudo precisa fazer sentido, você tem que
compreender que onde existe amor, sempre existe tudo - jane hawking” – sem os
outros todos seria apenas eu; a mesmidade seria insuportável – “dalí se valia
daquilo que batizou de método paranoico-crítico. e que consistia em tornar a
subjetividade o principal aspeto da obra. deixando a racionalidade de lado. uma
tentativa de representar o fluxo do inconsciente e dos sonhos” – eu também aderi
a este método
adorei o nosso almoço de família – adoro os meus filhos. adoro as minhas noras.
os meus netos. a lurdes. e adoro a casa que nos cobre a todos – a minha família
é a minha vaidade. a nossa vaidade. e a maria joão a fada que nos faz brilhar
mesmo nos dias em que o sol se esconde para descansar – nestes dias em que nos
alinhamos todos com a vida. sei que sou um homem feliz. muito feliz. e se um
dia me perguntarem que obra esculpi com arte nesta existência em que resisto. a
resposta é facilíssima: a minha família – a minha casa é um castelo mágico. onde
fadas e duendes vivem a sorrir – os meus pais deram-me o caminho. eu
acrescentei outro. e agora que se faça luz e bondade no que é meu. e cumpramos
todos a nossa missão: manter o farol aceso e o caminho que herdamos iluminado
mais um
dezassete. mais um março. mais um ano – já passaram vinte e seis anos que o
vosso avô partiu sozinho. envolto no branco do hospital. sem que ninguém pudesse
acompanhá-lo no adeus. sem que uma mão o conduzisse ao céu – ano após ano. e
sem que a saudade desvaneça.esse dia repete-se
incessantemente em mim. é uma chaga que nunca fechará – viverá enquanto eu
viver já que nenhuma absolvição serenará o meu pesar – faltou uma última
palavra em sua casa. nossa – um último beijo. nosso – e um até sempre. nosso –
tínhamos ficado em paz. nós todos
“*há sempre um grande arco ao fundo dos meus olhos... a cada passo a minha alma é outra cruz” – que posso então esperar de mim agora que o arco do tempo está a achatar e a cruz que carrego a pesar? construí-me em dúvidas. e com elas produzi medo. ausência e silêncio – será que a origem das dúvidas reside numa racionalidade que lhes é exclusiva e autônoma? será que com a idade as dúvidas tendem a tornarem-se mais complexas? será que com a idade preferimos não ter dúvidas e encontramos respostas na religião. no ateísmo. ou no universo? não sei. como não sei uma imensidão de coisas. mas acredito que com o envelhecimento precisamos cada vez mais de nos de nos conquistar definitivamente. de nos conhecermos com coerência. de nos amar incondicionalmente – envelhecemos. e começamos então a catar as dúvidas morfológicas e anatómicas. estas com prioridade. e uma a uma. com cuidados de cirurgião. dissecamo-nos. expomo-nos. libertamo-nos do medo. mostramos o que somos. nada mais do que o que somos – tal como antigamente as mães catavam piolhos nas cabeças dos seus filhos e os exterminavam unha contra unha. também eu cato as minhas dúvidas. mas não as extermino. aprisiono-as. acorrento-as ao que me sobra de lucidez. injeto-lhes aceitação. suportação. e também conformação. afinal são as minhas dúvidas. geradas e criadas em mim – nietzche dizia que devemos ter o caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante. eu já sou um caos. mas no lugar das estrelas tenho as dúvidas a dançar sobre mim – as dúvidas sufocam-me. desesperam-me. magoam-me. mas estou cada vez mais certo de que não seria o que sou sem elas. sem o seu caos. sem a sua energia interrogativa. e também sem a crueldade com que me levam à desesperação para me encontrar com o que sou hoje – só não tenho a convicção de que alguma vez levarei todas as minhas dúvidas à certeza. velejo águas sem fronteiras. aflitas. angustiadas. bem sei que sempre foi assim. e o que nasce em dúvida. tarde ou nunca será certeza – nesta forma maldosa de viver. inventada por mim para que a ausência se faça o mais tarde possível. vivo a verdade que sou a cada noite. e quando o sol range. e a mentira regressa. percebo pelo tino que me resta que nada em mim é certo. viver o que não sou é um castigo só compensado pelas dúvidas que alimentam a noite – sem dúvidas seria um monstro. um vegetal. um ser inanimado. uma pedra pendurada num penhasco à espera de uma rabanada de vento – tal como olbers. também eu quero acreditar que se a minha mente fosse estática e repetitiva. nunca teria conseguido construir-me assim como sou. talvez se me aplique o mesmo princípio do seu paradoxo – as minhas noites são escuras. frias. solitárias. imersas em dúvidas. em dor. e o corpo de um lado para o outro. da cadeira para o tártaro. da cama para o tártaro. de mim para o tártaro. e do tártaro para dentro do que não quero ser. e o corpo inchado de coisas inúteis. enorme. como se tivesse prenho de umas quantas vidas. quase todas dispensáveis. quase todas sem valor de mercado – o meu corpo é um género de tabopan. um aglomerado de dúvidas prensado pela vida que me suporta. e também pela minha parca sabedoria. cheio de incertezas e medos. sempre a procurar um fim. e elas a nascer sem ordem e saber. e eu a perguntar: porquê? são minhas por quê? talvez a resposta seja são minhas porque são. ou talvez porque me fazem expulsar o que não sou. para tentar ser o que quero ser – *“o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é” e este eu. quase invisível. e que habita dentro da ausência. medo e silêncio. não precisaria mais do que um caderno de linhas para se tornar parte das coisas reais – nestas noites embrulhadas em dúvidas e mistérios. a única companhia que suporto é o conhecimento que não tenho. o de mim também. e que me faz procurar nas incertezas o que sou. porque sou. ou o que poderia ter sido se… e mais se… e mais se… e mais se… mesmo sabendo que o se será sempre uma equação com resultado infinito e variável – mas mesmo este resultado imperfeito. está sujeito a vários tipos de contaminação: se crescermos em família ou com amigos. se estarmos sós ou acompanhados. se é noite ou dia. se temos fé ou descrença. se temos dúvidas ou certezas. se vivemos na terra ou na lua. a invisibilidade que sou. e que acredito ser genuína. é a minha impressão digital. o meu nome. a antimatéria reconhecida por todos que me rodeiam – sendo invisível não existo. resisto no meio de quem é visível – quero acreditar agora. com o meu calendário em quarto minguante. que sou o que posso ser. e nunca serei mais do que isto que escrevo. e também sei que serei muito menos para os que me leem – mas depois. obstinado. procuro soluções. e mergulho nas dúvidas. às vezes como se fossem um chá quente reconfortante. outras. fico em nada. desintegro-me molecularmente. e crio um novo paradoxo: e se a minha invisibilidade fosse de tal forma gigante. do tamanho do universo. não fosse finita. nem estática. e todo o conhecimento que sei existir em mim. sendo pouco. mais as dúvidas. sendo muitas. porque não há saber sem dúvidas. fosse uma fonte limpa de produção de energia. sendo a invisibilidade o seu combustível. reproduzida assexuadamente. sem necessidade direta da minha inteligência. sendo assim capaz de produzir os seus próprios interesses. os seus próprios desafios. os seus próprios medos. as suas dúvidas. isto é: eu. assim como sou – a minha invisibilidade é a minha força. mas **“o meu pensamento sou eu: é por isso que não consigo parar” – construí o meu universo escuro. que mais não é do que o meu quarto de pânico. e que tal como uma ventoinha eólica apenas precisa de vento para produzir a sua energia: eu preciso de invisibilidade para resistir ao que sou – e eu. invisível. que nada produzo para além de energia interrogativa. a respirar contradição dolorosa. morro para adormecer. morro para que o vento não chegue à eólica. e quando o tártaro me regurgita. acordo para viver – é esta energia. esta força invisível. que aceito como minha por ser feita do meu pensamento. que me faz nascer renovado com a luz. e morrer com o escuro. e enquanto não faleço de vez. resisto a todas dúvidas com mais dúvidas – nenhum homem. mesmo feito de nada. pode descansar se não tiver um interruptor para as suas assombrações. uma mão que se despeça da mente e nos faça falecer em calmaria. porque enquanto está falecido não quer saber se o sol nasce ou não. se o pecado existe. ou não. se a estrada é certa. ou não. se o amor por mim é verdadeiro. ou apenas a ferramenta para me manter vivo – olbers fabricou um paradoxo para o universo. eu fabriquei um paradoxo para mim: porque quero viver se é a morte que me ilumina os dias? bem. não tenho certeza. talvez porque é no conhecimento da mortalidade que encontramos clareza sobre a vida – a morte é apenas o nada imortalizado. continuar vivo é sempre uma opção. a não ser que fosse tetraplégico. ninguém nos proíbe que nos atiremos de um himalaias. ou que sufoquemos com um nó de amor. ou nos enrodilhemos num oceano. é sempre menos custoso falecer do que viver – sempre que o sol desaparece unge-me saudade. e tal como um samurai se prepara para a batalha. também eu me dobro sobre a terra que me suporta e honro os pais da minha luminosidade. e mesmo que esta honra não lhes traga glória. e não sabendo eu se a alma é eterna depois de perder o corpo. enquanto resisto às dúvidas terrenas. acredito que o nome que me deram não foi em vão – mas confesso. gostava de saber que dúvidas são estas que me levam ao nada. pois mesmo que o amor me sobre em cada pegada. e o desejo de caminhar se prenda às pernas. e o destino a soma de todos os passos. sei que sou o que vivo na terra das vontades. e que me faz ser o que sou às vezes não sendo. e mesmo que um dia me falte a estrada. mesmo que a curva seja eterna. é o meu nome que perdurará em cada pegada que inventei – descobri no escuro das minhas noites a luz que me ilumina a vida – procuro a minha verdade. o que presta e o que não presta em mim. tal como nos pede miguel torga no seu poema. quantos seremos
às vezes
sinto que já faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem
vida. e a mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma
razão para não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou
vivo – a luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que
está ao seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiadamente fragmentado
para brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por
desespero. deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo que me faz viver. e a
cada amanhecer ressuscito para tudo que me faz morrer – no escuro sinto-me
sempre tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira
para me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite –
pé ante pé. adentro para a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo.
terror e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e
morro quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes
injusta. às vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um
pequeníssimo estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é
o destino que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia.
sem mais adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos
desrespeitar. é como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de
certezas. uma oração que nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o
que era dúvida é agora uma oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e
enquanto esperamos por esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar
devagarinho para que ninguém nos ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir
porque o seu contrário é covardia. a soletrar o nosso nome baixinho. a marcar
dias no calendário para assegurar que fazemos parte do mundo sensível – é
quando tomamos o silêncio como o último amigo. tudo o que for dito no desespero
da noite pode tornar-se letal com o nascer do dia – adiamos as dúvidas. as
promessas. as orações. o vento às gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não
possa mais dizer: quero falecer – quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a
valer nada. dou como certo a chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso.
e sofro. e a dúvida é se o meu padecimento é resultado da minha essência. ou
das escolhas que realizei por vontade – não sei. como poderia saber? mas para
cada desafio diurno terei o que sempre tive. audácia e esperança. talvez por
ser insignificante. e não caber em mim mais nada – e para cada himalaias apenas
um passo para a frente. e a certeza de que dor besta só me vencerá se o cume
não alcançar – se não fosse insignificante não haveria himalaias. as montanhas
existem para pessoas como eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam
bissetrizes até ao princípio do mundo. remexem o passado para nada mudar. e no
topo da minha capela sistina. uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me
teria aceitado para seu aluno – resta-me resistir. pensar para existir. pensar
para não falecer – a minha noite está em oposição à infinitude da mente. é como
se o medo abstrato. filosófico. ou metafísico se tornasse real. como se tomasse
o corpo e o mergulhasse em ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito
próprio. me corroesse os ossos e me desfizesse em prantos – insignificantes.
bem sei – que mais poderia ser do que prantos insignificantes? creio que nada –
escondo-me na escuridão. preciso e amo as noites. à noite ninguém me vê.
ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à noite sereno-me. procuro-me. procuro
também as dúvidas. e para cada uma. mais mil a trabalharem em mim. todas
impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror. e a única certeza dentro desta
devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas. e por fim. descarnado.
desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional. apenas uma certeza: amanhã
tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou sem. com perdão ou sem. caio
definitivamente no meu abismo. e faleço por uma vontade que não pode ser
contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta que me faz falecer no escuro.
e depois. com o nascer do dia. ressuscito para poder morrer novamente – mas no
dia em que morrer de vez. quando viajar para outro espaço sem dor e medo. sei
que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma estrela no céu confiscará o meu nome.
nenhuma luz na terra alumiará a minha falta – já não tenho mais prantos. já não
tenho mais nenhum dote que me permita comprar uma vírgula para mudar a
história. terei que viver com dúvidas. e com a minha preciosa insignificância.
assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um voo para morte. é como se
me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50 anos e andasse estes anos
todos à procura de um local para cair – não se morre com o impacto. morre-se
com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física é apenas ausência e silêncio
– escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo amor. morte. felicidade.
alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para cada um deles um
palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se
não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que valha mais do que um
minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor se as bocas não falarem
de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor – quando um homem falece. nada
do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu cresci envolto em nuvens – mas
o que posso fazer se desistir não for solução? mesmo que o vento me cegue o
caminho. é na vontade de desistir que me nomearei cavaleiro. e darei [comigo] o
primeiro passo para a frente. mesmo que o meu nada tema medrar. mesmo que o meu
nada peça para não sofrer. pois estou certo. que um dia. alguém me há de
explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha sozinho vai mais rápido. mas
quem caminha acompanhado. vai com certeza mais longe. clarice lispector – eu
vou com certeza chegar mais longe. caminho comigo. e com todos os eus que
carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a dar opiniões. a dizer vai por
acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali. mas que posso fazer se todos
são importantes. e de todos fiz caminho – confesso que não sei. já me habituei
a não os questionar. não quero compreendê-los. o que quero mesmo é chegar mais
longe. porque há coisas que não queremos saber. às vezes ser. e ter também. mesmo
que seja um dom divino. ou escolha do universo. o melhor mesmo é continuar
insignificante. vestir-me de louco. e viver pendurado numa janela. quem sabe um
dia ganho asas e passo a viver nas árvores. na natureza. na minha natureza –
quando um ser insignificante falece os sinos não dobram. nem choram. nem
gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde. finalmente noites sem dúvidas
– estou certo que mais tarde. ou mais cedo. aprenderei a contar os meus eus. a
catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem. eu. sampaio rego. fiel depositário.
e único herdeiro das suas vulnerabilidades. dores. desgraças e insignificâncias
– nós. queremos muito acreditar que é possível ir mais longe – e termino esta
primeira parte com um poema de agostinho da silva. in “poemas”
as palavras
deixaram de ser irreverentes. aceitam-me. e acomodam-se no lugar que lhe disponho.
como se eu e elas fizéssemos parte de um banquete. e nos sentássemos à mesa. em
família – quem nos lê não quer fast-food. quer um banquete de gala. requintado.
luxuoso. elegante. sob holofotes. quer estar no centro de todas as atenções. quer
os homens de smoking preto. sapato verniz. e camisa branca ornada com laço
papillon – as senhoras de vestido justo. preto. de lantejoulas. salto alto de
agulha. uma echarpe suave a tapar os ombros nus. e no colo do peito a maior
esmeralda verde já alguma vez regurgitada por uma rocha – na mesa. o início da
degustação gourmet. carne maturada ao tempo da arte. acompanhada por letras
salteadas em perífrase. com alto teor de metáforas e hipérboles. tudo regado
com um néctar de apolo – ao fim destes anos. vinte e cinco não é pouca coisa.
as palavras tornaram-se divertidas. já não se mostram enfezadas. falam comigo.
respeitam-me. insinuam-se. nenhuma quer ficar fora da história. tornaram-se
mais tolerantes. sabem que não foi fácil artilhar o carro para chegar até aqui.
mas agora. às portas de um novo genesis. querem mais. querem mais papel. querem
mais conhecimento. mais arte. mais definição – eu também quero. mas o medo.
essa coisa tantas vezes abstrata. essa dor que nos espreita por detrás de cada palavra…
e nos magoa sem piedade – como se escrever pudesse merecer castigo – um
escritor. por mais mau que seja. vive atormentado. o seu mundo está coberto de
nuvens e homens maus. e ao fim da jornada. quando apagamos a luz. as palavras saem
de nós para alimentar os demónios. e ali ficamos. em alerta. de espada na mão
protegendo a nossa honra. evitando que alguma seja levada para o inferno – não
há escritor que não tenha tido um motor partido. uma bomba de água entupida. os
fusíveis queimados. e palavras atravancadas no nó da garganta – e o domar de
letras petrificado. preso ao seu tártaro. ajoelhado. a pedir a são judas tadeu.
o santo das causas impossíveis. que o proteja dos demónios críticos – a vida de
quem escreve não é fácil. mas não mudaria uma vírgula do caminho que percorri.
mesmo sabendo que não estou isento de imprecisões – mas se ficasse por aqui. se
não escrevesse nem mais uma palavra. diria que já não foi mau. caminhei com o
que sonhei. e a cada nascer do sol encontrei-me para ser um pouco melhor – nem tudo
foi mal-acabado. eu e as palavras amparamo-nos. rimos juntos. choramos juntos.
andamos por dicionários juntos. perdemo-nos juntos. viajamos juntos para lá das
nuvens. às vezes até acampamos em estrelas e cometas. e as metáforas e
hipérboles a nosso lado. ajudando-nos a criar ilusões. para não falar no
sujeito poético que. com a mania de dizer tudo o que lhe apetece. escapa sempre
às responsabilidades – foi uma viagem e tanto. bem sei que sempre exagerei com
as figuras de estilo. mas que posso fazer contra isso. estavam mesmo à mão. e a
mão daquele que escreve é incontrolável – ser escritor é um sacrifício medonho.
só quem realmente gosta de contar histórias é capaz de sobreviver a vinte e
cinco anos de anonimato – escrevi. e ainda hoje escrevo para não ficar doente.
para sobreviver a este mundo terrível que sufoca a minha cabeça. e que todos os
dias me atormenta com a vida de verdade. e tudo faz para que desista de
procurar a cura pela estrada do papel – escrever é uma viagem alucinante. às
vezes acreditamos que estamos a trabalhar para uma obra de arte. e dentro da
nossa cabeça assim é. e no outro dia. despois de umas horas de sono. olhamos
para o papel e interrogamo-nos: quem foi o monstro que escreveu esta trampa? e
ali ficamos mortos. quase sem respirar. a perguntar se vale a pena continuar. e
vamos buscar aquele bocadinho de forças para o momento em que estamos no cimo
da ponte. entre o escreve. e não escreve. desiste. não desiste. e voltamos ao
princípio. renascemos no caus. e mais uma vez com a esperança de que quando
atingirmos o ponto final. nos sintamos geniais – e o medo instalado. a
interrogar-se. será que não consigo chegar a um escritor de verdade? as
palavras cada vez são mais exigentes. e às vezes não as sei entender. saber até
sei. mas não consigo domá-las como desejava. é como se estivesse num fórmula 1.
com mais de mil cavalos selvagens a
puxar por mim. e eu sem mãos para tanto power. para tanto cavalo bonito
III.
mas
o
que sei. e desta vez sei mesmo. será em 2024 que me tornarei pela primeira vez pai
de um livro. finalmente escritor – não um livro qualquer. não. será o meu
livro. o meu best seller. com a minha impressão digital. a vida escrita em
papel. sem adornos. sem falsidades. sem imposturices. com honestidade
emocional. intelectual também. sendo apenas eu em cada momento desse eu. às
vezes no escuro. às vezes no nada. a soletrar o nome para não me perder. para
não me esquecer. a lascar pedra – sem este outro eu. sei. agora. que não
escreveria uma única palavra. não curaria nenhuma dor. não perdoaria nenhuma
falha. não encontraria nada em mim que valesse a pena fazer existir. a
mesmidade seria para mim uma doença incurável – o tempo passou. rápido creio
eu. precisava de outro tanto para me tornar mais nobre. mais respeitado –
veremos do que serei capaz – as palavras são sempre tão difíceis. tão
desgastantes. tão rigorosas. sempre a imporem acompanhamentos diferenciados.
exigentes na escolha dos ingredientes. alguns exóticos. outros raros. que
desconheço. ou não sou capaz de trabalhar. – talvez queiram batata brava. e uma
saladinha com todos. vinagre balsâmico e duas pedrinhas de sal a gosto – o meu
livro será a gosto. a meu gosto – espero que a gosto de todos aqueles que me
leem
o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a
cara toda, explicou
– Andam por aí.
e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda
por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às
vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento
seráque
atingi a maturidade a escrever? será que a idade sénior me protegerá de
escrever tontarias? não sei. gostava de ter uma bola de cristal. mas não tenho
– a minha dúvida é que seja uma espécie de automóvel tuning. que vai sofrendo
alterações. às vezes para parecer mais bonito. noutras. mais competitivo –
comecei por aparelhar umas jantes mais largas. para me amarrar melhor às
palavras; depois. abri um teto para mais facilmente ser ouvido quando peço perdão;
não satisfeito. meti dois faróis xénon para não me voltar a enganar no caminho
– medroso. alterei a suspensão para aguentar os solavancos gramaticais. e para
me defender. comprei um rádio com colunas a debitar 1000 decibéis. às vezes
precisamos de calar o mundo – por último. mandei apetrechar dois “bofantes”
cromados para impressionar. tipo carro de corrida. mas que não corre para lado
nenhum. faz barulho por ter o escape roto – lembro-me do dia em que comecei a
acelerar. e fui pela vida da escrita. ganhando coragem a cada passo. a cada
quilómetro feito de passos. e um dia distraí-me. e quando olhei para o conta-velocidade
tinha ultrapassado os cem quilómetros horários – que loucura. vidro aberto e
aquela sensação incrível do vento a misturar-me o léxico. as palavras a
esvoaçar. e o cérebro em êxtase aos gritos de aflição. anunciando a todo
momento a fusão de um punhado de vocábulos. o nascimento de um grande texto – o
ponteiro do velocímetro a trepar incrédulo pela potência. o cabelo a imitar os
braços do boneco da michelin. e os óculos ryban. a sorrirem para o retrovisor. e
os lábios a sublinhar suavemente o pensamento: nada do que escrevi merece
recordação. para a frente é o caminho – vivia um tempo feliz. excêntrico.
acreditava que um dia deixaria de ser carro tuning e passaria a um avião de
combate. um F16 – depois. passei os cento e vinte. e comecei a olhar para trás à
procura da brigada. e a perguntar-me. será que algum critico literário ou
apenas leitor. mandar-me-á parar? talvez um dia aconteça. é inevitável. quem
anda à chuva molha-se – mas o que me preocupa não é a chuva. é se um desses
entendidos me disser: -- o cavalheiro fica sem carta definitivamente. é um
perigo para a arte. o melhor para si. e para todos os que gostam de ler. é confiscar-lhe
o lápis. obrigá-lo rapidamente a parar de escrever – continuei a acelerar. e a
escrita cada vez mais em pânico. sempre que passava por um radar sorria. ficar
bem na fotografia é o desejo de todo escritor – sorrindo talvez apanhe apenas
uma contraordenação primária. uma advertência. ou trinta dias de suspensão –
quando escrevemos tornámo-nos vaidosos. e acreditamos piamente que um dia
podemos ter uma pontinha de sorte. e quem sabe. tornarmo-nos no melhor escritor
da nossa rua – palerma. estou farto de saber que a sorte dá muito trabalho – no
entanto. a ingenuidade alimenta a criança que teima em viver no meu corpo
adulto – continuei a acelerar. quem não gosta de andar depressa com as palavras?
encosto aqui. para-choques a raspar por ali. arranhão acolá. mas sempre a teimar.
pensava para mim: enquanto não capotar o caminho é para a frente – comecei de
triciclo. virei de pernas para o ar centenas de vezes e nunca desisti – depois.
passei para a bicicleta. e as marcas de lamber o alcatrão cravaram-se-me no
corpo. mais uma vez recusei resignar – agora. que tenho quatro rodas. um travão
servofreio com sensores ABS. cinto de segurança em diagonal. e airbags duplo
frontal. também não vou abandonar as palavras – passaram vinte e cinco anos. as
palavras estão mais maduras. eu também. já não estou tão vaidoso. e na minha
simplicidade. quero acreditar que atingi a velocidade do som. claro que ainda
não sou F16. muito menos um foguete capaz de me levar ao espaço. mas labutei-me
muito por dentro. afinei-me para corridas trabalhosas. acredito que um dia
chegarei a um paris-dakar – não sei. mas que importa. chegarei onde tiver que
chegar – também aprendi a colocar o ouvido nas palavras. e agora ouço o seu
trabalhar. como quando o médico coloca o estetoscópio sobre o coração. e diz: --
respire fundo – e máquina a trabalhar ao ralanti. num batimento certo. e as
palavras a trabalhar dentro dele. e eu com as mãos ansiosas por mais prazer.
com as palavras presas às pontas dos dedos. excitadas. os dedos também. e no
cérebro hauser a tatear um noturno em dó sustenido menor de frédéric chopin. e
o papel branco a desenvolver-se. a sonhar com uma história de amor correspondido.
a oferecer-se ao escritor
chegou o momento
de me despedir de 2023 – fazendo o somatório deste ciclo de 365 dias. experimento
que foi um bom ano. tive saúde. pessoal e profissional. e principalmente. tive família
e amigos por perto – que mais um homem pode desejar? quanto ao vil metal… não
recusaria um pouco de mais bondade. sei que sou um privilegiado neste mundo
antagónico: guerra e paz. fome e abastança. habitação e desabrigados. saúde e
doença. solidão e família. mas creio que não pecarei ao desejar mais uns trocos. seria
como a última pincelada numa obra de arte. assinatura de autor para alindar um
pouco mais a minha ambição – em boa verdade. não me posso enfadar com nada. este
ano. já moribundo. foi uma boa casta. tive sol na eira e chuva no naval. e em
nenhum momento foram diametralmente opostos – ficar-lhe-ei grato pelo que me
deu. pelo que me ensinou. pelo que me fez crescer e fortalecer – que o novo ano
traga consigo o melhor de 2023. e o que me sobrou em preocupações que fique
esquecido para sempre – precisamos honrar o que já vivemos e receber o ano novo
com alegria e esperança – faço votos para que 2024 adote a minha família e
amigos com muitos sorrisos. paz. saúde e esperança – mas não podia celebrar a
virada do ano sem lhe implorar um cuidado especial para um amigo também
especial: para o meu prezado H. muita saúde. muita saúde. muita saúde e muita resiliência.
cá estaremos a torcer por ti e por quem te acompanha todos os dias – bom ano
2024
o
natal
sempre me envolve em sentimentos doces. suaves e nostálgicos. há nele algo adormecido
em mim – contra este cocktail de sensações nada posso fazer. e mesmo que
pudesse. também não o faria. gosto desta overdose de bem-estar. deste encanto
hipnótico que o natal transposta em mim desde criança – é a minha festa. a
festa da minha família. e na noite da consoada compartilhamos não apenas o
bacalhau. mas também amor. compaixão. e generosidade – celebramos a existência de
uma linhagem. o calor dos amigos. e todos aqueles que. por um motivo. ou outro.
cruzaram nossas vidas – mais do que tudo. celebramos principalmente o modo como
gostamos uns dos outros. como lhes dizemos o quão são importantes nesta nossa
passagem terrena – é entre gorros vermelhos e bolas coloridas que compreendemos.
mais facilmente. que pertencemos uns aos outros. independentemente dos laços
sanguíneos que nos unem e nos trouxeram até aqui – neste dia de união familiar.
recuperamos um dos maiores milagres de jesus. a ressurreição – reencontramos o
meu pai. a minha mãe. a zeza. o meu sogro. o tio joão. todos retomam seus
lugares à mesa. vieram consoar connosco. confortar a saudade que nos deixaram –
o natal sem eles não seria o natal das boas tradições; eles são parte de nós. e
nós somos parte uns dos outros – e agora. que soem as doze badaladas. e que o
espírito generoso do pai natal toque os meus netos. toque em todas as crianças
deste nosso mundo maravilhoso – o verdadeiro natal é aquele onde reside a
inocência – feliz natal para todos!
um dia. como todos aqueles que corajosamente
se aprontam a nascer. vou desaparecer deste mundo. espero que por velhice. por
arrasto da bengala. incontinência urinária. ou de coração melado de tanto amar
a minha companheira – neste dia especial. em que nasceste para mim. quero-te a
meu lado… hoje. e até que o último suspiro me surpreenda – ver-te envelhecer é
ver-te todos os dias mais bonita – e assim. em atrição. e sem coragem para contestar
a veracidade que um dia tombará no meu epitáfio. peço a deus. ao universo. ou à
sorte. que me conceda uma última vontade: quando chegar a minha hora. que o meu
silêncio aconteça nos seus olhos. e eu. finalmente. possa descansar na sua
eternidade – parabéns maria joão
foi
em québec que tive o impulso de escrever este poema – o castelo
frontenac pendurado nas margens do rio saint laurent. a luz. as sombras. a
história. a amizade dos nossos amigos. nawel e michel. mas principalmente. sentir
os olhos da maria joão acesos de paz. como já há muito tempo não sentia – foi
uma viagem de sonho que guardamos e agradecemos para sempre – em québec também
fomos abençoados