no
passado. há muito. muito tempo. quando os pobres eram realmente pobres e
miseráveis. se um prato ou travessa se partia. colavam-no com resina. e de
seguida. fixavam-lhes alguns agrafos para garantir que não voltaria a quebrar –
cada prato era um bem precioso. faltava dinheiro para comprar comida. quanto
mais para loiça – os tempos mudaram. e com eles. as nossas prioridades. hoje.
qualquer pessoa pode comprar um prato. ninguém cola nada. o que se estraga vai
para o RSU – é tudo descartável. a comida sobra vai para o lixo. o tempo sobra
vai para as redes sociais. as amizades valem tanto quanto um like. os melhores
amigos transformam-se em produto tóxico de um dia para o outro. os pais
zangam-se com filhos. irmãos com irmãos. e a família a desmoronar-se como a
torre de babel – os casais modernos evitam sacrifícios. trocam sentimento por
aparências. compram amores descartáveis. como se fossem pacotes de dados
móveis. só para impressionar os amigos. os colegas de trabalho ou a família. e
quando a conexão se esgota. trocam por outro plano. com mais minutos e menos
compromisso – tudo isto para vos dizer que as relações são como pratos
rachados. podem ser coladas. mas a cicatriz do rompimento nunca desaparece.
atenua-se com o passar do tempo. sem nunca desaparecer por completo – e a
rachadela está ali para sempre. aos poucos. esmaece. escurece. só quem olha com
atenção percebe que a imperfeição nunca desaparece. e acabamos acreditando que.
talvez. essa fragilidade sempre estivesse ali. desde a fabricação – hoje. já ninguém
aproveita nada. não há gratidão. nem honra. e o perdão é coisa dos livros
sagrados – vemos casamentos a terminar ao fim de um par de anos. mulheres e
homens cada vez mais preocupados apenas com o seu sucesso profissional.
relegando para segundo plano os seus conjugues. os seus filhos. a família. e os
seus amigos – e. neste ritmo acelerado e superficial. acabamos por esquecer
aqueles que mais precisam de nós – vivemos todos para um sucesso aparente.
trocado por uma felicidade mentirosa e frágil – é assim. e nada mais do que
assim. os pais esquecidos. os filhos esquecidos e a sobreviverem de casa em
casa. e a promessa de os proteger de todos os males resolve-se com silêncio e
ausência – os amigos partem sem deixar
um adeus. olham para trás sem saber contar pelos dedos o valor de cada palavra.
cada momento. cada ano. e a volatilidade é agora mais instantânea do que éter.
acorrentada ao egocentrismo. e à falta de empatia – mas a maior doença da
humanidade é a manipulação pela mentira. a indiferença pelo sofrimento. o
perdão pelo erro. e a total ausência de gratidão e respeito pelos outros –
passamos todos rapidamente ao tal produto tóxico – ainda há pouco tempo. eu
escrevia sobre a necessidade de não querer perder mais nada. principalmente
amigos. mas o tempo pode ser também uma traição. temos que estar preparados
para tudo. principalmente para a ingratidão e perdão – hoje. percebo que tudo
que surge sem tempo de amadurecimento. respeito pelas diferenças. e compromisso
com a verdade. desaparece rapidamente – os ditos amigos raramente buscam a
verdade; querem distração e absolvição. como num confessionário. rezam três
pai-nossos e duas ave marias – saem em paz e regressam para pecar – o pior é
que ainda acreditam que com um sorriso curam qualquer mal. ou então meia dúzia
de palavras sem sentido. usadas pelos nossos antepassados. num arcaísmo
obsoleto. e em desuso nos nossos dias. e que na sua ignorância saloia.
manuseiam para tentar enganar o que resta do mundo ingénuo – mas percebo que
ser autêntico de nada vale quando os outros se ocultam em passados nebulosos.
muito menos vale dizer a verdade. se a maioria deseja apenas bajulação – querem
ser enaltecidos pelo que não são. carregados de virtudes que não têm. e
respeitados pelo que julgam valer. mas raramente valem o que imaginam – um
homem honrado. na maior parte das vezes. é obrigado a sacrifícios. a muita
humildade e gratidão. a bater com a mão no peito e dizer: por minha culpa. tão
grande culpa. a sofrer pelo erro. a pedir perdão a si mesmo e aos outros. e mesmo
com os novos propósitos do mundo moderno. estas virtudes devem ser valorizadas.
cultivadas e respeitadas. mas não são – esta malta que aparece do nada vive o
momento. e à primeira dificuldade esquece tudo. como se o que valesse fosse
aquele ar de quem não carrega o mundo às costas. com sorrisos mal adornados.
numa felicidade tão grande que. se fosse verdade. deixaria qualquer ser humano
invejoso e a perguntar: por que raio não tenho eu uma felicidade assim? eu
aprendi que o amor e as amizades necessitam de alicerces fortes. baseados na
verdade. na comunicação. e no perdão. é nossa obrigação também ouvir.
colocar-se no lugar de quem nos fala. e perceber que nada pode ruir por uma
palavra perdida – viver também é seguir em frente. a não ser que o seu íntimo
se estruture na falsidade e se esconda no passado – todos precisamos de um amor
que nos trate com afeição. respeito e atenção. de uma família que nos ame. e de
um amigo que nos ouça e nos socorra quando a brisa vira ventania. todos
precisamos de nos sentirmos humanos e visíveis – o amor com a minha companheira
é feito de tempo. de um abraço. de um olhar. de rir muito das palermices que só
os dois conhecem e valorizam. de chorar juntos para a dor ser menor. ou apenas
dizer: hoje estás bonita. ou estar no sofá e num impulso olhá-la e sentir uma
palpitação. sentir o corpo todo a ser preenchido de uma sensação boa. sem que o
seu amor imagine como aquele microssegundo preenche quarenta anos de mão dada –
para se amar. é preciso ter capacidade de sacrifício. optar pelo que está
certo. não hoje. mas daqui a um dia. a dez. ou vinte anos. perceber como bate o
coração de medo só de pensar que a podemos perder. e rogar ao destino que seja
o próprio a deixar saudade – é preciso amar a nossa companheira. compreender e
aceitar que todos os dias o amor vai exigir compromisso. pois só assim o belo
se torna mais belo. mesmo nos dias de silêncio – eu tenho o meu belo. a minha
companheira tem o dela. difícil é fundir um ao outro. felizmente para nós basta
apenas uns retoques e temos a obra tão perfeita como a pietà de michelangelo –
lealdade. perdão. compromisso. verdade. comunicação. bondade. e companheirismo
é a receita para tudo. também para as amizades. e quando assim é. os casamentos
são para sempre. a família é para sempre. e os amigos são para sempre – e sim.
é melhor aceitar as perdas inevitáveis do que viver alimentando ilusões sobre o
que nunca foi real – no fim. aceitamos essas perdas. como pratos que nunca mais
colamos. porque. mesmo que tentemos. sabemos que certas rachaduras estarão
sempre lá – talvez seja isso que nos torna humanos. a busca constante por
remendar o que já foi quebrado. mesmo sabendo que nunca voltará a ser como
antes – nunca irei desistir da minha companheira. da família. dos amigos.
encontrarei sempre um pouco de resina para colar o que a vida quebrou – é
assim. e nada mais do que assim
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