.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

21/08/2016

as lágrimas também podem sorrir - I




foto - sampaio rego



I.

o dia das lágrimas – com vida certa ou incerta. verdadeira ou falsa. bela ou feia. rica ou pobre. trágica ou iluminada. excêntrica ou comum. aqui estou perante este tempo néscio de compromisso com a memória: um comprometimento de honra com o meu corpo por inteiro – o contrato – é este corpo. com a sua face. as suas mãos arrestadas a impressões digitais únicas. banhado por um sangue enlaçado num DNA que nunca se compreendeu como molécula única – tudo isto oferecido numa jeito de caminhar tortuoso. sinuoso. confuso. assim como quem vai tropeçar a cada passo. a cada folgo da vida – os olhos. de um castanho morno. arregalam-se como faróis em noites de tempestade. procuram em ansiedade o destino num inconformismo furioso – o futuro em movimento acelerado corre sem misericórdia atrás de um corpo que sempre se recusou a descansar – nunca fui nada sem movimento. sem corrida. sem ação meditativa. como se o corpo estivesse sempre atrasado ao pensamento – o lugar seguinte era sempre o melhor e mais certo para acalmar o desejo de alcançar o fim do mundo – mentira – só a fala se arrastava num vagar ansioso para uma boca que sempre almejou o silêncio – nunca me dei bem a falar. confesso que às vezes nem comigo – e é tudo isto que faz de mim um ser com memória. único. singular. excecional para o bem e para o que há de pior – por fim. e para que não houvesse enganos.  deram-me um nome sem nenhum tipo de atenção. e um último nome que diz mais do meu corpo do que todas os particulares descritos – sou então o único dono e responsável da minha palavra. da minha honra. da minha vergonha. das minhas opções e das minhas falhas – sou assim um responsável com memória. que gosta da autenticidade. umas vezes pelo contrato assinado. outras pela convicção de que o valor de uma vida não se mede em tempo mas sim pelo que deixamos no tempo – “o futuro e o passado não existe no agora” é apenas uma medida de evolução que neste momento não se aplica a mim – claro que há exceções dentro do meu próprio corpo. exceções essas que se amarram à memória e que determinam que a evolução da razão nem sempre se sobrepõe á virtude – os princípios que obrigam a virtude a determinadas opções são sempre influenciados por um estado de alma que no meu caso. pouco crente no sobrenatural. foi infetada no meu primeiro sim à vida pela tômbola da sorte – todos temos uma tômbola que gira sem nos perguntar a cor em que queremos apostar – baralha. dá cartas. escolhe o trunfo e diz: vais a jogo – e vamos mesmo pois acabamos de respirar e quem respira aceita as regras do jogo – estamos a viver e ganhar memória que é como quem diz: estamos humanos – nada acontece de um dia para o outro –  pelo meio as leis da sociedade induzem-nos a sua ética e moralismo. nunca tendo em conta a dor. o sofrimento. a falta de vontade de viver. a extinção da motivação. o eclipse da fé – normas pensadas e elaboradas para quando tudo está perfeito por homens mais imperfeitos do que eu – mas a razão de uma vida existir divide-se em mais de mil razões para poder pertencer a um único ato único – sou tantas coisas que jamais poderia eleger uma razão para viver e outra para morrer – o fim da vida é uma opção feita de tempo e o tempo é feito de memória e toda a memória é feita basicamente de desespero e horror – vivemos a felicidade de forma tão intermitente e rara que quando necessitamos de a recordar esta resume-se a meia dúzia de momentos que quase sempre nos obriga a recorrer à descendência. à companheira que é a luz da minha vida. à família no seu compromisso de afetos. aos raros amigos que conseguimos preservar e a dois ou três caninos que nunca me deixaram de receber com a cauda a abanar – tudo isto avalizado individualmente por um batimento cardíaco. ora sobe. ora desce. ora corre. ora descansa. ora nos diz que já nada compensa o sacrifício de ouvir as suas pancadas – o batimento do único músculo que no passado escondia o amor: o coração – já não há amor no coração. não há remorso. nem arrependimento. e também não há nenhuma medida universal para uma dor que nos teima em dizer: basta. chega. chegou a hora do descanso. do verdadeiro silêncio. da paz – chegou a hora de fazer descansar a memória –


[continua]





Sem comentários:

Enviar um comentário