foto - sampaio rego
I.
o dia
das lágrimas – com vida certa ou incerta.
verdadeira ou falsa. bela ou feia. rica ou pobre. trágica ou iluminada.
excêntrica ou comum. aqui estou
perante este tempo néscio de compromisso com a memória: um comprometimento de honra com o meu corpo por inteiro – o
contrato – é este corpo. com a sua
face. as suas mãos arrestadas a impressões
digitais únicas. banhado por um sangue
enlaçado num DNA que nunca se compreendeu como molécula única – tudo isto oferecido
numa jeito de caminhar tortuoso. sinuoso. confuso. assim como quem vai tropeçar a cada passo. a cada folgo da vida –
os olhos. de um castanho morno. arregalam-se como faróis em noites de
tempestade. procuram em ansiedade o destino
num inconformismo furioso – o futuro
em movimento acelerado corre sem misericórdia atrás de um corpo que sempre se
recusou a descansar – nunca fui nada sem movimento. sem corrida. sem ação
meditativa. como se o corpo
estivesse sempre atrasado ao pensamento – o lugar seguinte era sempre o melhor e
mais certo para acalmar o desejo de alcançar o fim do mundo – mentira – só a
fala se arrastava num vagar ansioso para uma boca que sempre almejou o silêncio – nunca me dei bem a falar. confesso que às vezes nem comigo – e é tudo isto que faz de mim um ser
com memória. único. singular. excecional para o bem
e para o que há de pior – por fim. e
para que não houvesse enganos. deram-me um nome sem nenhum tipo de atenção.
e um último nome que diz mais do meu corpo do que todas os particulares descritos
– sou então o único dono e responsável da minha palavra. da minha honra. da
minha vergonha. das minhas opções e
das minhas falhas – sou assim um responsável com memória. que gosta da autenticidade.
umas vezes pelo contrato assinado. outras
pela convicção de que o valor de uma vida não se mede em tempo mas sim pelo que
deixamos no tempo – “o futuro e o passado não existe no agora” é apenas uma
medida de evolução que neste momento não se aplica a mim – claro que há exceções
dentro do meu próprio corpo.
exceções essas que se amarram à memória e que determinam que a evolução da
razão nem sempre se sobrepõe á virtude – os princípios que obrigam a virtude a
determinadas opções são sempre influenciados por um estado de alma que no meu
caso. pouco crente no sobrenatural. foi infetada no meu primeiro sim à vida
pela tômbola da sorte – todos temos uma tômbola que gira sem nos perguntar a
cor em que queremos apostar – baralha.
dá cartas. escolhe o trunfo e diz:
vais a jogo – e vamos mesmo pois acabamos de respirar e quem respira aceita as
regras do jogo – estamos a viver e ganhar memória que é como quem diz: estamos humanos – nada acontece de um dia para
o outro – pelo meio as leis da sociedade induzem-nos a sua ética e moralismo.
nunca tendo em conta a dor. o
sofrimento. a falta de vontade de
viver. a extinção da motivação. o eclipse da fé – normas pensadas e
elaboradas para quando tudo está perfeito por homens mais imperfeitos do que eu
– mas a razão de uma vida existir divide-se em mais de mil razões para poder
pertencer a um único ato único – sou tantas coisas que jamais poderia eleger
uma razão para viver e outra para morrer – o fim da vida é uma opção feita de
tempo e o tempo é feito de memória e toda a memória é feita basicamente de desespero
e horror – vivemos a felicidade de forma tão intermitente e rara que quando
necessitamos de a recordar esta resume-se a meia dúzia de momentos que quase
sempre nos obriga a recorrer à descendência.
à companheira que é a luz da minha vida.
à família no seu compromisso de afetos.
aos raros amigos que conseguimos preservar e a dois ou três caninos que nunca
me deixaram de receber com a cauda a abanar – tudo isto avalizado individualmente
por um batimento cardíaco. ora sobe. ora desce. ora corre. ora descansa. ora nos diz que já nada compensa o sacrifício
de ouvir as suas pancadas – o
batimento do único músculo que no passado escondia o amor: o coração – já não há amor no coração. não há remorso. nem
arrependimento. e também não há nenhuma
medida universal para uma dor que nos teima em dizer: basta. chega. chegou a hora do descanso. do verdadeiro silêncio. da paz – chegou a hora de fazer
descansar a memória –
[continua]
[continua]
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