foto - sampaio rego
II.
só a
memória pode decidir no agora o destino a dar ao seu corpo – só esta tem algo a perder – tudo pertence à memória e é esta que sentenceia. é esta que tem a espada dâmocles. é esta que tem o saber da humanidade
com todos os seus desgostos em contrapeso – a questão é simples: continuar ou não a absorver a vida para
perseverar a forma do corpo que.
apesar de deformado pela corrosão do tempo.
será sempre o fiel depositário de todo o conhecimento – manter o corpo é manter
a memória – assente num transtorno dissociativo de personalidade. acirra os sentidos quase sempre
aflitos. disfarçando-os de uma alegria
silenciosa. pacífica. pacata. pueril. aliando gestos
artísticos estonteantes criando a ilusão de um corpo gigantesco – alto como
ninguém. ali vem ele. num volume de alma enorme. inconfundível. distinto. único. reconhecido por uma multidão de quase
ninguém – podem-nos chamar pelo nome. podem até dizer que nos conhecem bem. de abraço. de paixão também. mas
ninguém poderá ousar dizer que conhece o que temos de mais autêntico. mais verdadeiro. mais nosso: a memória
– essa é só nossa – ninguém por mais íntimo.
por mais intrínseca que seja a sua ligação poderá atrever-se contrariar esta
afirmação – talvez possam dizer que conhecem algumas características suas mais
particulares. algumas manias. fetiches. taras. jeitos. um pouco daquela forma de andar. de não dizer toda a verdade. de encontrar a sua justiça com
palavras que se repetem de oratória em oratória. de experimentar a partilha de noitadas. de ressacar de um whisky rasco misturado num hálito a SG gigante. de trocar palavras de camaradagem. de abraço por um golo de camisola
vermelha. ou por um campeonato ganho
pelo glorioso – isto e mais meia dúzia de “manigâncias” é o que os mais
chegados podem garantir como conhecimento privilegiado – pseudo-amigos que
nunca passarão de isso mesmo – para estes pseudo-amigos pouco mais há para um [re]conhecimento
– que mais se poderá quere saber de um humano? para estes amigáveis
controversos. com este saber. neste enquadramento. o resultado da equação é simples: são amigos de coração – os amigos do
coração não necessitam de ter mais nada – passo a ter então direito a um
diminutivo: o zézinho. o pedrinho. o joãozinho. e tudo
isto é como medalha ao peito. comenda. reconhecimento. um herói de guerra fraterna.
com direito a um nome gravado no passeio dos amigos para sempre – raio de tempo
vivido em troco de nada. raio de discípulo
idiota. raio de caminhada inglória. tempo consumido em zero – bronco. estúpido. asno. tanto tempo para
aprenderes a contar por uma mão os amigos que trouxeste ao coração [as exceções
têm um cantinho especial dentro de mim com gratidão e memória eterna – os meus
amigos de coração jamais partilharão as minhas amarguras numa crónica deste
teor] – os mais atentos talvez lhe possam acrescentar umas inflexões da voz. um revirar dos olhos. de um torcer de nariz. do formato da boca nas saudações da
praxe e a autenticação do tamanho de um corpo que nem sempre condiz com o da
alma – para os meus amigos sempre quis muito mais e sempre estive disposto a
dar-lhes muito mais – dava-lhes a minha única riqueza: a memória – mas não. que
interesse há numa memória que fala de si como se estivesse apaixonado por cada
palavra. por cada suspiro. por cada olhar a pedir uma resposta para
um corpo a mostrar tantas dúvidas – nunca tive certeza de nada – é a incerteza
que nos leva ao desconhecido – sempre procurei o desconhecido – falava-se de
futebol. das mulheres dos outros. da velocidade com que os outros
passavam com os seus automóveis de luxo.
da sua riqueza. das ilhas do onassis. dos iates e da nossa memória nem uma palavra. nada. nada de nada –
um absoluto deserto de afeição – restava-me rir e fazer papel de parvo – a
memória. essa coisa que é só nossa. imaterial. abstrata em tanta mesquinhez.
autêntica para nós. subjetiva quando
partilhada. louca quando tantas
vezes o que lhe era exigido era ponderação.
um pouco de racionalidade – e o que recebes:
inquietação absurda com quase sempre dor a posteriori – como se tudo isto
fizesse parte do contrato que assinaste para ser humano – veste-se de luto. de dor. de farrapos e de agonia assiduamente como se fosse um hábito. um vício sem cura. como se fosse uma doença terminal – não é – quando pensas que é o fim tudo volta ao começo – haverá
pior castigo do que este? – é esta memória que retira a coerência à vida. a certeza. a planificação. os
sonhos. a bondade das ações. a glorificação. a perseverança. a
capacidade de lutar. a nobreza dos
atos. a certeza de que fizemos o
melhor pelos outros e por nós enquanto corpo com memória – nunca sabes quando
um elo se quebra e uma parte de nós desiste – chega o momento em que nada do que
fizeste é uma certeza – mas a minha memória é só minha e é com ela que me tenho
que entender – o que é nosso. é
nosso – nada podemos fazer a não ser aceitar o que por lá cresceu – não lhe
quero mal por isso. também não me
adiantava de muito – aceito-a.
aceito-a por sua culpa – estou agora numa paz que não sei quanto tempo vai
durar. nem sei muito bem o nome que
terá. sei que de espírito não é
porque este continua turvo. sinto-o
cada vez mais escurecido. mais
irrequieto. mais tumultuoso. impetuoso. com menos mel – talvez esteja
a passar o olho do furacão ou quem sabe a cumprir um ritual qualquer que o
corpo ainda desconhece a finalidade – há tanta coisa que ainda desconheço – um
passo a sorrir traz sempre três passos para a vala – fado –os sorrisos ao mundo
são quase sempre para enganar a plateia no mundo do ninguém – para a memória
não há subterfúgios. nem algazarras. nem silêncio que a possa enganar. nada mesmo – às vezes o silêncio
quase mata – refugio-me num catraio que ainda há dentro de mim. na ingenuidade. nas palermices que
ninguém compreende e na maior parte das vezes escondo-me no nada – mesmo assim. e por mais que queira. não consigo mudar nada da memória –
tenho como destino final o que dentro de minha memória vive
[continua]
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