tela - karen woods
domingo –
aprendi que tudo o que sou se resume à palavra escrita. à forma como entalho o que escrevo na perpetuidade de uma folha
em branco –
– penso:
hoje. domingo. dia de chuva para
o corpo. aguaceiros fracos. o vento a puxar norte e o apito do
comboio a chegar pelas traseiras da casa –
– sempre
sofri com a chuva anunciada pelo apitar dos comboios
em casa dos meus pais. nos dias em que se ouvia o apito do
comboio. logo intuíamos que a chuva
já deambulava pelo canteiro do vizinho – aplicava então o ditado popular: quando vires as barbas do teu vizinho
a arder. põe as tuas de molho – a
chuva estava ao dobrar da esquina – da minha casa à casa dos comboios eram cerca
de três quilómetros em linha reta.
coisa feita pela criançada em menos de dez minutos em passo ligeiro – mas a
distância não conta para nada quando o que chega é tocado a vento – e tudo o
vento carrega de um revoltado comboio quando apita em forma de grito: chuva. chuva. pouca terra. tristeza. pouca terra. chuva. chuva. tristeza. chuva e uma
nostalgia de morte a moldar o som agudo do apito – o vento a deslizar pelas
frinchas das janelas zune nos ouvidos tortura. e eu a correr para o terraço e os olhos a esbarrar nos montes
cobertos de um negro feio – o silêncio era maior
que as montanhas – só se ouvia o vento a pregar com as árvores enquanto que a
passarada fugia em debandada para sul – nas janelas da vizinhança as roupas
coradas não se cansavam de acenar ao que restava do sol enquanto as donas de
casa as recolhiam em aflição – a chuva quando chegava á minha cidade é para
durar –
– não é por acaso que se diz que braga é o penico do céu
deitava os meus olhos incomodados
para norte e lá estavam as nuvens com cara de poucos amigos. escuras de ruindade a marcharem num galope de combate. em formação guerreira. rasgando vales e serras. profetizam angústia. agonia. amargura – havia um silêncio nostálgico puxado a um vento esguio que
não agoirava nada de bom – também havia uma tormenta anunciada dentro de mim –
– a chuva açoita ferozmente a verdade de
cada corpo: lava-lhe a carne. humedece-lhe a alma
os domingos sempre foram assim. incertos. tristes. silenciosos. feitos de nuvens magoadas a murmurar
nostalgia numa calmaria amarga – mas com chuva. os domingos tornavam-se desumanos. malvados. perversos. parecidos com o apocalipse anunciado
por cristo – finalmente os anjos de joão vão dar razão ao livro sagrado do
cristianismo –
– nestes dias dominicais nunca sou capaz de grande imaginação. tudo está
parado – eu também
no corredor da minha casa a passadeira
corre asseada para a porta da rua.
mas também por lá o barulho habitual dos dias da semana está ausente – não
quero sair. o corpo não quer sair. só quero expurgar da carne esta pré
anunciação da morte – este silêncio é poderoso. uma aflição. um sufoco mudo – tomara que nenhum romeiro errante
apareça para desarrumar as cadeiras e me roube o silêncio dos cortinados – dizem
que o domingo é o dia da família – para mim todos os dias são da família menos
o domingo –
– tudo dentro dos domingos é silêncio. é nostalgia. é aborrecimento é
antecâmara de um velório – é um contar de tempo que magoa ao segundo
domingo é dor que dói sem saber
onde e porquê – a tristeza invade-me numa sensação de morte antecipada dos
sentimentos e tudo que era para ser escrito é vago. vazio. e as mãos
desabitadas daquela força interior deixam-se cair até ao fundo do corpo na procura
da salvação – aos domingos preciso de sentir o sangue correr nas veias para saber
que existo – olho-me então pela janela.
imagino uma chuva diferente. a subir
ao céu. numa correria feita água-moço. inocente. talvez adolescente.
suave como todas as faces acabadas de nascer. sem segredo. sem desvirtude. sem engano. numa dança limpa. branca. venial que não é mais do que o retorno
ao começo do meu universo – um universo físico pois já não acredito no universo
que me pede rezas – o meu céu é a minha terra e o inferno acontece sempre que
viro as costas à janela que agora sei não ser minha. é de um domingo de chuva.
de chuva que magoa. que não lava. que me humedece a alma e me faz virar
as costas ao mundo – é um domingo de um homem-chuva –
– os dedos a querer escrever escamam a pele nas palavras que não saem –
talvez queira aquilo que não tenho
o cansaço quebra o corpo e o
cinzento preenche cada esquina do quarto onde os ângulos são cada vez mais aguçados
e a geometria das palavras teima em não aparecer – o candeeiro não ilumina
coisa nenhuma. nem dentro nem fora
do corpo. a única luz que me chega é
a que escapa às cortinas de uma janela virada a sul – mas tudo está a norte. a igreja que com os seus sinos chama
gente de fé [cada vez há menos crentes].
o jardim onde as crianças brincam a um futuro que não vejo [cada vez há menos
crianças]. as romarias que atiram
fogo contra o céu numa tentativa de acordar o santo padroeiro [cada vez há
menos romeiros]. os namorados que de
beijo em beijo adiam para amanhã o que devia ser hoje [cada vez há menos amor]. aos domingos tudo que vejo é a norte
do corpo. a sul existe o que nunca
vi –
– e aqui estou hoje a escrever como se fosse criança – mas não sou. e os
domingos também já não são desse tempo
sobra-me em boa memória o acordar
aos domingos em casa dos meus pais. o cheiro a assado no forno a invadir o meu
estremunhar. e a certeza de uma
comida melhorada por ser dia do senhor. enquanto
a minha mãe corria a casa em afazeres que nunca compreendi – talvez sentisse
também a nostalgia dos domingos e a lida da casa a forma de a superar – acordava. bocejava. virava o corpo para o lado da janela. a luz bocejava [também] pelos intervalos da persiana enquanto a vida acontecia noutras partes da casa – no ouvido ainda sonolento. uma cadeira arrastada. uma janela a abrir. um tapete sacudido. um lamento em voz rezingona. uma corrente de ar que não magoava o
corpo enrodilhado em cobertores e os braços a espreguiçar felicidade – olhos
abertos. e a roupa do domingo
sentada na cadeira em frente à cama.
em espera. em alegria. aprumada. com os sapatos alinhados pelas biqueiras e as meias de lã a dar pelo joelho. sem remendos. emparelhadas
pelos calcanhares – tanto a roupa
como eu sabíamos que este era o único dia em que saiamos de casa orgulhosos: a roupa comigo e eu com o brio do
corpo e da mente – e ali estava eu.
a vestir-me de tudo que era novo. lavado. passado. engomado. e os sapatos
engraxados de um negro-brilho a reluzir uma calmaria que não tardei a perder – e a minha mãe em aflição gritava-me:
-- olha as horas. a missa não espera por ti – não vais voltar a chegar
atrasado. é uma vergonha – a igreja do carmo estava a cento e cinquenta metros
corria para a missa das onze e
trinta e regressava para o almoço amparado pelo poder de uma proteção divina
que mesmo invisível eu acreditava – eram horas de sentar à mesa. a aparadeira de barro trazia o aroma
da melhor carne assada do universo – eramos cinco numa sala só nossa – e a mesa
vestida de um branco encantador dizia que a minha casa não era pequena – eramos cinco. numa “casa absoluta” – e ali estávamos todos numa graça que
também era do senhor. rodeados de
palavras por todos os lados. numas
paredes que se erguiam num interminável instante que durou a minha vida toda –
ainda vivo dentro dessas paredes.
numa mesa que não mudou. numa cadeira à direita do meu pai. depois da minha mãe
e de costas para uma natureza morta comprada a um artista-adornado[r] de almas –
naquela mesa só eu era pequeno. os
pratos enormes. brancos. de uma porcelana grossa. com uma risca azul que era céu. os copos gigantescos equilibravam-se
num único pé. delicados. esguios. bonitos. a honrar o
dia – nunca compreendi aquele equilíbrio-harmonia como cada copo ocupava o seu
lugar. e a forma delicada como o meu
pai o levava à boca pousando-o de seguida com uma amabilidade cristal. enquanto os lábios se tocavam numa
caricia gustativa logo escondida por um guardanapo igual à toalha. branco branco – à semana eram copos
rasos. grossos. feios. feitos para partir. para durar um instante rápido – naquele
tempo não havia coca cola. nem sumos. nem outras mixórdias feitas de
corantes. só água num jarro da barro
com o bico fanado. com a mesma risca
azul do céu – os talheres. acertados em tamanho à direita do
corpo prometiam levar à boca a certeza de que nunca mais deixaríamos de ser
cinco. cinco numa casa “absoluta” –
o guardanapo pendurado no pescoço cobria-me o corpo. embrulhava-me num branco igual ao da toalha enquanto as nódoas se
atiravam para o chão com medo de zangar a minha mãe que não se cansava de
repetir:
--tem cuidado com a roupa. não te sujes. olha que não tens outra para
sair – não me envergonhes
e ali estava eu à mesa sem ainda
perceber a importância de número cinco.
de um cinco inteiro e não um quatro mais
um – não sabia nada de contas. e só
muito tempo depois é que percebi que quatro mais um não é igual a cinco – foi
naquela sala só nossa. “absoluta”. que eu aprendi a contar – os pés para
trás e para a frente entretinham-me das conversas dos meus irmãos enquanto o
meu pai sorria – o meu pai sempre sorria mesmo quando o assunto era sério – ali
estava ele. absoluto. do tamanho da nossa sala. à cabeceira da mesa. vestido também numa roupa de domingo. de família. num corpo bonito. orgulhoso. por dentro e por fora. que sorria também. as mãos brilhavam. e a
comida chegava à boca numa elegância merecida. embelezada por um bigode finíssimo. feito a lâmina de barbeiro.
que atravessava a nossa sala de uma ponta à outra. e os olhos. os olhos
meus deus. bonitos. bons. nasciam-lhe na alma e iluminavam um caminho que nunca fui capaz
de descobrir –
– é domingo. todos os dias são agora para mim domingo – mas já não há
assado no forno
mas cá estou agora. a pensar. como os domingos continuam chuvosos. agora sem comboios. sem
o apito a avisar chuva. a avisar mau
tempo – mas a chuva cai todos os dias e o vento já não atravessa as frinchas. atravessa o corpo numa saudade que me
rompe a memória. e os cinco já não são
cinco. somos quatro e o domingo é
agora ainda mais escuro. sem generosidade. sem carne assada e os cães noutra sala
a dizerem-me que ainda sou mais do que um qualquer domingo e que tenho que
cuidar de mim. entender-me com a hora da morte – e o que era uma soma é agora
qualquer coisa que não sei explicar.
impossível de somar – e a saudade amarrada aos anos que passaram por mim e eu
sem saber se o que vem para lá é mais do que um balançar de pés numa cadeira
que me amarrava a uma sala só nossa.
e as nódoas já não caem no chão.
caem no corpo. como lapas de um mar
que não conhece nenhuma sala como a nossa.
“absoluta” – e o domingo a rasgar-me em imagens que já tinha esquecido. copo cada vez mais pequeno. e os lábios à procura de um pedaço de
tempo que me mate esta sede do domingo que me viu nascer – o domingo entrou-me
no corpo por um braço que me esgana – sufoco. sufoco. sufoco – é
domingo. chove. fora da minha janela – dentro também
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