.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

05/10/2016

domingo. dia de chuva




                                                                        tela - karen woods


domingo – aprendi que tudo o que sou se resume à palavra escrita. à forma como entalho o que escrevo na perpetuidade de uma folha em branco –

         – penso:

hoje. domingo. dia de chuva para o corpo. aguaceiros fracos. o vento a puxar norte e o apito do comboio a chegar pelas traseiras da casa –

         – sempre sofri com a chuva anunciada pelo apitar dos comboios   

em casa dos meus pais. nos dias em que se ouvia o apito do comboio. logo intuíamos que a chuva já deambulava pelo canteiro do vizinho – aplicava então o ditado popular: quando vires as barbas do teu vizinho a arder. põe as tuas de molho – a chuva estava ao dobrar da esquina – da minha casa à casa dos comboios eram cerca de três quilómetros em linha reta. coisa feita pela criançada em menos de dez minutos em passo ligeiro – mas a distância não conta para nada quando o que chega é tocado a vento – e tudo o vento carrega de um revoltado comboio quando apita em forma de grito: chuva. chuva. pouca terra. tristeza. pouca terra. chuva. chuva. tristeza. chuva e uma nostalgia de morte a moldar o som agudo do apito – o vento a deslizar pelas frinchas das janelas zune nos ouvidos tortura. e eu a correr para o terraço e os olhos a esbarrar nos montes cobertos de um negro feio – o silêncio era maior que as montanhas – só se ouvia o vento a pregar com as árvores enquanto que a passarada fugia em debandada para sul – nas janelas da vizinhança as roupas coradas não se cansavam de acenar ao que restava do sol enquanto as donas de casa as recolhiam em aflição – a chuva quando chegava á minha cidade é para durar –

        – não é por acaso que se diz que braga é o penico do céu

deitava os meus olhos incomodados para norte e lá estavam as nuvens com cara de poucos amigos. escuras de ruindade a marcharem num galope de combate. em formação guerreira. rasgando vales e serras. profetizam angústia. agonia. amargura – havia um silêncio nostálgico puxado a um vento esguio que não agoirava nada de bom – também havia uma tormenta anunciada dentro de mim –

         – a chuva açoita ferozmente a verdade de cada corpo: lava-lhe a carne. humedece-lhe a alma

os domingos sempre foram assim. incertos. tristes. silenciosos. feitos de nuvens magoadas a murmurar nostalgia numa calmaria amarga – mas com chuva. os domingos tornavam-se desumanos. malvados. perversos. parecidos com o apocalipse anunciado por cristo – finalmente os anjos de joão vão dar razão ao livro sagrado do cristianismo –

         – nestes dias dominicais nunca sou capaz de grande imaginação. tudo está parado – eu também

no corredor da minha casa a passadeira corre asseada para a porta da rua. mas também por lá o barulho habitual dos dias da semana está ausente – não quero sair. o corpo não quer sair. só quero expurgar da carne esta pré anunciação da morte – este silêncio é poderoso. uma aflição. um sufoco mudo – tomara que nenhum romeiro errante apareça para desarrumar as cadeiras e me roube o silêncio dos cortinados – dizem que o domingo é o dia da família – para mim todos os dias são da família menos o domingo –

         – tudo dentro dos domingos é silêncio. é nostalgia. é aborrecimento é antecâmara de um velório – é um contar de tempo que magoa ao segundo

domingo é dor que dói sem saber onde e porquê – a tristeza invade-me numa sensação de morte antecipada dos sentimentos e tudo que era para ser escrito é vago. vazio. e as mãos desabitadas daquela força interior deixam-se cair até ao fundo do corpo na procura da salvação – aos domingos preciso de sentir o sangue correr nas veias para saber que existo – olho-me então pela janela. imagino uma chuva diferente. a subir ao céu. numa correria feita água-moço. inocente. talvez adolescente. suave como todas as faces acabadas de nascer. sem segredo. sem desvirtude. sem engano. numa dança limpa. branca. venial que não é mais do que o retorno ao começo do meu universo – um universo físico pois já não acredito no universo que me pede rezas – o meu céu é a minha terra e o inferno acontece sempre que viro as costas à janela que agora sei não ser minha. é de um domingo de chuva. de chuva que magoa. que não lava. que me humedece a alma e me faz virar as costas ao mundo – é um domingo de um homem-chuva –

         – os dedos a querer escrever escamam a pele nas palavras que não saem – talvez queira aquilo que não tenho

o cansaço quebra o corpo e o cinzento preenche cada esquina do quarto onde os ângulos são cada vez mais aguçados e a geometria das palavras teima em não aparecer – o candeeiro não ilumina coisa nenhuma. nem dentro nem fora do corpo. a única luz que me chega é a que escapa às cortinas de uma janela virada a sul – mas tudo está a norte. a igreja que com os seus sinos chama gente de fé [cada vez há menos crentes]. o jardim onde as crianças brincam a um futuro que não vejo [cada vez há menos crianças]. as romarias que atiram fogo contra o céu numa tentativa de acordar o santo padroeiro [cada vez há menos romeiros]. os namorados que de beijo em beijo adiam para amanhã o que devia ser hoje [cada vez há menos amor]. aos domingos tudo que vejo é a norte do corpo. a sul existe o que nunca vi –

         – e aqui estou hoje a escrever como se fosse criança – mas não sou. e os domingos também já não são desse tempo

sobra-me em boa memória o acordar aos domingos em casa dos meus pais. o cheiro a assado no forno a invadir o meu estremunhar. e a certeza de uma comida melhorada por ser dia do senhor. enquanto a minha mãe corria a casa em afazeres que nunca compreendi – talvez sentisse também a nostalgia dos domingos e a lida da casa a forma de a superar – acordava. bocejava. virava o corpo para o lado da janela. a luz bocejava [também] pelos intervalos da persiana enquanto a vida  acontecia noutras partes da casa – no ouvido ainda sonolento. uma cadeira arrastada. uma janela a abrir. um tapete sacudido. um lamento em voz rezingona. uma corrente de ar que não magoava o corpo enrodilhado em cobertores e os braços a espreguiçar felicidade – olhos abertos. e a roupa do domingo sentada na cadeira em frente à cama. em espera. em alegria. aprumada. com os sapatos alinhados pelas biqueiras e as meias de lã a dar pelo joelho. sem remendos. emparelhadas pelos calcanhares – tanto a roupa como eu sabíamos que este era o único dia em que saiamos de casa orgulhosos: a roupa comigo e eu com o brio do corpo e da mente – e ali estava eu. a vestir-me de tudo que era novo. lavado. passado. engomado. e os sapatos engraxados de um negro-brilho a reluzir uma calmaria que não tardei a perder – e a minha mãe em aflição gritava-me:

         -- olha as horas. a missa não espera por ti – não vais voltar a chegar atrasado. é uma vergonha – a igreja do carmo estava a cento e cinquenta metros

corria para a missa das onze e trinta e regressava para o almoço amparado pelo poder de uma proteção divina que mesmo invisível eu acreditava – eram horas de sentar à mesa. a aparadeira de barro trazia o aroma da melhor carne assada do universo – eramos cinco numa sala só nossa – e a mesa vestida de um branco encantador dizia que a minha casa não era pequena – eramos cinco. numa “casa absoluta” – e ali estávamos todos numa graça que também era do senhor. rodeados de palavras por todos os lados. numas paredes que se erguiam num interminável instante que durou a minha vida toda – ainda vivo dentro dessas paredes. numa mesa que não mudou. numa cadeira à direita do meu pai. depois da minha mãe e de costas para uma natureza morta comprada a um artista-adornado[r] de almas – naquela mesa só eu era pequeno. os pratos enormes. brancos. de uma porcelana grossa. com uma risca azul que era céu. os copos gigantescos equilibravam-se num único pé. delicados. esguios. bonitos. a honrar o dia – nunca compreendi aquele equilíbrio-harmonia como cada copo ocupava o seu lugar. e a forma delicada como o meu pai o levava à boca pousando-o de seguida com uma amabilidade cristal. enquanto os lábios se tocavam numa caricia gustativa logo escondida por um guardanapo igual à toalha. branco branco – à semana eram copos rasos. grossos. feios. feitos para partir. para durar um instante rápido – naquele tempo não havia coca cola. nem sumos. nem outras mixórdias feitas de corantes. só água num jarro da barro com o bico fanado. com a mesma risca azul do céu – os talheres. acertados em tamanho à direita do corpo prometiam levar à boca a certeza de que nunca mais deixaríamos de ser cinco. cinco numa casa “absoluta” – o guardanapo pendurado no pescoço cobria-me o corpo. embrulhava-me num branco igual ao da toalha enquanto as nódoas se atiravam para o chão com medo de zangar a minha mãe que não se cansava de repetir:

         --tem cuidado com a roupa. não te sujes. olha que não tens outra para sair – não me envergonhes  

e ali estava eu à mesa sem ainda perceber a importância de número cinco. de um cinco inteiro e não um  quatro mais um – não sabia nada de contas. e só muito tempo depois é que percebi que quatro mais um não é igual a cinco – foi naquela sala só nossa. “absoluta”. que eu aprendi a contar – os pés para trás e para a frente entretinham-me das conversas dos meus irmãos enquanto o meu pai sorria – o meu pai sempre sorria mesmo quando o assunto era sério – ali estava ele. absoluto. do tamanho da nossa sala. à cabeceira da mesa. vestido também numa roupa de domingo. de família. num corpo bonito. orgulhoso. por dentro e por fora. que sorria também. as mãos brilhavam. e a comida chegava à boca numa elegância merecida. embelezada por um bigode finíssimo. feito a lâmina de barbeiro. que atravessava a nossa sala de uma ponta à outra. e os olhos. os olhos meus deus. bonitos. bons. nasciam-lhe na alma e iluminavam um caminho que nunca fui capaz de descobrir –

         – é domingo. todos os dias são agora para mim domingo – mas já não há assado no forno

mas cá estou agora. a pensar. como os domingos continuam chuvosos. agora sem comboios. sem o apito a avisar chuva. a avisar mau tempo – mas a chuva cai todos os dias e o vento já não atravessa as frinchas. atravessa o corpo numa saudade que me rompe a memória. e os cinco já não são cinco. somos quatro e o domingo é agora ainda mais escuro. sem generosidade. sem carne assada e os cães noutra sala a dizerem-me que ainda sou mais do que um qualquer domingo e que tenho que cuidar de mim. entender-me com a hora da morte – e o que era uma soma é agora qualquer coisa que não sei explicar. impossível de somar – e a saudade amarrada aos anos que passaram por mim e eu sem saber se o que vem para lá é mais do que um balançar de pés numa cadeira que me amarrava a uma sala só nossa. e as nódoas já não caem no chão. caem no corpo. como lapas de um mar que não conhece nenhuma sala como a nossa. “absoluta” – e o domingo a rasgar-me em imagens que já tinha esquecido. copo cada vez mais pequeno. e os lábios à procura de um pedaço de tempo que me mate esta sede do domingo que me viu nascer – o domingo entrou-me no corpo por um braço que me esgana – sufoco. sufoco. sufoco – é domingo. chove. fora da minha janela – dentro também


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