já não
posso renegar a verdade – aqui estou. solitário. sozinho. retirado do mundo. entregue
a uma luxúria de imagens repletas de sorrisos raros – as fotos chegam numa cadência
de urgência enquanto os likes.
atarefados e eufóricos. se perfilham
pela ordem de chegada nas notificações.
anunciando efusivamente a sua presença a
vermelho – estamos todos por cá – são
fotos incríveis. com mensagens ainda
mais incríveis. numa alegria
estonteante. quase a fazer mal. a doer. como droga alucinogénica. paranoica. cega – e todos os presentes confusos. assustados. apavorados por não saberem até onde poderá chegar esta felicidade
– nunca nenhum artista tinha pintado os sorrisos assim. nunca. nem o de mona
lisa – e tudo isto em redes de vai e vem.
em partilhas feitas ao segundo.
em velocidade estonteante. louca – e
os sorrisos sempre em crescimento.
satisfeitos. animados. a trazer
prosperidade ao futuro – quanto maior o
sorriso maior a felicidade – as fotos não mentem. acredito eu que estou só.
retirado do mundo e dos afetos de proximidade – e todos reagimos. sem pensar. num impulso idiota. numa
sinceridade inquestionável. assinalamos
a receção dos sorrisos com uma nova linguagem global. invariável. imutável e incorruptível: os smiles –
símbolos a representar vida. amizade. amor. proximidade. satisfação. dor. paixão. harmonia. acolhimento. revolta. ira. a rir pouco. a sorrir
muito. a visionar campos de
infinitos beijos. de abraços. de carinhos. e as mãos estendidas à procura de um toque não virtual. e o corpo a sentir um arrepio extra
sensorial – somos amigos – o telemóvel vibra. chama por mim. e o som
passou a uma tocata sem condições de fuga – atendo: quem fala? a máquina multifunções não tem o número memorizado – afinal
é um amigo do tempo em que os
chamamentos eram na campainha da porta. dois toques sorrateiros.
não fosse a mãe entrar em histeria e o proibisse de vir à rua. e logo respondia pelo vão das escadas: -- já desço – e eu sentado na soleira
da porta. a queimar a demora. e o tempo a passar num vagar de meter
medo – hoje como se diferencia um amigo do peito de um amigo tecnológico? digo
então para facilitar esta nova comunicação:
é um amigo mesmo amigo – que coisa mais louca. um amigo deveria ser sempre amigo e nunca necessitar de um
pronome demonstrativo para confirmar uma amizade – agora temos os amigos do
facebook. do instagram. do twitter do youtube e tudo isto numa
trama intelectual. ligados a uma
rede que não nos deixa ficar [mesmo] sozinhos. entretidos com a nossa companhia. conhecendo-nos um pouco melhor. apreciando-nos e retificando em
silêncio os nosso barulhos interiores –
o tempo já não mete medo –
ligo-me a mil amigos. e a outros que
me perguntam se conheço e ainda a outros que talvez queira conhecer e isto tudo
numa irracionalidade que por ser constante aos pouco se torna racional – e os
amigos que não são mesmo amigos gostam da mesmas cores. da mesma moda. dos
mesmos livros. dos mesmos hobbies e
pensam igual. e a religião não
interessa. e o sexo indefinido. ou só mulher. ou só homem. ou as
duas coisas. e este é casado ou está
numa relação em euforia ou agonia – gente igual. gémea mesmo. comprovada
por uma máquina que só sabe falar verdade:
estatística facebookiana – diferente mesmo só sou do amigo mesmo amigo – tudo
que é cérebro é agora alimentado por fios que não vemos e que nos levam e
trazem para sítios que nunca imaginávamos chegar – agora estou em Ibiza. de copo na mão e uma palhinha sai de
um copo às cores e atravessa o planeta em fibra ótica. cheguei ao japão. e o
peixe a ser cortado fininho por uma faca de samurai enquanto os pauzinhos levam
à boca imaginação – atrás de mim uma gueixa segreda-me luxúria para o começo da
noite – e a feed notícias do mundo a girar num ecrã plano. e um canguru perseguido por um aborígene. não. afinal é o aborígene
que persegue o canguru –
todos nós perseguimos alguma
coisa. e muita mais coisas nos
persegue sem que saibamos – tudo isto a correr numa notícia de última hora. triste. muito triste. faz hoje
anos que pavarotti nos deixou. e o
avião do cristiano ronaldo teve um acidente.
e o marido atirou ácido à ex-mulher enquanto a sogra era atropelada por um
camião desgovernado na via de cintura interna – estou amargurado. tonto. também quase sou atropelado por uma última notícia não fosse um
convite promiscuo para saltar para uma cama surreal – e aí estou. embrulhado em lençóis. feliz como nunca. ao lado de um par de pernas que nunca tinha sonhado. parecem-me as da sara tavares. e pela primeira vez sou infiel. e o corpo a suspirar por mais que
apenas pernas. quero mais. afinal para que serve a tecnologia –
estou esgotado. esta mulher não é
para mim – e a minha vida recordada há um ano. vê as tuas memórias. e
uma lágrima misturada com gratidão por estar vivo – e tudo nas mãos é
velocidade estonteante. e quase nada
tenho para fazer. a imaginação já
não é minha é de um grupo de confecionadores de emoções. produção industrial.
em série. e em constante atualização. e tudo me assenta na perfeição. como se soubessem tudo de mim. como alfaiates. e o giz a riscar as sobras.
e a tesoura a ajustar tudo ao corpo enquanto o alinhavo marca numa certeza
absoluta os contornos do corpo – bebo então para esquecer. preciso de um copo para matar esta angústia que verdadeiramente
não sei de onde apareceu –
mando vir uma sangria. e mais uns quantos amigos virtuais. e os copos ao centro numa amizade que
não é de amigo amigo: à tua saúde. enquanto a francesinha num molho cor
de pêssego fumega da mesma forma que fumega a síria. e os mortos espalhados pelas ruínas feitas à bomba de um mundo
cada vez mais terrorista – no facebook também – a alegria do estômago termina
em agonia. enjoa e afoga-se de vez
no mediterrâneo com gritos que são súplicas de refugiados que. de polegar no ar. não acenam. não. imploram ao mundo tecnológico que
substitua os likes por botes salva-vidas – estou arrasado – também quero um like
para mim. um enorme. com um dedo gigante a apontar para um
salva-vidas que me salve do egocentrismo dos meus likes – que ingratidão – e
mais um toque. e o telemóvel a
vibrar e eu assustado. em pânico. descontrolado. não posso fazer esperar um amigo e o braço a correr com a voz
para o ouvido: desculpa estava trinchar
uma francesinha com uns amigos virtuais – e paro a vida para atender a urgência
daquele apelo – todos os toques são importantes – de seguida mais um toque e adio
o amor para a noite seguinte. e mais
um toque e fecho o livro. e outro
toque e digo que já não vale a pena sonhar.
tudo acontece ao segundo e o futuro já não interessa o que interessa é o feed
de notícias –
fecho tudo. eu também. o mundo todo. deixo
ficar ao meu lado a desilusão em que a vida se tornou. não a minha vida que por ser minha não tem interesse para ser
notícia mas a de um smile que chora.
chora como uma criança – todos os smiles tem face de crianças. e eu desfeito em sofrimento saio
disparado por wireless à procura do pokémon que magoou o smile das lágrimas – isto
tudo sem abdicarmos de nenhum tempo porque deixamos de sentir este tempo
eletrónico. gastámo-lo como se fosse
inesgotável. como se aos dias pudéssemos
somar mais tempo. e por cada ano
gasto um mês extra. como se isto fosse
um jogo de flippers e por cada centena de like`s um dia de bónus – estamos parados
e andamos sem dar conta num tempo que deixamos de contar como tempo – mas conta
– interrompemos o tempo verdadeiro.
apanhamos o like e seguimos vidas que nunca serão a nossa vida – e aí vamos por
uma estrada que nos leva a todo o lado para nunca chegar a lado nenhum –
olhamos o universo num retângulo que dá luz.
com sinais sonoros. e com música. e conta histórias feias e bonitas. verdadeiras ou falsas. de amor ou de sangue e tudo isto
apenas com um tremor do braço. um
click do dedo – mais um toque a pedir voz.
atendemos e depressa nos dizem:
manda mensagem. é mais fácil –
o mundo cada vez mais mudo. os dedos já não querem olhos porque
conhecem as letras no escuro. tudo cego no mundo real – que sofrimento – e
os homens cerebrais do outro lado dos fios que não se vêem a dizerem que estás
inibido de viver por vinte e quatro horas – eles fazem lei. julgam e ditam a pena – culpado – tudo isto porque mostraste as pernas
da marylin monroe. o mamilo com piercing
da janet jackson. duas lésbicas num
amor proibido. um profeta parecido
com allah. um poema de escárnio. e um nu do século quinze com um
carimbo a censurar o belo – e a noite chega.
tão noite como outra noite qualquer.
o corpo preso a vibrações que agora já são choques elétricos. e o feed de notícias sem dormir
caminha por ti com sinais sonoros de conveniência desumana – os olhos
encostados a um sono em estado de alerta geral fazem o possível por descansar –
são os novos guerreiros da tecnologia.
enquanto um olho dorme o outro vigia o feed notícias – já nada te pesa no corpo. o passado está morto. e às tuas costas já não carregas amigos
mesmo amigos. carregas um mundo que
não é teu num padecimento transgénico –
estou só. devastado de tudo. de gente que não conheço e de mim
também –
sou agora este corpo tecnológico num mundo que
só me aceita a rir. a falar com
frases curtas. ou com pensamentos
empacotados em caixilhos dourados de gente ilustre que não merecia este destino
– e os sonhos cortados como se a vida fosse apenas estes clicks com o dedo para
cima – força amigo tu vais conseguir.
não desistas amigo. a vida um dia
compensa-te. adoro-te. és lindo. beijinhos. gosto muito
de ti – isto tudo rematado com um smille.
um polegar na direção do paraíso e o inferno é descobrir uma verdade em tanta
mentira – tudo o que digo é um like e o que não digo também e o que faço leva um
like com um sorriso cada vez maior – um dia.
irritado. recuso-me a por mais likes
e digo: estou morto. morri. desapareci. cansei. suicidei-me com um cordão de likes –
é então que milhões de likes emocionais aparecem para um último adeus.
o feed notícias chora. os
dedos apontam para a terra. e os
smiles das lágrimas esbarrotam-se em manifestações de dor e pranto –
carpideiras em histeria dolorosa – os amigos que não são amigos colocam faixas
pretas nos avatares. e milhares de
emoções soltam lágrimas que nada molham – estamos interligados a números de computação cruéis –
somos então um IP entre janelas que nunca se fecham e promovem uma contabilidade que sobrevive a uma bateria
sempre em carga –
como tudo isto pode ser
efémero – com a falta de power na bateria a morte pode acontecer a um qualquer momento –
é então que o pânico acontece. falta
o carregador. o isqueiro do
automóvel está avariado. parece
impossível mas não há nenhuma tomada elétrica num raio de cem metros. e o corpo a tremer. convulsões. vómitos. e uma ira que
pode magoar de verdade enquanto a realidade está em fuga duma ressaca que pode
levar à morte – são os novos toxicodependentes – estamos todos loucos – aqui estou a jogar com a vida. às vezes em ironia. outras. a tentar ser esperto.
e lá chega mais um like sabichão – e passam carros e bicicletas com gente que
já não pedala. e tudo sem margem de
erro ou esquecimento. comandado por
apitos que nos dizem: hoje o teu
amigo mesmo amigo faz anos – tudo é feito à hora certa – tal como os comboios
passam à hora certa. e os autocarros. e o metro. e as bicicletas. e os
táxis. e a uber. e os transportes que não são urbanos. e os velhos com a solidão às costas. e os doentes em ambulâncias que já não gritam dor. e o povo sem se reconhecer. nem pela voz. nem pelos olhos. nem
pelo seu jeito de ser. nem abraço. nem saudação. nem por nada. espera
sentado pela sua vez a chegada de um destino que não controla –
ninguém tira os olhos do
ecrã – por mais noite que seja há sempre um ex-humano parado num apeadeiro à
espera de uma foto. de uma notícia. da morte de um amigo íntimo do mundo
das fotos. de um smile. de um sorriso empacotado – e o like a
cair como cai a urina. na sargeta. e logo de seguida um escarro e um cão
de perna alçada espera também pela sua vez e o like coberto de um ácido que corrói
o cérebro – as fotos sem flexibilidade.
tiradas por um braço metálico. estendido
para o fim do universo. sacam um último
sorriso. e de repente. em total demência. o suicídio coletivo numa gargalhada fotográfica – o mundo afinal
é todo feliz – infeliz só existo eu – só eu sei que estou triste. triste de morte com uma faca
encostada à jugular e o coração a dizer:
és o único que não tem vida – não me rio.
não sorrio. e não digo que hoje o
dia está lindo – não tenho trompete a tocar silêncio porque verdadeiramente não
estou morto. estou apenas uma merda
num mundo de merda – e assim termino esta crónica num sorriso de verdade e que
por ter mais de duas linhas jamais terá direito a um like feliz
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