aguarela - carl larsson
antónio lobo antunes diz que é um carpinteiro das
palavras – é um feitiço esta frase. não me canso de a reler – carpinteiro
traz-me recordações de um passado feliz e tranquilo – em catraio lembro-me do
meu pai chamar o carpinteiro a nossa casa – na maior parte das vezes não era
para coisa de monta. um empeno numa porta ou uma qualquer gaveta encalhada. coisas
da humidade – a madeira em casas antigas inchava pelo inverno e regredia na
volumetria pelo verão – a solução era tirar umas raspas para debelar os empenos
– de vez em quando aparecia um ou outro trabalho mais carote. um bisegre para uma
parede esquecida a necessitar de umas quantas tábuas trabalhadas com habilidade
– não havia máquinas como nos dias de hoje. as mãos eram a tecnologia-ferramenta-arte
– para atingir este estatuto de artesão o trabalho começava bem antes de acabar
a quarta classe – para muitos destes mestres da madeira a escola só lhes
ensinou a somar as medidas tiradas a olho – eram tempos em que os estudos não
estavam ao alcance de todas as famílias – no fim da primária muitas crianças
tinham que largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar às despesas da
casa – não havia dinheiro fácil e o remédio era encontrar rapidamente uma
profissão. começar a aprender desde cedo a arte escolhida. sempre pelo seu
progenitor. que o acompanharia até ao fim dos seus dias – todos os mestres
começaram o seu ofício pelas tarefas menos qualificadas – depois de muitos
sacrifícios. com muitas reprimendas. puxões de orelhas. ofertas de cargas de
porrada e lá se ia compondo o artista – já em idade adulta. naquele tempo
depois dos vinte e um anos. os mais capazes. os mais trabalhadores. os mais
humildes. os mais aplicados e persistentes lá chegavam a mestres de marcenaria –
era agora um pouco mais do que carpinteiro. era marceneiro – que honra – agora
sim. este era o topo da profissão e com ela o orgulho de pertencer a uma classe
profissional que se sabia especial na história da marcenaria portuguesa – com o
titulo chegava também um salário semanal mais reforçado. o casamento. o
respeito dos colegas de trabalho. do patrão e dos amigos – a família com o seu
chefe era uma instituição respeitada no estado novo – a trilogia: deus. pátria
e família – eram verdadeiros peritos na arte de trabalhar a madeira e tinham
agora também a responsabilidade de preparar outros jovens para a vida adulta –
eram mestres. professores e educadores – mas em minha casa o assunto tornara-se
grave e aquela esquina da sala de visitas uma dor de cabeça – a situação estava
caótica havia um canto da parede por preencher – já não havia paciência para ouvir
as lamúrias da minha mãe. sempre preocupada com as visitas de amigos e
familiares ao lar – ouvia-a muitas vezes dizer:
-- isto assim não está nada bem. é urgente e imprescindível
um novo móvel para aquele canto – temos que resolver isto rapidamente. é uma vergonha.
como posso receber visitas com este canto da sala neste estado – o que irão
dizer
com este argumento já não havia
volta atrás para o meu pai – o remédio era mesmo encomendar mais um móvel para
sossegar a matriarca – lá aparecia um homem de bata cinza-triste. enfeitada com
pequenas aparas. rolinhos de madeira feitos à plaina. todos tão certinhos que não
me custava imaginar serem colocados à mão. um a um para abrilhantar e valorizar
a arte de quem trabalha madeiras raras. exóticas e caríssimas – a minha mãe lá
ia explicando o que queria enquanto o homem das madeiras acenava com a cabeça a
tudo que a dona da casa e do dinheiro ia articulando. confirmando o seu bom
gosto e saber. com intervenções cirúrgicas de quem tinha tirado um curso superior
na arte de encantar os clientes – e lá ia
dizendo o mestre:
-- a senhora sabe o que quer. vê-se que tem bom gosto. ainda
o mês passado entreguei uma peça igual ao dr. zenha. a senhora sabe quem é não
sabe?
perante um silêncio
prolongado logo acrescentava:
-- tem consultório em frente ao jardim santa bárbara. é um
grande médico. um dentista que estudou em coimbra. a “casa” está sempre
abarrotar de clientela – nunca tem horas de sair – dizem que é um grande médico
e muito boa pessoa – não desfazendo
a minha mãe fazia um gesto afirmativo
com a cabeça – nunca percebi se aquele abanar de cabeça a dizer que sim era por
conhecer mesmo o doutor ou apenas para não ficar mal na conversa – mas logo voltava
à carga:
-- não quero daquelas madeiras ordinárias. quero tudo em
castanho. bem sequinho. não quero cá madeiras empenadas ao fim de seis meses – se empenar leva-os todos para trás e
devolve-me o dinheiro e nunca mais lhe compro nada – um móvel é sempre um móvel
e não é para meia dúzia de dias
o artista garantia que
podia estar descansada. o trabalho dele era sério. as madeiras usadas eram de
qualidade e muito bem secas. tudo que saía da sua casa era da máxima perfeição.
de total confiança e com a garantia da sua palavra
-- se alguma coisa não estiver ao gosto da senhora. chama-me
que na hora resolvo o problema
sempre que entrava uma
visita pela casa adentro logo a minha mãe fazia questão de comunicar em tom
grave: é tudo em castanho. até as forras das costas. não quis nada em tabopan.
e continuava com a sua dissertação de valorização do material e do seu bom
gosto:
-- foram caros mas valeu a pena. são móveis para toda a
vida. não foi barato mas é um gosto. afinal é para isto que tanto trabalhamos e
esta é a nossa casa
– ainda bem que não foi
verdade. a minha mãe ainda é viva e os móveis já se foram. mas a verdade é que
nunca lhes vi uma peta de caruncho no castanho. outros tempos – sempre achei
que o nome da madeira tinha origem na sua cor. mas não. era da árvore. mais
tarde vim a saber que era o castanheiro – coitadas das castanhas. mortas para
fazer móveis – estes homens especiais. mestres. domadores do formão faziam qualquer
peça de mobiliário. mesas de sala de jantar. cadeiras. cardências. aparadores. camas
com guarda-vestidos. cómodas e toucadores com espelhos laterais para que as
senhoras pudessem ter uma visão perfeita da volumetria do seu cabelo. que na
época. eram pulverizados com quilos de laca ultra fixadora – deitavam o pó de
arroz em movimentos circulares que mais pareciam agroglifos deixando um nuvem
no ar de um rosa-mate perfumado de pureza – eram artistas. eles e as senhoras –
lembro-me da mobília de quarto da minha mãe. mais tarde passou para o meu quarto
porque a minha mãe se aborreceu do d. josé – encomendou uma dona maria. estava
mais na moda – sempre que tínhamos uma visita lá ia a minha mãe e o meu pai
mostrar as mobílias. quando chegava ao quarto dizia com orgulho:
-- é estilo d. josé. toda em carvalho. custou-nos uma
fortuna
o meu pai acenava com a
cabeça em concordância com tudo que a minha mãe ia dizendo. também não podia
ser de outra forma. tudo o que tocava em interiores do lar era da
responsabilidade do mulherio – sempre me intrigou aquela
coisa de dar nomes da nobreza portuguesa a mobílias de quarto. sabia que o d.
josé tinha sido um rei de portugal. com o cognome o reformador devido às
reformas que implementou no seu reinado – logo por isso me parecia ter sido um
personagem real importante – mas a partir de certa altura o que me fez mesmo valorizar
o seu reinado foi
a imponência da mobília com seu nome – a cama era realmente majestosa.
carregadinha de bilros. pequenos e grandes. encaixados uns nos outros. todos torneados.
feitos a formão. um a um –
-- uma mobília com aquele aparato de curvas e contracurvas
não poderia ser de um rei qualquer – o problema era limpar o pó mas também
confesso que não era da minha preocupação
estes mestres de bem
trabalhar a madeira. gostavam de ostentar bigodes fartos. sempre enfeitados com
pequenas partículas de serrim. dava-lhes um ar de excelência e profissionalismo
– pelo aspeto do bigode jurava que os seus antepassados foram os responsáveis
pelo aparecimento da caravela portuguesa – na orelha um lápis enorme. não era
redondo. tinha um formato geométrico esquisito. com um crayon grossíssimo. dava para tudo. riscar as paredes. as
madeiras. todas as explicações eram feitas a lápis e o projeto tirado da
algibeira em cinco minutos – as medidas sempre alinhavadas a olho e anotadas
por cima de traços que ninguém compreendia – escrita de talento – de vez em
quando lá vinha a fita métrica para dar um ar de credibilidade ao mestre e por
fim. para que não restassem dúvidas do seu profissionalismo rapava do nível.
encostava-o á parede e com um olho fechado e outro aberto dava um suspiro que
ninguém percebia muito bem se aquele arfar aflito significava desgraça ou
aumento do preço final do produto – se realmente havia um problema o artista
enrugava o sobrolho e deixava escapar por entre os lábios a preocupação:
-- vai ser o diabo
tudo isto era anotado num
papel de cartuxo de mercearia. cinza claro trespassado por duas riscas azul
forte – este cartão grosso servia também para colocar na testa da criançada sempre
que as esmorravam – depois lá vinha a lenga lenga de que os galos cantavam à
meia-noite. confesso que nunca ouvi nenhum – humedecia-se em água o papel
cartuxo. colocava-se sobre o hematoma e ali ficávamos à espera que alguém
dissesse:
-- podes tirar. já não cresce mais. estás pronto para
outro – tudo se curava com amor
no passado era assim o
mundo dos homens com profissões respeitadas – nesse tempo. ninguém era
verdadeiramente rico. ninguém tinha carros de alta cilindragem. nem relógios de
marca. nem roupa de marca. nem fins de semana prolongados. o único dia de
descanso era o domingo. dia do senhor com a igreja a fazer questão de lembrar a
obrigatoriedade da visita – e assim acontecia. vestia a melhor roupa. com
solenidade. com brio e vaidade. peito para cima. ombros direitos. queixo firme.
bigode aparado. cabelo com brilhantina e um sorriso que o vestia de dignidade
de cima a baixo – acompanhado sempre pela esposa. discreta. sem ornamentos
espalhafatosos. vestia um fato-saia-e-casaco singelo. em lã. cor neutra. nem
fina nem grossa para assim usar o ano inteiro – engalanada. crente em deus e no
futuro não se cansava de dar o braço ao seu marido numa vaidade de quem sabia que
não tinha apenas um homem. tinha muito mais. tinha um artista que a sociedade
respeitava – tenho saudades desse tempo.
tenho saudades da idade jovem da minha mãe. tenho saudades daquele jeito de ver
o meu pai fazer todas as vontades à minha mãe – também em minha casa a honra se
sentava à mesa – e eu com um orgulho que
me dura até hoje
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