.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/10/2016

carpinteiro - o mestre das madeiras




aguarela - carl larsson





antónio lobo antunes diz que é um carpinteiro das palavras – é um feitiço esta frase. não me canso de a reler – carpinteiro traz-me recordações de um passado feliz e tranquilo – em catraio lembro-me do meu pai chamar o carpinteiro a nossa casa – na maior parte das vezes não era para coisa de monta. um empeno numa porta ou uma qualquer gaveta encalhada. coisas da humidade – a madeira em casas antigas inchava pelo inverno e regredia na volumetria pelo verão – a solução era tirar umas raspas para debelar os empenos – de vez em quando aparecia um ou outro trabalho mais carote. um bisegre para uma parede esquecida a necessitar de umas quantas tábuas trabalhadas com habilidade – não havia máquinas como nos dias de hoje. as mãos eram a tecnologia-ferramenta-arte – para atingir este estatuto de artesão o trabalho começava bem antes de acabar a quarta classe – para muitos destes mestres da madeira a escola só lhes ensinou a somar as medidas tiradas a olho – eram tempos em que os estudos não estavam ao alcance de todas as famílias – no fim da primária muitas crianças tinham que largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar às despesas da casa – não havia dinheiro fácil e o remédio era encontrar rapidamente uma profissão. começar a aprender desde cedo a arte escolhida. sempre pelo seu progenitor. que o acompanharia até ao fim dos seus dias – todos os mestres começaram o seu ofício pelas tarefas menos qualificadas – depois de muitos sacrifícios. com muitas reprimendas. puxões de orelhas. ofertas de cargas de porrada e lá se ia compondo o artista – já em idade adulta. naquele tempo depois dos vinte e um anos. os mais capazes. os mais trabalhadores. os mais humildes. os mais aplicados e persistentes lá chegavam a mestres de marcenaria – era agora um pouco mais do que carpinteiro. era marceneiro – que honra – agora sim. este era o topo da profissão e com ela o orgulho de pertencer a uma classe profissional que se sabia especial na história da marcenaria portuguesa – com o titulo chegava também um salário semanal mais reforçado. o casamento. o respeito dos colegas de trabalho. do patrão e dos amigos – a família com o seu chefe era uma instituição respeitada no estado novo – a trilogia: deus. pátria e família – eram verdadeiros peritos na arte de trabalhar a madeira e tinham agora também a responsabilidade de preparar outros jovens para a vida adulta – eram mestres. professores e educadores – mas em minha casa o assunto tornara-se grave e aquela esquina da sala de visitas uma dor de cabeça – a situação estava caótica havia um canto da parede por preencher – já não havia paciência para ouvir as lamúrias da minha mãe. sempre preocupada com as visitas de amigos e familiares ao lar – ouvia-a muitas vezes dizer:

-- isto assim não está nada bem. é urgente e imprescindível um novo móvel para aquele cantotemos que resolver isto rapidamente. é uma vergonha. como posso receber visitas com este canto da sala neste estado – o que irão dizer

com este argumento já não havia volta atrás para o meu pai – o remédio era mesmo encomendar mais um móvel para sossegar a matriarca – lá aparecia um homem de bata cinza-triste. enfeitada com pequenas aparas. rolinhos de madeira feitos à plaina. todos tão certinhos que não me custava imaginar serem colocados à mão. um a um para abrilhantar e valorizar a arte de quem trabalha madeiras raras. exóticas e caríssimas – a minha mãe lá ia explicando o que queria enquanto o homem das madeiras acenava com a cabeça a tudo que a dona da casa e do dinheiro ia articulando. confirmando o seu bom gosto e saber. com intervenções cirúrgicas de quem tinha tirado um curso superior na arte de encantar os clientes – e lá ia dizendo o mestre:

-- a senhora sabe o que quer. vê-se que tem bom gosto. ainda o mês passado entreguei uma peça igual ao dr. zenha. a senhora sabe quem é não sabe?

perante um silêncio prolongado logo acrescentava:

-- tem consultório em frente ao jardim santa bárbara. é um grande médico. um dentista que estudou em coimbra. a “casa” está sempre abarrotar de clientela – nunca tem horas de sair – dizem que é um grande médico e muito boa pessoa – não desfazendo

a minha mãe fazia um gesto afirmativo com a cabeça – nunca percebi se aquele abanar de cabeça a dizer que sim era por conhecer mesmo o doutor ou apenas para não ficar mal na conversa – mas logo voltava à carga:

-- não quero daquelas madeiras ordinárias. quero tudo em castanho. bem sequinho. não quero cá madeiras empenadas ao fim de seis meses  – se empenar leva-os todos para trás e devolve-me o dinheiro e nunca mais lhe compro nada – um móvel é sempre um móvel e não é para meia dúzia de dias 

o artista garantia que podia estar descansada. o trabalho dele era sério. as madeiras usadas eram de qualidade e muito bem secas. tudo que saía da sua casa era da máxima perfeição. de total confiança e com a garantia da sua palavra

-- se alguma coisa não estiver ao gosto da senhora. chama-me que na hora resolvo o problema

sempre que entrava uma visita pela casa adentro logo a minha mãe fazia questão de comunicar em tom grave: é tudo em castanho. até as forras das costas. não quis nada em tabopan. e continuava com a sua dissertação de valorização do material e do seu bom gosto:

-- foram caros mas valeu a pena. são móveis para toda a vida. não foi barato mas é um gosto. afinal é para isto que tanto trabalhamos e esta é a nossa casa

– ainda bem que não foi verdade. a minha mãe ainda é viva e os móveis já se foram. mas a verdade é que nunca lhes vi uma peta de caruncho no castanho. outros tempos – sempre achei que o nome da madeira tinha origem na sua cor. mas não. era da árvore. mais tarde vim a saber que era o castanheiro – coitadas das castanhas. mortas para fazer móveis – estes homens especiais. mestres. domadores do formão faziam qualquer peça de mobiliário. mesas de sala de jantar. cadeiras. cardências. aparadores. camas com guarda-vestidos. cómodas e toucadores com espelhos laterais para que as senhoras pudessem ter uma visão perfeita da volumetria do seu cabelo. que na época. eram pulverizados com quilos de laca ultra fixadora – deitavam o pó de arroz em movimentos circulares que mais pareciam agroglifos deixando um nuvem no ar de um rosa-mate perfumado de pureza – eram artistas. eles e as senhoras – lembro-me da mobília de quarto da minha mãe. mais tarde passou para o meu quarto porque a minha mãe se aborreceu do d. josé – encomendou uma dona maria. estava mais na moda – sempre que tínhamos uma visita lá ia a minha mãe e o meu pai mostrar as mobílias. quando chegava ao quarto dizia com orgulho:

-- é estilo d. josé. toda em carvalho. custou-nos uma fortuna

o meu pai acenava com a cabeça em concordância com tudo que a minha mãe ia dizendo. também não podia ser de outra forma. tudo o que tocava em interiores do lar era da responsabilidade do mulherio – sempre me intrigou aquela coisa de dar nomes da nobreza portuguesa a mobílias de quarto. sabia que o d. josé tinha sido um rei de portugal. com o cognome o reformador devido às reformas que implementou no seu reinado – logo por isso me parecia ter sido um personagem real importante – mas a partir de certa altura o que me fez mesmo valorizar o seu  reinado foi a imponência da mobília com seu nome – a cama era realmente majestosa. carregadinha de bilros. pequenos e grandes. encaixados uns nos outros. todos torneados. feitos a formão. um a um –

-- uma mobília com aquele aparato de curvas e contracurvas não poderia ser de um rei qualquer – o problema era limpar o pó mas também confesso que não era da minha preocupação

estes mestres de bem trabalhar a madeira. gostavam de ostentar bigodes fartos. sempre enfeitados com pequenas partículas de serrim. dava-lhes um ar de excelência e profissionalismo – pelo aspeto do bigode jurava que os seus antepassados foram os responsáveis pelo aparecimento da caravela portuguesa – na orelha um lápis enorme. não era redondo. tinha um formato geométrico esquisito. com um crayon grossíssimo. dava para tudo. riscar as paredes. as madeiras. todas as explicações eram feitas a lápis e o projeto tirado da algibeira em cinco minutos – as medidas sempre alinhavadas a olho e anotadas por cima de traços que ninguém compreendia – escrita de talento – de vez em quando lá vinha a fita métrica para dar um ar de credibilidade ao mestre e por fim. para que não restassem dúvidas do seu profissionalismo rapava do nível. encostava-o á parede e com um olho fechado e outro aberto dava um suspiro que ninguém percebia muito bem se aquele arfar aflito significava desgraça ou aumento do preço final do produto – se realmente havia um problema o artista enrugava o sobrolho e deixava escapar por entre os lábios a preocupação:

-- vai ser o diabo

tudo isto era anotado num papel de cartuxo de mercearia. cinza claro trespassado por duas riscas azul forte – este cartão grosso servia também para colocar na testa da criançada sempre que as esmorravam – depois lá vinha a lenga lenga de que os galos cantavam à meia-noite. confesso que nunca ouvi nenhum – humedecia-se em água o papel cartuxo. colocava-se sobre o hematoma e ali ficávamos à espera que alguém dissesse:

-- podes tirar. já não cresce mais. estás pronto para outro – tudo se curava com amor

no passado era assim o mundo dos homens com profissões respeitadas – nesse tempo. ninguém era verdadeiramente rico. ninguém tinha carros de alta cilindragem. nem relógios de marca. nem roupa de marca. nem fins de semana prolongados. o único dia de descanso era o domingo. dia do senhor com a igreja a fazer questão de lembrar a obrigatoriedade da visita – e assim acontecia. vestia a melhor roupa. com solenidade. com brio e vaidade. peito para cima. ombros direitos. queixo firme. bigode aparado. cabelo com brilhantina e um sorriso que o vestia de dignidade de cima a baixo – acompanhado sempre pela esposa. discreta. sem ornamentos espalhafatosos. vestia um fato-saia-e-casaco singelo. em lã. cor neutra. nem fina nem grossa para assim usar o ano inteiro – engalanada. crente em deus e no futuro não se cansava de dar o braço ao seu marido numa vaidade de quem sabia que não tinha apenas um homem. tinha muito mais. tinha um artista que a sociedade respeitava –  tenho saudades desse tempo. tenho saudades da idade jovem da minha mãe. tenho saudades daquele jeito de ver o meu pai fazer todas as vontades à minha mãe – também em minha casa a honra se sentava à mesa –  e eu com um orgulho que me dura até hoje




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