foto - sampaio rego
tudo que
ouço fica aqui [olhos]. aqui onde o descanso não existe e tudo o que é real
permanece imutável – abano esta mágoa de ver a minha compaixão desaparecer. sei
agora que já não é agonia. é aceitação – impossível dizia eu – o cosmos desfaz
os impossíveis – a possibilidade nos impossíveis existe – a racionalidade matemática
também se pode transformar numa equação errante em milésimas irracionais – estas
milésimas loucas passam a existir apenas para quem faz questão de viver com justeza
– errado. digo eu. e a conta feita pela centésima vez e o erro escondido nos
detalhes. no destino. no coração que herdamos e que só bate como ele quer – a
borracha na mão para apagar o que não é apagável. modificável. transformável.
rasurável – na vida tudo é a branco ou a preto. tudo é virtude ou tropeção.
tudo é destino. interação e ocasião súbita – tudo se resume a flaches de luz
que viajam a uma velocidade que nunca entenderemos – estavas lá. não importa
onde. como estavas. estavas e disseste presente e o mundo engoliu-te. digeriu-te
e faz de ti um príncipe onde as contas dão sempre certas pelo arredondamento não
das centésimas mas das unidades – se te vomitou tudo está acabado.
por mais contas que faças o resultado terminará sempre num quase estava certo
se não fosse aquela décima. aquela nesga. aquele pé que nos rasteirou. aquela
rua que nunca deveríamos ter tomado. aquela casa que nunca deveria ter sido
comprada pelos nossos pais. aquela parteira que não nos deixou cair – não há
arredondamento para as centésimas – enfim. o erro só é erro quando retira
mérito a quem o produz – eu não produzi absolutamente nada. sou apenas destino
– sempre acreditei na vida. mesmo quando me pareceu impregnada de um
coeficiente elevado de erro – sempre acreditei que o mais certo venceria o
incerto. que os caminhos sinuosos chegassem ao mesmo destino dos que são feitos
de retas. e que a glória mais saborosa fosse feita de sacrifício – o povo de
israel andou quarenta anos à procura da terra prometida. sofreram umas quantas perseguições.
provações. humilhações. arrependimentos. hesitações. dúvidas. mas no final a certeza
de que aquele era o caminho correto – o triunfo do bem sobre o mal. dos
virtuosos sobre os impuros. da amizade sobre o desconhecido. do céu na terra em
vez da glória pós morte com a ressurreição à direita de um pai que nunca foi
meu – o castigo divino é a nossa
memória que em vida não perdoa o destino que não escolhemos e o seu erro – a dor é viver – e o corpo iludido com o que
afinal estava escrito desde o nascimento – juro que não sabia caso contrário
recusava-me a nascer – nunca entendi nada de destinos. de famílias e da sua
história. das suas tradições. do caminho. das raízes. que de tanto caminharem
ficamos sem saber de onde vieram – talvez um cruzado. um judeu convertido ao
catolicismo. um escravo que de tanta miscigenação acabou por ficar branco. um
agricultor da idade das trevas. marinheiro nos descobrimentos. um homem ao
serviço de deus. do diabo. da morte – não sei que caminho percorremos para
chegar aqui – sou o que sou e só sei de mim numa parte desta caminhada
sempre mortal – sei do meu pai. sei do que ele me disse. tantas vezes sem a atenção
que merecia – mas queria o meu próprio caminho – tolo. o que era importante mesmo
era saber mais do seu caminho para ficar a saber mais do meu – sei que era boa
pessoa. sei que guardava o mundo num abraço inesgotável e que sorria do seu
passado com desprezo – vivia em paz num corpo aformoseado
por uma bondade capaz de enfeitiçar a dor. o sofrimento. a amargura. a aflição.
a angústia – e assim fez um pé de meia que nunca foi capaz de o usar – o
destino roubou-lhe o final feliz. morreu preso a uma maldição que nunca quis
acreditar ser merecido. esqueceu-se de tudo. até de si e partiu sem uma única
palavra que o vestisse como se partisse para ser recebido por deus. morreu nu
de tudo – com ele só levou o destino – como dizem os castelhanos: no creo en
brujas pero que las hay las hay – no meu caso substituiria as bruxas por
feiticeiros – as cartas em cima da mesa distribuídas em cruz como manda o livro
de s. cipriano – um valete de ouro. uma dama de ouro. um rei de ouro e o
enforcado de cabeça para o inferno enquanto a viúva pede à morte perdão pelo
desdém com que o seu amado vive os últimos dias de vida – baralho e lanço
novamente o destino para a mesa e o resultado igual. apenas o enforcado está
cada vez mais enforcado e a viúva cada vez mais viúva e o negro mais negro – não há nada que possamos fazer
contra o destino. as cartas estão na mesa desde o dia em que nascemos e por
mais que as embaralhes. que as cortes ou que as cruzes. o enforcado nasceu
enforcado e estará sempre de pernas para o ar – o natal está aí. não tarda nada
– no natal temos a família que amamos e os amigos que nos restam e nenhum
enforcado pode matar o meu espírito de natal – depois do natal... voltarei a
deitar as cartas e então posso ser o enforcado com as pernas para a cova porque
já pouco me importa
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