pintura - r. g. nascimento
o que
vos posso dizer de mim esta madrugada – a folha cansada de estar em branco –
arranquei com as teclas – interrogo-me se haverá algum momento certo para
desistir de um sonho – passei a noite toda a batalhar nesta equação e não lhe
encontro resultado – então comecei a escrever e por cada palavra escrita um
livro trazido à memória – morgadinha dos canaviais. uma família inglesa. as
pupilas do senhor reitor. foram os meus primeiros clássicos a regressar ao cimo
da memória – tinha doze anos – apaixonei-me por júlio dinis e li os seus livros
todos – eram histórias fantásticas. incrivelmente bem escritas – cresci
amarrado a estas histórias. não há um dia da minha vida que não tenha um
pedacinho deste autor – ensinaram-me tanta coisa. nos seus livros. mais do que
a nobreza das palavras havia a nobreza das ações – não havia leitura que não me
trouxesse lágrimas aos olhos. e os lenços encharcados de um sentimento que já
não tenho. esperança – o triunfo do bem sobre o mal. do certo sobre o errado.
do dia sobre as sombras da noite. da lealdade sobre falsidade. da nobreza da
família sobre a vergonha. da honra dos homens sobre a procura das trevas – meu
deus. como foi possível ser tão feliz com aquela leitura – era criança. uma criança
crescida. nunca tive tempo para descansar. os sonhos ocupavam-me o corpo todo.
olhava para o futuro com a certeza de que não iria deixar um único sonho para
trás – o tempo passou e cá estou eu perdido em mais uma noite empacotando
sonhos que fui deixando apodrecer – escrevo. escrevo nestas noites que são mais
dos meus leitores do que minhas. eu já não tenho nada a não ser memórias –
muito do que sou devo ao júlio dinis. só me mentiu numa coisinha. nem sempre o
que está certo triunfa sobre o errado – que se lixe. gosta na mesma dele
Sem comentários:
Enviar um comentário