meia noite. primeiro minuto
de uma segunda feira de páscoa e primeiro dia da ressurreição de cristo –
dezassete de abril. dia de aniversário –– o domingo abriu com foguetes.
meia-noite. e os clarões no céu alumiam a entrada para o reino de deus – na
terra o povo trata do cabrito para festejar condignamente o encontro de cristo
com seu pai – atascado em especiarias. e
sem nenhuma hipótese de ressurreição o carneiro entrega-se ao sacrifício.
afinal há festa rija entre os humanos – agora só falta mesmo a visita do senhor
e as casas ficam limpas de pecado para mais um ano – em cima da banca da
cozinha o jornal abre-se à leitura. silvio berlusconi não está com papas na
língua: por favor não matem os
carneirinhos. pede o cavalheiro acariciando um exemplar nos seus braços – por
baixo uma outra notícia contra ataca: produtores de carneirada insurgem-se
contra o ex-primeiro ministro italiano: -- ganha juízo rapaz. quando andavas
com miúdas menores não tinhas olhos para carneiros – mas o berlusconi não quer
saber e ataca: os carneiros tem sentimentos – não sei se também se referia a
mim. eu também sou carneiro. tenho sentimentos. nasci em abril. 17 de abril. o
ano não interessa. mas acredito que esse ano não deu boa casta. digo que não
presta porque eu sou do tipo de indivíduo que encaixa perfeitamente na
carneirada meia louca. aquela que não desiste de acreditar em histórias de
merda: contínuo à espera de um sinal
de que cristo realmente chegou ao céu – sou aquele género de carneirada com
poucos miolos e com excesso de fé – embrulhado numa saca de plástico reciclável
a rosca do pão ló feita com ovos caseiros. não pode ficar duro. o pão de ló é
como a vida. se não for fofinho não presta –
eu estou duro. por isso sei que um pão de ló duro não presta – estou tão
duro que já não me consigo ajoelhar para nada –
mas este ano é diferente. cristo ressuscitou mesmo. nem falo pelo que me
resta de fé. falo pela quantidade de foguetes que estalaram no céu – fico
contente quando há festa no céu. o meu pai está por lá. onde há festa ele está
presente – deve andar às voltas de deus a dizer-lhe das boas – ele gostava
muito de mim. era um bom pai. não creio que se cale com algumas injustiças – um
dia vamo-nos sentar sem tempo a falar de como a vida pode ser bonita se
tivermos um coração bom – eu tento ter. mas a vida ás vezes complica-me as
artérias e fico com a ideia de que vai rebentar. sistema nervoso – este ano vai
ser mesmo verdade. cristo levantou-se do marasmo da morte e caminhou para o céu
– o que me faz impressão é caminhar descalço. a minha mãe está sempre a
dizer-me para não andar descalço que fico doente – mas esta malta importante
não lhe acontece nada – quem tem amigos não morre na cadeia – não deve ter sido
fácil levantar-se depois de ter sido dado morto para o mundo – falo por mim. às
vezes estou morto e não sei como me levantar. depois lá me chega um amigo e
diz: vamos tomar um café – quando é para tomar café ninguém me consegue
segurar. falo e falo sem parar. falo com as mãos. com o corpo. e as expressões faciais aliviam o coração do
mau olhado – sempre gostei dos meus amigos. creio que é por ser carneiro de
signo – às vezes gostava de ser de outro signo qualquer. um que me deixasse ser
como realmente sou de verdade – o carneiro não mente porque teme a mentira – ser
carneiro é ser sempre mais. é estar onde nunca queremos estar. é viver o futuro
duas vezes. é ser escravo da palavra até morrer. é ser fiel a quem amamos. é
chorar sem que ninguém consiga entender uma única lágrima – a dor dos carneiros
é feita por nós e para nós – mas que se lixe a carneirada – uma multidão de fãs
aguarda em ansiedade que se cumpra realmente a profecia – eu também – estou
fora de mim hà mais de cinquenta páscoas esperando que cristo chegue ao reino de
deus – olho para o céu. oriento-me pelas estrelas. da maior para a mais pequena
e tento descortinar uma ligação cientifica:
juntando a estrela A com a C e acrescentado a que está ao lado da cassiopeia. a
358zkx. retira-se a lua que é muito romântica. acrescento-lhe vénus. uma pitada
de amor dá sempre jeito. e para terminar boto-lhe marte em guerra e o resultado
é…zero – todos os anos é zero o resultado da páscoa com cristo redentor –
segunda-feira. dezassete de abril. segunda-feira de páscoa e a multidão
regressa á normalidade – arruma-se os temperos. as cadeiras voltam recuperar o
centro da mesa e o silêncio volta à tristeza habitual – sento-me em frente aos
restos do pão de ló e percebo que o açúcar um dia vai dar cabo de mim – tenho
medo da balança. tenho medo da idade. tenho medo de me perder do que me faz
ainda inteiro – meia noite. um beijo da minha companheira de sempre. de seguida
um abraço e umas quantas lágrimas a pedir perdão. encostamo-nos um ao outro e ali
ficamos presos a um olhar que nos faz amar e compreender. envergonhados. afinal
sabemos tudo um do outro. é ali que eu ressuscito diariamente para a vida –
depois um filho mostra-me que valeu a pena ter nascido: -- parabéns meu pai. e mais
outro ao telefone. e eu a sofrer uma dor de gratidão que magoa mais que uma má
notícia. um amigo do porto a chegar primeiro que muitos outros. uma amiga que
não se cansa de continuar a fazer-me bem. sempre a escrever o que não sou. e
mais outro e por fim aqui fiquei neste silêncio das teclas a contar os anos da
forma que me lembro – há tantos anos que nem sei que existiram. que maldade. e os
amigos. tantos já sem nome. crueldade da memória. e os que partiram e que nunca
ressuscitaram. e outros que por não terem ainda morrido gostava de os ver
ressuscitados em mim – não podemos envelhecer encostados a nenhuma faca –
cristo não ressuscitou mas eu vou continuar a ressuscitar todos os dias – estou
triste. faço anos – ninguém merece fazer anos quando não está bem
Sem comentários:
Enviar um comentário