adelino ângelo
1.
a morte física ou da personalidade
a
morte física de um corpo – declara-se o óbito quando é devidamente comprovada a
inexistência de sinais vitais no corpo humano. isto é. a total falência dos
seus órgãos e ausência completa de atividade cerebral – o médico-legista
declara o término da vida apontando as possíveis causas da sua morte permitindo
deste modo o desaparecimento do corpo para sempre do mundo sensível
2.
a morte emocional
aponto o
meu foco para uma morte menos dolorosa.
menos repentina. uma morte que vai acontecendo
aos poucos. quase sempre a passo de
tartaruga. tão lenta que o sistema
de alerta cerebral acaba ludibriado pelo seu vagar: a morte emocional – esta.
sem que na maior parte das vezes a ciência saiba explicar. acontece quando as defesas do corpo. num conluio terrorista.
consente o descarnamento da sua rede de neurónios. permitindo deste modo.
que a sua intimidade seja exposta a uma censura coletiva. insensível e muitas vezes injusta – dá-se então o curto-circuito. o cérebro atrofia. o corpo estremece de medo.
de seguida estremece de um frio que é mais do que gelo. é um imobilismo aterrador perante
o desconhecido – o corpo humano revela na plenitude total a sua fragilidade –
só há uma forma de se proteger.
imolar-se na indiferença. esquivar-se
ao raciocínio e esconder-se no mais fundo dos silêncios que guarda em si – e
ali fica. parado. quase sem respirar para enganar as chispas que agora lhe caiem
dos olhos em forma de apatia letal – se hoje o mundo ruir este corpo já não lhe
pertence – tudo que lhe sobrevive resiste num cosmos desocupado de emoção – do passado
só reconhece o barulho. sempre impertinente. como se o mundo andasse numa fona irracional. noite e dia. sem descanso. arrastado
por um pêndulo ritmado pela indiferença.
a marcar os dias num desinteresse total pela quietação – e o que ainda sobrevive
à derrocada sentimental é agora tratado com doses maciças de um químico afectivo. fertilizado no útero de uma mulher mais
pura do que o céu – resistir é agora a única mensagem emitida por si e apenas para
si – mas a sua vontade já não chega – o corpo por dentro contorce-se numa
desordem impossível de acalmar.
enquanto por fora. a ressaca é feita
de imagens que já não quer compreender – tudo o que compreende acaba a magoar –
não se quer compreender os livros. a
religião. a família. o amor. a compaixão. a vida. os amigos. a razão porque se nasce ou porque se demora tanto tempo a morrer fisicamente
– no caos da morte emocional já não é possível acontecer uma nova ordem. um novo recomeço. um novo ciclo de vida imaginado. traçado ou idealizado – corpo e mente degradam-se numa
responsabilidade repartida. uma
guerra sem vencedor em que cada uma das partes responsabiliza a outra pela falência
emocional – cai por terra a regra da sobrevivência do mais adaptado – o corpo
perde o medo à dor enquanto e cérebro perde a vontade de chorar. e assim. se esvaia de forma definitiva as frugais probabilidades de um
regresso à lucidez – enquanto a memória se apaga seletivamente o silêncio
vai-se alastrando ao corpo todo – o mundo já não é mensagem – já nada traz movimento. as mãos recusam brigar enquanto os pés se recusam caminhar – apaga-se
as origens para não a envergonhar. apaga-se
o amigo para não o magoar. apaga-se
a felicidade para não trazer saudade.
apaga-se a ambição para evitar o erro.
apaga-se o futuro porque só o presente existe. apaga-se a fé porque deus é um mito. e por fim. apaga-se a
luz para que ninguém nos veja no escuro – louvar a vida é um provocação ao
destino que pode terminar a qualquer momento tragicamente. basta que o mal vença o bem uma única vez – o mundo é um vício
que nos pode matar de uma overdose – levanto os olhos abatidos e transformo o
vinho em água. desmultiplico o pão. elimino a confiança e digo-lhe
apontando para o céu: quem me seguir
entrará no reino do inferno e viverá na dor para toda a eternidade – o silêncio
pinga agora uma única pergunta: porque
eu? – não há resposta – e todos os mortos emocionais perguntam o mesmo e a
resposta é desespero: salve-se quem
puder porque cada cabeça terá a sua sentença – fecham-se as portas por fora. correm-se as janelas para a escuridão
e entrega-se o corpo à tortura até que a coragem se sobreponha à mágoa – é obrigatório expiar o erro – sofre corpo. sofre corpo porque só a dor torna o
homem superior – um corpo doente acredita em tudo – mas para que interessa tudo
isto se o corpo está a morrer de apatia – não interessa. não interessa e não interessa – o corpo que morre emocionalmente ignora
os estímulos humanistas. os valores
morais. a justiça. a liberdade. a fraternidade. a
solidariedade. o amor pelo próxima
mas acima de tudo o amor por si próprio – este corpo. desfalecido e esgotado.
é forçado a refugiar-se em zonas escuras.
proibidas. suicidas. onde prolifera a autocomiseração que
não é mais do que uma viagem ao centro da dor inesgotável. indomável. selvática. impiedosa. acabando por se perder numa espiral de tragédias. de desastres e de fatalidades que raramente
permitem a sua reutilização para uma nova vida – com a morte emocional perde-se
tudo. até a dignidade – este mundo
mata pela mentira. oferece a todos o
que só pode dar a alguns – termino com uma frase do mia couto: “quem vive num labirinto, tem fome de
caminhos”
- a terceira parte do texto
será dedicada à morte terapêutica
- *título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu
peito não cabem pássaros
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