pintura - osvaldo lima
6.
eu e o zé do gerês
o zé antunes
com mais quatro anos do que eu era um dos primogénitos da praça do comércio – entre
amigos. rapazes. quatro anos de diferença é uma enormidade de tempo. um é homem-feito. adulto. namoradeiro. com a personalidade formada e
interesses perfeitamente definidos. enquanto o outro ainda teima em sair da
adolescência. inseguro. à procura do seu caminho. intranquilo com o futuro. com a pessoalidade a baloiçar entre o
regresso ao protecionismo familiar ou a emancipação irrevogável – a
adolescência é uma aurora dolorosa – batizámo-lo de zé do gerês porque as suas
origens remontavam à vila do gerês-rio caldo. uma aldeia turística.
integrada no parque nacional da peneda gerês. a norte de portugal – o zé veio com a sua mãe e irmã viver para a
nossa rua – compraram um apartamento numa das laterais da praça do comércio e
instalaram-se com a discrição de quem chega duma aldeia do interior – uma
família da classe média. discreta. reservada. simpática. educada e
muito religiosa – a mãe do meu amigo.
para além das visitas regulares á igreja.
raramente aventurava-se para a rua – este recolhimento obrigava o zé a alguns cuidados. ele não gostava de deixar a mãe
sozinha e sempre que a irmã saía recolhia-se em casa – o pai emigrara para o
brasil ainda o nosso país vivia debaixo da ditadura salazarista – éramos uma
nação pobre. com uma repressão
interna violentíssima. triste.
sem futuro. a viver uma guerra
colonial onde os jovens eram obrigados a combater e a morrer – um país fechado
ao mundo exterior. sem nenhuma
perspetiva de melhoras políticas e económicas a curto prazo – a geração dos nossos pais foi obrigada a deixar
tudo para trás e a partir pelo mundo em busca de uma vida melhor para os seus –
as famílias ficavam suspensas pela saudade e pela dor da distância – estas
separações não eram fáceis nem para os que partiam nem para os que ficavam – o
governo brasileiro na época de sessenta prometia melhores condições de vida para
quem tivesse coragem de atravessar o atlântico – naquele tempo a distância era do
tamanho de um oceano inteirinho. não
havia voos comerciais a toda a hora.
a internet não passava de ficção e as ligações telefónicas para além de serem
caríssimas eram dificílimas – era o tempo da carta. do telex. do telegrama
e da saudade silenciosa – o zé tornou-se adulto muito cedo. era o homem da casa e talvez por isso evitasse falar do seu pai. nós sabíamos que sofria. sabíamos que carregava em si uma ausência
dolorosa. uma saudade escondida num emudecimento
sofrido – todos os seus amigos respeitavam este seu silêncio magoado – nunca
saberemos até que ponto este condicionamento familiar alterou a personalidade
do meu amigo – mas nem tudo era mau para o zé antunes. fruto do sacrifício do seu pai a sua família era marcada por uma qualidade
de vida elevada. em especial o zé.
usufruía de uma poder financeiro invejável e raro para a época – ao zé antunes nada
lhe faltava. vestia bem e caro. fumava cigarros com filtro e encantava
com charme num estilo muito pessoal apoiado
numa masculinidade discreta mas de bom gosto – acredito que o meu amigo foi o
primeiro metrossexual da nossa cidade – era um homem moderno. gostava de cuidar da sua higiene e
principalmente do seu visual – com um pouco mais de um metro e setenta. magro. bonito. cabelo curto. espesso. orelhas tão pequeninas que nunca percebi como conseguia ouvir –
uma pele branca produzida com cremes perfumados deixava emergir dois olhos
vaidosos. negros. abertos à claridade.
doces. encaixados numa boca pequena. educada. carregada de palavras difíceis e histórias de maravilhar – o zé
era um excecional contador de histórias.
como era bom ouvi-lo – sem barba. apenas
alguns pelos rijos explodiam do queixo numa fúria selvagem – no entanto. numa postura séria e orgulhosa. fazia questão de dizer que os cortava
com a última novidade do mercado
para barbas difíceis: a gillette cup
– o zé não andava. desfilava pelas
ruas como se estivesse numa passarela de moda. olhos no ar. meio
sorriso. quase importante. aprumado pela roupa. impecável. com gosto. num ar
desportivo: blazer pela mão. pulôver com decote em bico com os colarinhos
da camisa presos no seu interior.
calça de ganga justa. sapato de pala. meia à cor da calça. cheiroso numa leveza subtil mas
suficientemente eficaz para se sentir a fragrância num raio de dez metros – era
assim que o meu amigo existia no nosso mundo – eu tinha vaidade no zé. gostava de o ver bonito. quanto mais bonito ele estivesse mais
bonito ficava eu ao seu pé – sempre tive orgulho no meu amigo – a acumular com
todas estas deferências positivas o meu amigo era um comunicador de excelência. aliado duma retórica eloquente. com variadíssimos recursos de
argumentação apoiado em procedimentos enfáticos e aparatosos capazes de convencer
qualquer pessoa sobre qualquer coisa – na sua retórica. e se necessário. o zé
colocava o estilo acima do conteúdo e a convicção acima da verdade – era um
mestre da oratória – esta lábia era também aplicada aos encantamentos do mundo
feminino. o que levava a que o nosso
amigo andasse sempre muito bem acompanhado – quase me arriscaria a jurar que o
zé era constantemente vitima de assédio sexual – no seu caso. este assédio não era indesejado. o zé gostava de passear as amigas
pelo casco velho da cidade. gostava
de ostentar a sua virilidade – o zé do gerês era um rapaz muito vaidoso. sabia tudo sobre moda e fazia questão
de a seguir com afinco trajando-a com brio e satisfação – vestia-se na pic pic. a loja de roupa da cidade mais procurada
pela nata da sociedade bracarense – frequentava esta loja apenas os poderosos e
ricos dos negócios. ilustres jogadores
da bola e outros que não tendo nenhum título ou profissão aparente faziam também
questão de se misturarem com o jet set bracarense – o zé antunes nunca saia de
casa com as cores descombinadas. na
época não havia nada que não combinasse com a sua figura. as cores da roupa misturavam-se umas com outras mas no final tudo
batia com elegância. com graça. com etiqueta. por onde passava tudo se arrastava para dentro de si com graciosidade. como se houvesse um feitiço.
o zé era um príncipe – gosto de o recordar no café [casa de pasto luso
brasileiro]. sentado. de perna
alçada. a esticar a meia pela
silhueta da perna. com delicadeza. num ritual de afirmação pessoal. como se quisesse dizer: eu estou aqui – tudo à sua volta era
um círculo mágico e todas as palavras eram dele. e ouvíamos. e tudo que
dizia era para aprender. e mais uma
palavra e mais magia e da cartola mais uma surpresa. o zé era encantador. e
mais um vocábulo difícil e outro e o círculo aceso de admiração. pasmo. e bate com o cigarro no maço do tabaco. três ou quatro pancadas e o cigarro na boca com uma delicadeza proporcional
aos seus encantos de oratória – é este o zé que guardo dentro de mim numa
amizade pura. boa. que nunca parou de sorrir. em abraço. forte. calcificada
pelo tempo. para sempre. até que a morte nos leve – eu gosto
muito do meu amigo – o zé de gerês gostava de saber coisas que mais ninguém sabia. quer dizer. eu não sabia – o zé era um rapaz culto e gostava de mostrar tudo o
que sabia aos amigos. também era
vaidoso no conhecimento – uma espécie de google daquele tempo. o que não soubéssemos perguntávamos
ao zé que logo ele dava um palpite – era um rapaz fantástico. calmo. sempre á procura de uma graça corrosiva. um humor de fino recorte sempre acompanhado de um sarcasmo delicado. com tiradas rápidas. seguidas de pausas que nos deixavam
em suspensão. à espera da próxima
piada. e aquele ar malicioso a
cair-lhe do olhar. a roçar o gozo. o escárnio. mas tudo dito com elevação.
com conta. peso e medida. nada e ninguém se ofendia. era um mestre no humor – o zé ao
sábado comprava sempre o expresso.
trazia-o debaixo do braço com o titulo virado para fora. tinha vaidade em ler o semanário. gostava de política – naquele
tempo só os intelectuais é que comparavam o semanário – também passei a comprar
o expresso mas nunca cheguei a intelectual e nunca aprendi tanto como ele – depois
do jantar reuníamo-nos no café da nossa rua e quando este encerrava passava-mos
para debaixo do alpendre da praça e ali ficávamos em conversa resistente. até que o sono ou os compromissos nos
obrigassem a regressar a casa – com o aproximar da meia noite. o zé tornava-se inquieto e o controle
dos ponteiros do relógio era feito ao minuto – antes da primeira badalada da
meia-noite já ele tinha que ter a chave metida na porta de sua casa – e era
assim todos os dias. foi assim todos
os anos até ao dia em que partiu para coimbra para tirar o curso de direito – senti
muito a falta do meu amigo – as noites nunca mais foram iguais. faltavam-me as suas histórias – o zé
para mim também emigrara e a distância era muito mais do que um oceano –
compensou com a sua licenciatura. nesse
dia senti um enorme orgulho e vaidade.
o meu amigo era finalmente advogado – aos domingos encontrávamo-nos sempre na sacristia
da igreja do carmo. éramos nós que
recolhíamos as dádivas dos fieis durante a eucaristia dominical – o zé recebia
as esmolas no corredor direito. eu
no esquerdo e o sacristão no corredor central – a missa dominical das onze e
trinta agregava praticamente toda a comunidade crente da nossa área residencial
– naquela época pertencer à família cristã era a chave mestra para que
caíssemos nas boas graças de amigos.
vizinhos e até família – a minha mãe enchia-se de orgulho sempre que alguém me
elogiava na vocação de servir a deus – tenho que agradecer ao zé esse estado de
graça granjeado em minha casa. foi
da sua responsabilidade a minha participação na missa dominical – a única
família que escolhemos livremente são os amigos. o zé era o meu irmão mais
velho. adorava-o. tudo o que
desejava era ser como ele – gosto de recordar aquela história que ele contava
do judas – o judas era um rapaz mais ou menos da sua idade que depois dos pais
emigrarem ficou a morar com a sua avó na sé.
zona de braga com alguns problemas de integração social – por detrás das nossas
casas havia uma área enorme de campos. onde
uma vez por semana se realizava a feira de braga – era ali o nosso ponto de
encontro nas férias para os confrontos amistosos [nem sempre] futebolísticos –
de acordo com o que meu amigo contava.
logo nos primeiros dias da sua chegada a braga. praticamente sem conhecer ninguém. foi para o campo da feira quando
avistou um rapaz muito mal vestido. esfarrapado
e sujo a um bom par de dezenas de metros – mais tarde veio a saber que este indivíduo
tinha a alcunha de judas – o judas conforme o nome diz não era um rapaz dócil. pelo contrário. não frequentava a escola.
era arruaceiro. dedicava-se a
pequenos furtos e o passatempo preferido dele era a briga – o judas andava
sempre munido de uma fisga de elásticos de câmara-de-ar. era com esta arma que executava pequenos assaltos aos miúdos – é
aqui que começa verdadeiramente a história.
o judas apontou a fisga a um rapazito
que jogava a bola num dos campos pelados.
e sem perder tempo com a mira. largou
os elásticos e catrapus. em cheio na
cabeça – enquanto o rapaz agoniava o judas calmante. já com a fisga recarregada.
aproximou-se do puto e esvaziou-lhe os bolsos e partiu tão calmamente como
tinha chegado – o meu amigo zé. acabado de chegar de uma vila-aldeia do
interior nunca tinha visto uma coisa daquelas e pensou: estou perdido. este
gajo é um terror. é um
franco-atirador. um sniper de elite.
estou lixado. vai infernizar a minha
vida – se depressa pensou mais depressa
fugiu para casa – mais tarde veio a descobrir que afinal o judas não conseguia
acertar nem num poste a dois metros.
tinha um problema de visão e naquele tempo não havia dinheiro para óculos –
riamos sempre com aquela história.
principalmente com as expressões de terror que o zé imprimia na narração do
evento – o zé adorava contar histórias e eu de as ouvir – o meu amigo era um
homem bom. com ética. com carácter. com valores morais.
justo com os amigos e com a amizade – o zé foi a pessoa que mais influência
teve no meu crescimento. diria mesmo
na minha vida – devo-lhe muito do que sou hoje – adorava-o. queria ser como ele. tinha
vaidade na sua amizade – foi com o zé que descobri o valor da virtuosidade. da verdade e da justiça – não tenho
nenhuma dúvida de que a sua proximidade permitiu-me crescer com mais confiança. mais segurança nas relações sociais. com sentimentos mais positivos e mais
estabilidade emocional – a nossa amizade fez de mim um homem mais íntegro. mais justo e mais tolerante – ensinou-me
a questionar as minhas ações. entende-las. perceber se são boas ou más.
corretas ou incorretas. justas ou
injustas – só um homem justo sobrevive ao tempo. o zé vive em mim porque me educou com amizade – o zé antunes era
o meu ídolo – sempre torci para que a vida fosse justa com ele – a amizade é um
contrato para a vida – ainda hoje sou tanto dele
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