.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

07/12/2017

eu e:





pintura - osvaldo lima





5.  eu e o tiaguinho

o tiago araújo era mais velho do que eu um ano – alto para caraças. magro-elegante. com uns olhos azuis acesos dentro de uma pele tão branca que cegava todos os que estivessem à sua volta – o cabelo. ligeiramente escuro-forte-ondulado. tombava serenamente sobre uma testa que nunca se acostumou às brigas de miúdos – o tiaguinho era um homem bom. correto. leal. dócil. aprumado na roupa e numa delicadeza requintada e harmoniosa – o tiaguinho não andava. marchava como um guerreiro em tempo de paz. herdou o passo do pai que era militar da infantaria – era um homenzarrão que caminhava sempre como se o mundo tivesse obrigação de esperar por ele. nunca o vi a correr – digo que nunca o vi correr porque mesmo quando se atrevia a jogar futebol era tão desengonçado que ninguém sabia ao certo se estava a cair ou a tentar levantar-se – em boa verdade não tinha muito jeito para a bola. mas também não era coisa que o preocupasse. tinha sempre lugar na equipa. todos o queriam no seu time pela sua robustez física – sempre que tentava correr a sua face transfigurava-se num fúria desgovernada. os adversários. aterrorizados. com medo de levar uma valente canelada. escolhiam deixá-lo passar – afinal tudo não passava de uma fúria dócil – o futebol trazia-lhe para a face uma excitação enfurecida que em mais nenhum momento poderia ser observada – o tiago era um homem de paz. sereno e tranquilo – todos os homens bons são de paz. são serenos e tranquilos – como era bonito o meu amigo. especialmente quando se trajava de fato. era o único da rapaziada que se vestia como um funcionário nobre.  um “self-made man” da época – que classe. se já era um homem alto. com o terno. enfarpelado de cima a baixo. num resplende algodão fino. ficava gigante. maior do que a torre eiffel. um verdadeiro monsieur – não havia mãe nenhuma dos meus amigos que não se encantasse com tiaguinho. a minha mãe não fugia à regra e fazia questão de me dizer: põe os olhos no teu amigo. anda sempre asseado. com brio. tu pareces um desgraçado – eu era um desgraçado ao seu pé – educadíssimo e sempre encavalitado num sorriso que quando virava gargalhada ecoava pelos confins do mundo como um rugido de leão – quem não se lembra das suas gargalhadas escangalhadas e contagiantes – a seu lado a tristeza esbatia-se paulatinamente acabando por abalar para outros finais – o meu amigo era uma mente humana distinta. culto. evoluído. esclarecido num pensamento aberto ao mundo. dotou-se de uma percepção visionária invulgar: foi o primeiro da nossa geração a possuir um computador zx sepectrum – em boa verdade vos digo. ninguém percebia muito bem o uso a dar àqueles monstrinhos – apenas os mais atentos e informados compreenderam que a viagem no tempo se faria com inteligência artificial – o tiago percebeu. foi o primeiro informático da nossa rua e um dos primeiros deste país – era singular – para lá desta novíssima bricolage tecnológica o meu amigo adorava automóveis. sabia tudo sobre motores e pilotos. nada lhe escapava em desportos motorizados com quatro rodas. uma paixão do seu tamanho – sempre que a tv transmitia carros a roncar aí estava o tiaguinho escorado à transmissão. ninguém o apanhava na rua – pela noite abrigávamo-nos debaixo do coberto da praça e ali ficávamos em cavaqueira amena. a queimar o frio com conversas iluminadas apenas pelo luar. a divagar. extasiados com tanta juventude. a falar de tudo para. muitas vezes. não dizer quase nada naquele tempo o nosso único inimigo era o relógio – adorávamos falar. o truque para uma boa camaradagem é falar. falar de tudo. de futebol. de mulheres. de carros. de ciência. de roupa. de vaidade. de livros e da sua leitura – foi do meu amigo a dica para ler agatha christie – adorei e fiz um parceiro para a vida. o belga hercule poirot – foi um período bonito. descobrimos melhor do que ler os livros da agatha era falar deles – assim fizemos. falamos do poirot. do seu enredo. do mistério. de venenos. de facas e pistolas. do expresso do oriente. de criminosos e inocentes. falamos como se para cada livro pudéssemos inventar um outro final – éramos os dois felizes – riamos muito – sua mãe tinha um quiosque numa das praças mais emblemáticas da nossa cidade. não era uma tabacaria como a de fernando pessoa. era um quiosque numa estética pós-moderna. em inox reluzente. tratado com modernices. envidraçado em trezentos e sessenta graus. com uma guarita de venda protegida em volta por jornais diários e revistas do jet set – no seu interior. em substituição da mãe. o meu amigo comandava o negócio com segurança – à postura profissional. acrescentava um sorriso gracioso enquanto  manuseava com delicadeza os valores selados. o tabaco avulso. guloseimas e ainda outras bugigangas que por serem de ofensa á moral pública estavam escondidas nas prateleiras subterrâneas do desejo carnal – ali ficava ele. em posse séria. de respeito. como se tivesse aos comandos de um carro de combate. enquanto eu intercalava a conversa com a chegada e partida dos clientes – mais tarde. este meu amigo. acabou por ser o meu padrinho de casamento – foi um dia muito especial para mim e para ele pois foi nesta celebração que conheceu o amor da vida dele – nunca me arrependi da escolha. era um homem bem-nascido. bom e honrado – que mais podemos querer para um amigo. mais nada. o tiaguinho tinha tudo – ainda hoje tenho orgulho de ter a sua assinatura como testemunha cristã num dos dias mais importantes da minha vida – éramos jovens. éramos jovens com sonhos. éramos bons rapazes – em memória um momento que marcou para sempre a sua personalidade afetiva no seio do nosso grupo de amigos – certo dia. por perto do natal [creio]. o tiago chega à porta da lusitana. padaria que juntava à venda do pão também algumas guloseimas. e já com a porta fechada. bate ao vidro e pergunta à funcionária: celestina tem bombocas? e ela responde num sorriso exclusivo construído só para si: não tenho não menino. estão esgotadas. só para a semana – a partir desse dia nunca mais deixamos de lhe perguntar pelas bombocas da celestinha que por mero acaso era uma mulheraça com um par de seios maiores do que uma dúzia de bombocas – não conheci ninguém que não tivesse um carinho especial pelo nosso tiaguinho. era realmente um catraio desigual de todos os outros – tenho saudades do meu amigo. tenho saudades de nós. tenho saudades dos passeios noturnos pela nossa cidade encantada. tenho saudades dos sonhos compartidos. das loucuras. das conversas sobre mulheres. principalmente das que tinham seios enormes e conduziam descapotáveis de óculos escuros – tenho saudades de lhe dizer: até amanhã. dorme bem. a vida vai ser nossa – tenho muitas saudades – a vida escolheu ruas diferentes para a nossa caminhada. mas a distância nunca me apagou nenhum afeto – tempo também é aprendizagem e saber – hoje ainda gosto mais deste meu camarada da juventude – vou gostar para a  eternidade numa terna ilusão de que um dia possamos reviver esta vida noutra dimensão. seremos então novamente crianças bondosas e retocaremos definitivamente a estrada que nos apartou – amigo não se esquece por mais longa e distante que tenha sido a viagem – o tiaguinho pertencia ao império dos homens bons


2 comentários:

  1. Adorei, até estou emocionado...
    ... Está tua proeza de pôr em escrita a nossa amizade é fantástica..
    Boa continua...
    Abraço

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  2. um dia falaremos sobre os benefícios da pandemia :) abraço

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