pintura - osvaldo lima
5. eu e o tiaguinho
o
tiago araújo era mais velho do que eu um ano – alto para caraças. magro-elegante. com uns olhos azuis acesos dentro de uma pele tão branca que cegava
todos os que estivessem à sua volta – o cabelo. ligeiramente escuro-forte-ondulado. tombava serenamente sobre uma testa que nunca se acostumou às
brigas de miúdos – o tiaguinho era um homem bom. correto. leal. dócil. aprumado na roupa e
numa delicadeza requintada e harmoniosa –
o tiaguinho não andava. marchava como um guerreiro em tempo
de paz. herdou o passo do pai que
era militar da infantaria – era um homenzarrão que caminhava sempre como se o
mundo tivesse obrigação de esperar por ele.
nunca o vi a correr – digo que nunca o vi correr porque mesmo quando se atrevia
a jogar futebol era tão desengonçado que ninguém sabia ao certo se estava a
cair ou a tentar levantar-se – em boa verdade não tinha muito jeito para a bola. mas também não era coisa que o
preocupasse. tinha sempre lugar na
equipa. todos o queriam no seu time pela
sua robustez física – sempre que tentava correr a sua face transfigurava-se num
fúria desgovernada. os adversários. aterrorizados. com medo de levar uma valente canelada. escolhiam deixá-lo passar – afinal tudo não passava de uma fúria
dócil – o futebol trazia-lhe para a face uma excitação enfurecida que em mais nenhum
momento poderia ser observada – o tiago era um homem de paz. sereno e tranquilo – todos os homens bons são de paz. são serenos e tranquilos – como era bonito o meu amigo. especialmente quando se trajava de
fato. era o único da rapaziada que
se vestia como um funcionário nobre. um “self-made man” da época – que classe. se já era um homem alto. com o terno. enfarpelado de cima a baixo.
num resplende algodão fino. ficava gigante. maior do que a torre eiffel. um verdadeiro monsieur – não havia
mãe nenhuma dos meus amigos que não se encantasse com tiaguinho. a minha mãe não fugia à regra e fazia
questão de me dizer: põe os olhos no
teu amigo. anda sempre asseado. com brio. tu pareces um desgraçado – eu era um desgraçado ao seu pé – educadíssimo
e sempre encavalitado num sorriso que quando virava gargalhada ecoava pelos
confins do mundo como um rugido de leão – quem não se lembra das suas
gargalhadas escangalhadas e contagiantes – a seu lado a tristeza esbatia-se paulatinamente
acabando por abalar para outros finais – o meu amigo era uma mente humana
distinta. culto. evoluído. esclarecido
num pensamento aberto ao mundo.
dotou-se de uma percepção visionária invulgar: foi o primeiro da nossa geração a possuir um computador zx
sepectrum – em boa verdade vos digo.
ninguém percebia muito bem o uso a dar àqueles monstrinhos – apenas os mais
atentos e informados compreenderam que a viagem no tempo se faria com inteligência
artificial – o tiago percebeu. foi o
primeiro informático da nossa rua e um dos primeiros deste país – era singular –
para lá desta novíssima bricolage tecnológica o meu amigo adorava automóveis. sabia tudo sobre motores e pilotos. nada lhe escapava em desportos motorizados
com quatro rodas. uma paixão do seu
tamanho – sempre que a tv transmitia carros a roncar aí estava o tiaguinho escorado
à transmissão. ninguém o apanhava na
rua – pela noite abrigávamo-nos debaixo do coberto da praça e ali ficávamos em
cavaqueira amena. a queimar o frio com
conversas iluminadas apenas pelo luar. a
divagar. extasiados com tanta
juventude. a falar de tudo para. muitas vezes. não dizer quase nada – naquele tempo o nosso único inimigo era o relógio – adorávamos falar. o
truque para uma boa camaradagem é falar. falar de tudo. de futebol. de
mulheres. de carros. de ciência. de roupa. de vaidade. de livros e da sua leitura – foi do
meu amigo a dica para ler agatha christie – adorei e fiz um parceiro para a
vida. o belga hercule poirot – foi
um período bonito. descobrimos melhor
do que ler os livros da agatha era falar deles – assim fizemos. falamos do poirot. do seu enredo. do mistério. de venenos. de facas e pistolas. do
expresso do oriente. de criminosos e
inocentes. falamos como se para cada
livro pudéssemos inventar um outro final – éramos os dois felizes – riamos
muito – sua mãe tinha um quiosque numa das praças mais emblemáticas da nossa
cidade. não era uma tabacaria como a
de fernando pessoa. era um quiosque
numa estética pós-moderna. em inox
reluzente. tratado com modernices. envidraçado em trezentos e sessenta
graus. com uma guarita de venda
protegida em volta por jornais diários e revistas do jet set – no seu interior. em substituição da mãe. o meu amigo comandava o negócio com segurança
– à postura profissional.
acrescentava um sorriso gracioso enquanto manuseava com delicadeza os valores selados. o tabaco avulso. guloseimas e ainda outras bugigangas que por serem de ofensa á
moral pública estavam escondidas nas prateleiras subterrâneas do desejo carnal –
ali ficava ele. em posse séria. de respeito. como se tivesse aos comandos de um carro de combate. enquanto eu intercalava a conversa
com a chegada e partida dos clientes – mais tarde. este meu amigo. acabou
por ser o meu padrinho de casamento – foi um dia muito especial para mim e para
ele pois foi nesta celebração que conheceu o amor da vida dele – nunca me arrependi
da escolha. era um homem bem-nascido. bom e honrado – que mais podemos
querer para um amigo. mais nada. o tiaguinho tinha tudo – ainda hoje
tenho orgulho de ter a sua assinatura como testemunha cristã num dos dias mais
importantes da minha vida – éramos jovens.
éramos jovens com sonhos. éramos
bons rapazes – em memória um momento que marcou para sempre a sua personalidade
afetiva no seio do nosso grupo de amigos – certo dia. por perto do natal [creio].
o tiago chega à porta da lusitana.
padaria que juntava à venda do pão também algumas guloseimas. e já com a porta fechada. bate ao vidro e pergunta à
funcionária: celestina tem bombocas?
e ela responde num sorriso exclusivo construído só para si: não tenho não menino.
estão esgotadas. só para a semana – a
partir desse dia nunca mais deixamos de lhe perguntar pelas bombocas da
celestinha que por mero acaso era uma mulheraça com um par de seios maiores do
que uma dúzia de bombocas – não conheci ninguém que não tivesse um carinho
especial pelo nosso tiaguinho. era
realmente um catraio desigual de todos os outros – tenho saudades do meu amigo. tenho saudades de nós. tenho saudades dos passeios noturnos
pela nossa cidade encantada. tenho
saudades dos sonhos compartidos. das
loucuras. das conversas sobre
mulheres. principalmente das que
tinham seios enormes e conduziam descapotáveis de óculos escuros – tenho
saudades de lhe dizer: até amanhã. dorme bem. a vida vai ser nossa – tenho muitas saudades – a vida escolheu ruas
diferentes para a nossa caminhada. mas
a distância nunca me apagou nenhum afeto – tempo também é aprendizagem e saber – hoje ainda gosto mais deste meu
camarada da juventude – vou gostar para a eternidade numa terna ilusão de que um dia
possamos reviver esta vida noutra dimensão.
seremos então novamente crianças bondosas e retocaremos definitivamente a
estrada que nos apartou – amigo não se esquece por mais longa e distante que
tenha sido a viagem – o tiaguinho pertencia ao império dos homens bons
Adorei, até estou emocionado...
ResponderEliminar... Está tua proeza de pôr em escrita a nossa amizade é fantástica..
Boa continua...
Abraço
um dia falaremos sobre os benefícios da pandemia :) abraço
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