.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

23/12/2017

eu e:





pintura - álvaro cunhal 






7.    a oferenda aos meus dois amigos


estes dois pequenos excertos literários do escritor húngaro sándor mári - as velas ardem até ao fim. é uma oferenda aos meus amigos tiago e josé antunes. um género de final replicado para as duas crónicas anteriores – o livro. um romance intenso. dedicado a uma amizade entre dois homens. amigos de infância inseparáveis. que se encontram novamente quarenta anos mais tarde – uma reflexão penetrante e pessoal sobre a amizade que sándor mári disseca com amor. afabilidade. nostalgia. tristeza e perdão – o autor. na derradeira fase do envelhecimento. compreendeu que só relativizando os sentimentos é que conseguiria encontrar o indulto em si – sándor mári ensina-nos a encarar a verdade mesmo quando ela se apresenta difícil. complicada e desagradável. sabendo que ainda assim ela será sempre menos arrasadora do que a mentira – recuperar o passado para o questionar é uma missão penosa sobretudo quando se trata de recuperar um amigo de infância – neste romance o autor trouxe a verdade às palavras. a tolerância aos diálogos. o amor à compreensão e o perdão ao coração

“O que é que se pode perguntar das pessoas com palavras? O que vale a resposta que uma pessoa dá com palavras e não com a realidade da sua vida?... Vale pouco (...) São poucas as pessoas cujas palavras correspondem por completo à realidade das suas vidas. Talvez seja esse o fenómeno mais raro da vida. Na altura, ainda não o sabia. Agora não me refiro aos mentirosos, aos safados. Só penso que conhecer a verdade, adquirir experiências, de nada serve, porque ninguém consegue mudar o seu carácter. Talvez não se possa fazer mais nada na vida que adaptar à realidade com inteligência e cautela essa outra realidade inalterável, o carácter pessoal. É a única coisa que podemos fazer. E mesmo assim, não seríamos mais sábios, nem mais protegidos...”


nunca é tarde para trazer os amigos para emergência dos dias que ainda restam viver – nunca é tarde para resgatar uma amizade da mágoa ou do esquecimento – a solidão. o silêncio e o envelhecimento dissipa de vez as multidões. o barulho e a escassez de tempo – com a aproximação do fim para o corpo aprendemos o valor das coisas simples. da ausência. da saudade. do perdão e da aceitação do desacerto – somos todos pecado e erro – 

 “ … Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso é também velhice. Quando já se sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com a exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice. Porém, há ainda algo vivo no teu coração, uma recordação, algum objectivo da vida indefinido, gostarias de tornar a ver alguém, gostarias de dizer ou saber alguma coisa, e sabes que um dia chegará esse momento e então, de repente, já não será tão fatalmente importante saber e responder à verdade, como pensaste durante as décadas de espera. Uma pessoa compreende o mundo, pouco a pouco, e depois morre. Compreende os fenómenos e a razão das acções humanas. A linguagem simbólica do inconsciente… porque as pessoas comunicam os seus pensamentos por símbolos, já reparaste?...” 

o carácter de um homem é inalterável. não envelhece. não se perde  tenho a certeza de que os meus amigos continuam jovens no seu carácter – um dia chegará o meu momento para resgatar todos os meus amigos silenciosos – escreveremos então [todos] um novo tratado de amizade




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