pintura - fabriano rocha
4.
eu e a estante dos livros à esquerda
à minha
esquerda uma estante com dezenas de livros que ainda não li – sempre quis
acreditar que a minha velhice seria feita de paz. silêncio. memória. afetos e leitura pacata graças ao meu
pé-de-meia de livros – livro a livro desocuparia a estante da paixão. do conhecimento. da gratidão e o espasmo final consagrado a um dever consumado –
finalmente o corpo mirrado de todas as sensações – no quarto ao lado. no vazio da mesinha cabeceira já pouco
resta de mim. um perfume dior despojado
de fragrâncias. restos de um lápis
de grafite com os dentes cravados na sua extremidade. uns óculos com dioptrias ultrapassadas. um creme de corpo sephora de pouco mais de quatro euros. uma aliança preservada por um amor
que dói sem saber onde dói e um envelope lacrado e escrito com os seguintes
dizeres: para o dia seguinte – ao
centro da mesinha. em diâmetro exato. uma lâmpada protegida por um abajur sombrio
em completa harmonia com os deuses da escrita faz a guarda de honra ao livro
que encerrará em si o meu último sopro de vida – ali estou eu guardado numa
página interrompida. atracado a um
eufemismo idiota que nos tenta impingir que os livros são eternos e perduram
para além da morte – o livro só é eterno enquanto o seu leitor viver – na
página interrompida eu morri – para a eternidade apenas um símbolo de que um
dia existiu vida no interior daquelas resmas impressas: um marcador de livro a dizer “keep calm” – claro que estou calmo. estou morto e todos os mortos são
calmos por mais agitação que tenha tido a sua vida – o único que poderá estar
nervoso. se estiver vivo. é o autor do livro que. sem o seu leitor. acabará
também por desaparecer – nem todos os autores se tornam imortais. mas todos os leitores são mortais –
só o livro insiste em negar uma morte decretada oficialmente pelo silêncio no
seu interior – os dedos não mais acariciarão o papel – hoje morremos todos. eu. o autor e o seu leitor – nunca vivi sem livros. a minha primeira recordação com os
livros chega-me dos almanaques da disney – aos dez anos apaixonei-me pelos
cinco de enid mary blyton – os cinco na torre do farol foi a minha primeira
leitura e aquela que me amarrou aos livros para sempre – aos doze anos fiz-me
homem com os clássicos da literatura portuguesa: júlio dinis. eça de
queiroz e camilo castelo branco são os meus favoritos – mas é com os romances
do júlio dinis que descubro a bondade.
a dignidade. a honra. a ética. a esperança e o verdadeiro amor – morgadinha dos canaviais. uma família inglesa e as pupilas do
senhor reitor marcaram-me para a vida –
júlio dinis moldou o meu crescimento e tornou-se no meu guia literário – o
romantismo “ é a arte do sonho e fantasia” – eu cresci num sonho e perdi-me em
fantasias – aos dezasseis acrescentei a outros livros os amigos que ainda hoje
guardo no coração – o bando da praça do comércio – éramos muitos. todos bonitos. todos diferentes e de todos tenho saudades – em especial do joca. luís vieira e mais recentemente o
sérvio. acredito que partiram para
um outro mundo mais perfeito e estão neste momento os três felizes – sempre
amei os meus amigos mesmo quando a vida nos tramou com o crescimento – crescemos
todos tanto e tanto ficou por dizer – nunca deveríamos ter ficado adultos –
éramos muito mais divertidos a jogar à bola e à carica – infelizmente não é assim a vida e para morrer em paz é
obrigatório crescer – todos crescemos – os meus amigos cresceram mais que as
montanhas. ficaram enormes. gigantes bons. alguns com cabelos brancos.
mais curvados. com o céu pelas
costas. a fazer peso. com as nuvens por baixo dos joelhos e
os braços abertos como se pudessem voar a qualquer momento – sempre soube que
os meus amigos um dia iriam voar. os
anjos voam. os duendes também voam e as gaivotas também – os meus amigos
são seres sensíveis. delicados. frágeis como o cristal de murano. rodeados de água e marés e histórias
que fazem encantar a memória – tenho saudades dos meus amigos – tudo que me
resta são recordações e é nestas que resisto à inglória velhice – ninguém quer
magoar ou perder o que ama – sei que na vida o que gostamos de verdade traz
medo e insegurança – tenho medo de os perder na saudade – os amigos são deuses
que vivem na terra – honro este medo bom – mesmo com medo hoje apetece-me falar
de dois amigos muito especiais – confesso-vos que estou aterrorizado. sinto-me gelado por dentro. uma parte de mim a cair para as palavras
e a outra a serrar o que me resta das mãos – tenho medo – tenho medo que um dia
não gostem de ver os seus nomes ligados a uma escrita meia tonta – bem sei que
a minha escrita é também uma escrita de afetos. amiga. com paixão. com saudade. com um abraço que quase sufoca de sentimento afetivo – mas confesso
que estou com receio – que me perdoem se um dia não gostarem desta minha
partilha. estarei pronto para
receber um puxão de orelhas. estarei
pronto para pagar a minha ousadia carinhosa – mas não resisto. tenho que vos falar deles. tenho que falar com eles. tenho que os trazer para o meu pé. olhá-los novamente. de mais perto. segredar-lhe como tudo foi especial. como é bom saber que existiram. existiram na esperança.
na camaradagem. na fraternidade. na viagem e no silêncio do mundo –
sempre os guardei dentro de mim – hoje quero-os comigo neste bocadinho de
palavras que são só minhas. quero
que me acompanhem como se fosse mais uma das nossas deambulações imaturas. quero-os outra vez inconscientes. malandros. gaiatos. quero-os
bonitos como nunca – mas também quero trazê-los para o meu universo crescido e
apresentá-los aos meus leitores como os melhores dos melhores. mostrá-los ao “desconhecido espaço global
de redes de computadores”. com honra. com estima. com porfia. com admiração
e com gratidão – vou trazer até vós dois
amigos muito especiais. amigos do peito
que marcaram a minha vida de forma muito particular: *o tiago
e o zé antunes – sem eles envelhecer seria muito mais difícil – a terra existe
para que os deuses possam descansar – zé e tiago. espero que um dia encontrem aqui o descanso merecido
*[um
dia escreverei sobre um terceiro amigo também muito especial – encerrarei então
em definitivo o meu trio de companheiros de uma vida]
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