pintura google
3.
eu e as fotos à direita
sento-me em mim. a hora é do
corvo profunda. desmantelo os olhos do
presente e começo a autenticar os quadros numa parede à minha direita – as
fotos confirmam que existo – afinal não sou um produto de uma qualquer máquina
do tempo – sei que existo aqui e neste momento porque estamos todos nas fotos –
os que amo não se cansam de me olhar – mas para que não haja dúvidas com as
fotos o melhor será citar decartes: “penso, logo existo” – e ali estou eu em
mais uma velharia fotográfica: cara sisuda. cabelo escuro-jovem. calça bege.
blusão de bombazine castanho. mãos nos bolsos e uns óculos enormes contra o sol
do mundo – os olhos são a minha vulnerabilidade – os índios americanos não
gostavam de tirar fotos porque acreditavam que estas lhes roubam a alma – não sou
índio mas acredito nessa crença – não sei se foram as fotos mas alguém me
roubou a alma. alguém me deixou vazio por dentro – apostava o pescoço de que
perdi a alma pelos olhos. não há dia nenhum que não me doíam – enquanto tive
alma nunca deixei que o futuro me assustasse – não tinha medo de nada. o corpo
estava sempre aprumado. perpendicular à ambição. num ar sério. assim como se
fosse um mistério. os olhos encovados. escuros. as mãos escondidas para ninguém
saber o que pensavam e as pernas em posição de correr – sempre com um grande
aprumo à avidez. não era vaidade. era segurança nas mãos – olho. olho com o que
me resta da vontade de olhar. olho com saudade. olho com nostalgia. olho com
raiva. olho com uma vontade de matar o futuro estatelado numa parede pastel –
as primeiras fotos são de um cinzento ingénuo. aberto à coloração. imaginativo.
num confiante forte-opaco. a contrastar com a moldura faia-clara – ao lado.
numa moldura mais escura. sobressai o cinzento dúvida. com a tonalidade a puxar
para a solidão. para o retiro. mergulhado em pessimismo e numa vontade única de
fazer apenas o que estava certo – há cinzentos que nos enganam para a vida toda
– ainda não tinha percebido que para sobreviver é necessário viver com o erro.
ultrapassá-lo. moldá-lo para a invisibilidade. ajustá-lo às necessidades das
maiorias. programá-lo para o sorriso enganoso e fazer de conta de que aceitamos
aquela velha máxima: errar é humano – nunca foi bom a fazer de conta – o erro
para mim nunca foi humano. com o erro uma parte da minha confiança morria de
amargura – nunca fui capaz de recuperar destes erros – nunca aceitei o erro e
isso trouxe-me um erro ainda maior: a busca de uma perfeição imaginária – nas
últimas fotos encontrei-me num cinza triste. corroído. pouco afetivo. zangado e
onde o prumo dá indícios de que está preso por um fio – ninguém aguenta tanto
cinza-triste numa parede bege-pastel – *“a felicidade não é um ideal da razão
mas sim da imaginação”
*imannuel kant
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