.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

21/11/2017

eu e:




pintura - maluda





      1.    a escrivaninha;
2.    a janela da frente;
3.    as fotos à direita;
4.    a estante dos livros à esquerda;
5.    o tiaguinho;
6.    o zé do gerês;
7.     a oferenda aos meus amigos;
8.    as mulheres do meu cunhado;
9.    a minha circunferência;
10.  a vida.




1.    eu e a escrivaninha
sei que estou a desaparecer – um dia destes serei invisível. ausente. sem voz e sem uma única palavra que identifique o meu corpo. estarei retirado dos afetos. dos sorrisos. dos sonhos e das desilusões. serei sombra. memória e silêncio misericordioso – mas neste momento de assentimento. enquanto continuo a completar a existência da vida. observo em conciliação o que me resta da morada criada: desarrumo o que sempre esteve desarrumado. procuro o que nunca encontrei e perco-me a ler papelinhos quadrados sem nenhum tipo de relevância temporal – em tempo real subsiste o espectro dos papelinhos quadrados gizados a pó no tampo granítico da escrivaninha – o testemunho de que pelo menos num dia tudo tem a sua importância por mais insignificante que seja o seu conteúdo – abandono e esquecimento é o que me sobra desta desorganização validada pelo meu DNA – é daqui que vos escrevo num computador inimigo do cheiro a papel – é daqui que com as palavras esqueço o mundo das luzes – é daqui que me entrego em vocábulos de alforria – é daqui que me absolvo de pecados que ninguém compreende – é daqui que como anão me faço gigante quando opto por nunca usar maiúsculas – é daqui que emancipo as palavras preparando-as para o mundo da crítica – é daqui que me estarreço de medo pela vossa leitura – é daqui que me entrego num abraço metafórico maior do que “as dez mil coisas*” – eu não sei se sou mais do que dez mil coisas. sei que sou uma coisa que se magoa e chora e tem cada vez mais medo de um dia não saber o que fazer com o que escreve

*metáfora chinesa que chamam ao mundo “as dez mil coisas” – in: este ofício de poeta - jorge luís borges


2.    eu e a janela em frente

em frente. uma janela com um punhado de quase nada permite-me agarrar uma nesga de um mundo onde não existo por opção – não nos podemos impingir ao mundo. a multidiversidade negativa também contribui para a evolução da espécie – entre a persiana e a meditação um pedaço de céu deserto de tudo que me tentaram ensinar à força – o céu já não é destino final para quem sempre tentou fazer o mais certo – o céu é agora apenas o teto do que penso – mas está tudo bem. não há ressentimento. estão todos indultados. o culpado sou eu. nunca deveria ter tido a ousadia de querer questionar o que o mundo certifica de uma forma instintiva – a janela é agora a minha única oferta para os que ainda se sentem tentados em me reencontrar – quando não estou na janela estou a escrever para vocês – vocês são a minha única esperança para o que me resta do mundo faça sentido – todos os meus sonhos são maiores do que eu. carrego-os da mesma forma como os carregou fernando pessoa – também *“tenho em mim todos os sonhos do mundo” – saibam eles. todos os dias. que me faço existir mesmo que em frente à minha janela não exista nenhuma tabacaria – em boa verdade vos digo: a minha janela dá para nada. e não sei como vos descrever esse nada pois para isso teria que saber o que vale a palavra de um homem a uma janela que não dá para nada – não me tenho em boa conta. estou desiludido. triste e sem vontade de sonhar mesmo sabendo que todos os sonhos são feitos da vida que sonhei – nenhum homem sonha o que desconhece – escrevo. escrevo como se a janela estivesse prenha de uma tabacaria – não está. tudo que tenho entre mim e a janela é o que os olhos veem e o que veem é nada – sem tabacaria morre também o sonho – a morte será para sempre um sonho inacabado – perdoem-me. sei que perdi todos os sonhos – nenhum homem pode viver sem sonhos – estou morto dentro de um sonho que não vejo morrer – não quero saber o que há para lá dos sonhos porque tudo que sonho está a morrer de tristeza. está doente de um mal que não é mal nenhum é a vida a acontecer no seu melhor e pior – da minha janela não vejo nenhuma tabacaria. nem gaivotas. nem gente como eu. nem sonhos a chegar ou a partir. da minha janela vejo-me a olhar o que não há porque dentro de mim não há nada para além do sonho de um dia escrever qualquer coisa que não seja nada – a todos os outros sonhos peço que me esqueçam. tornaram-se em nada e não há nada que possa engrandecer um corpo que desistiu de sonhar

*fernando pessoa



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