pintura - maluda
1.
a escrivaninha;
2.
a janela da frente;
3.
as fotos à direita;
4.
a estante dos livros à esquerda;
5.
o tiaguinho;
6.
o zé do gerês;
7. a oferenda aos meus amigos;
8.
as mulheres do meu cunhado;
9.
a minha circunferência;
10. a vida.
1.
eu e a escrivaninha
sei que
estou a desaparecer – um dia destes serei invisível. ausente. sem voz e sem
uma única palavra que identifique o meu corpo. estarei retirado dos afetos.
dos sorrisos. dos sonhos e das
desilusões. serei sombra. memória e silêncio misericordioso – mas
neste momento de assentimento. enquanto
continuo a completar a existência da vida.
observo em conciliação o que me resta da morada criada: desarrumo o que sempre esteve desarrumado. procuro o que nunca encontrei e perco-me a ler papelinhos quadrados
sem nenhum tipo de relevância temporal – em tempo real subsiste o espectro dos papelinhos
quadrados gizados a pó no tampo granítico da escrivaninha – o testemunho de que
pelo menos num dia tudo tem a sua importância por mais insignificante que seja
o seu conteúdo – abandono e esquecimento é o que me sobra desta desorganização validada
pelo meu DNA – é daqui que vos escrevo num computador inimigo do cheiro a papel
– é daqui que com as palavras esqueço o mundo das luzes – é daqui que me entrego
em vocábulos de alforria – é daqui que me absolvo de pecados que ninguém
compreende – é daqui que como anão me faço gigante quando opto por nunca usar
maiúsculas – é daqui que emancipo as palavras preparando-as para o mundo da
crítica – é daqui que me estarreço de medo pela vossa leitura – é daqui que me
entrego num abraço metafórico maior do que “as dez mil coisas*” – eu não sei se
sou mais do que dez mil coisas. sei que sou uma coisa que se magoa e chora e
tem cada vez mais medo de um dia não saber o que fazer com o que escreve
*metáfora chinesa que chamam
ao mundo “as dez mil coisas” – in: este ofício de poeta - jorge luís borges
2.
eu e a janela em frente
em
frente. uma janela com um punhado de
quase nada permite-me agarrar uma nesga de um mundo onde não existo por opção –
não nos podemos impingir ao mundo. a
multidiversidade negativa também contribui para a evolução da espécie – entre a
persiana e a meditação um pedaço de céu deserto de tudo que me tentaram ensinar
à força – o céu já não é destino final para quem sempre tentou fazer o mais certo – o céu é agora apenas o teto do que
penso – mas está tudo bem. não há
ressentimento. estão todos indultados. o culpado sou eu. nunca deveria ter tido a ousadia de querer questionar o que o
mundo certifica de uma forma instintiva –
a janela é agora a minha única oferta para os que ainda se sentem tentados em
me reencontrar – quando não estou na janela estou a escrever para vocês – vocês
são a minha única esperança para o que me resta do mundo faça sentido – todos
os meus sonhos são maiores do que eu. carrego-os da mesma forma como os
carregou fernando pessoa – também *“tenho
em mim todos os sonhos do mundo” – saibam eles. todos os dias. que me faço existir mesmo que em
frente à minha janela não exista nenhuma tabacaria – em boa verdade vos digo: a minha janela dá para nada. e não sei como vos descrever esse
nada pois para isso teria que saber o que vale a palavra de um homem a uma janela
que não dá para nada – não me tenho em boa conta. estou desiludido. triste e
sem vontade de sonhar mesmo sabendo que todos os sonhos são feitos da vida que
sonhei – nenhum homem sonha o que desconhece – escrevo. escrevo como se a janela estivesse prenha de uma tabacaria – não
está. tudo que tenho entre mim e a janela é o que os olhos veem e o que veem é
nada – sem tabacaria morre também o sonho – a morte será para sempre um sonho inacabado
– perdoem-me. sei que perdi todos os sonhos – nenhum homem pode viver sem
sonhos – estou morto dentro de um sonho que não vejo morrer – não quero saber o
que há para lá dos sonhos porque tudo que sonho está a morrer de tristeza. está
doente de um mal que não é mal nenhum é a vida a acontecer no seu melhor e pior
– da minha janela não vejo nenhuma tabacaria. nem gaivotas. nem gente como eu.
nem sonhos a chegar ou a partir. da minha janela vejo-me a olhar o que não há
porque dentro de mim não há nada para além do sonho de um dia escrever qualquer
coisa que não seja nada – a todos os outros sonhos peço que me esqueçam. tornaram-se
em nada e não há nada que possa engrandecer um corpo que desistiu de sonhar
*fernando
pessoa
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