toca
hauser. toca sem parar e sem me
questionar – desperto-me. abandono o instrumental da música clássica e
recupero o mundo – estremunhado. aceito contrariado o meu regresso às
coisas com espírito: há vida no céu. há um avião a voar nos meus
ouvidos – o barulho dos aviões. às vezes. confunde-se
com a trovoada e fico sem saber se é jesus que está a ralhar comigo ou é apenas
um avião perdido no céu – paro. escuto. acerto o ouvido
com a janela. aparto o mundo que vejo para os lados e capturo definitivamente
o som do avião. mas não a sua atenção – estou decididamente acordado
para o mundo real. os seus decibéis resgataram-me ao mundo das
possibilidades – gosto de sonhar. quando sonho acredito em coisas que
acordado seriam impossíveis de acreditar – sempre que sonho sei que me torno
numa possibilidade – tenho até uma leve intuição de que a todo o momento pode
aterrar no meu escritório um avião – o avião voa mesmo. e não se riam:
o avião voa no ar – gosto de aviões porque estão mais perto do céu do que
eu – eu só vejo o céu à noite quando as estrelas o iluminam – será que
há um aeroporto para lá das nuvens? será que os aviões andam no ar para levar os
crentes para mais perto de deus? – quem sabe. um dia. um desses médiuns
famosos que agora passam na tv. para aumentar o seu share. faz um
acordo com deus para aparecer a acenar em cima de uma nuvem – não sei para onde
vai este avião. ou mesmo se vai para algum lado. ou se anda às
voltas para me irritar. a fazer círculos de barulho. a enrolar o
som na minha vida sonhadora. a tentar questionar-me porque não olho para
o céu. para as coisas que voam – o avião faz barulho. voa. voa
como uma coisa que sabe voar. talvez pássaro. ou alma acabada de
falecer. ou papelinho largado ao vento. ou disco voador.
ou palavra vociferada por boca magoada – há coisas que foram feitas para
voar – eu não sei voar. nem ouso pensar em voar. quer dizer.
às vezes penso. mas o espaço no meu escritório é tão reduzido que na
maior parte das vezes metade do que penso fica fora da janela e é quando dou
conta que está tudo estatelado no meio da rua – por isso é que gosto de ser
comedido nos pensamentos. não porque não queira pensar em altos voos.
não. só não quero vê-los ignorados e espezinhados – já não tenho
estômago para mais desgostos – confesso que estou alterado com o avião. aborreceu-me.
roubou-me um daqueles sonhos raros e que só aparecem de tempos em tempos – e agora.
que acordei para o mundo das impossibilidades. já não sou capaz de o
recuperar – quando perdemos um sonho é para sempre. mistura-se com a
realidade e desaparece no meio da multidão – por isso é que me irrito quando um
avião me desperta com barulho que não vejo. ainda se fosse um
automóvel de escape livre. ou uma bulha de vizinhos. era fácil.
ia à janela e sempre lhes podia disparar uns quantos impropérios. agora
um avião. lá nos confins do céu. por muito que berre ninguém me
vai dar atenção – quando me altero fico confuso. perco-me de mim.
irrito-me e vou às nuvens sem tirar os pés do chão – não gosto de pensar
em voar. fico com medo do que o mundo pensa do que penso – prefiro a
minha solidão em terra. quer dizer. eu nunca estou só. tenho
o meu cão. o max – o max é um cão especial. sempre que trocamos
olhares fico com a sensação de que posso voar naqueles olhos – mas não posso.
nem eu. nem o max – não fomos feitos para voar senão tínhamos
nascido com asas e não nascemos – aceitamos a nossa vocação terrestre com
resignação e dignidade – creio que o max até aceitou primeiro do que eu.
rapidamente o senti conformado com a vida que lhe tocou – para lá dos anjos nos
livros da catequese nunca vi ninguém com asas. mas conheço muita gente
que voa sem asas – não me peçam para explicar como voam que não sei – eu sempre
que tentei voar estatelei-me ao cumprido – não tenho jeito para as alturas –
ainda bem que a minha mortalidade não tem lugar marcado no céu. mas sei
que um dia voarei em pó – e aqui estou eu com o barulho do avião. que
tal como os comboios no seu trabalhar nos diz: pouca terra. pouca
terra. o avião. porque anda no ar. diz-nos: porque
não voas. porque não voas – e a resposta é fácil: não voo porque
não tenho asas e mesmo que tivesse estou convencido que não voaria. seria
como a avestruz que apesar de ter asas não tira os pés do chão – para vos falar
verdade até creio que tenho um pouco do DNA de avestruz. não por não
voar. mas por meter a cabeça num buraco e achar que estou escondido do
mundo – o buraco é a minha casa que me guarda de todas as dores. e é
aqui que me encontro comigo. estendo as mãos e olho para o meu céu: um
candeeiro com quatro lâmpadas de casquilho fino e um teclado iluminado com
letras aos saltos. como passarinhos no ninho a ensaiar o seu primeiro
voo. e todos os sonhos de uma vida na ponta dos dedos – sinto que
o max já está irritado com o barulho do avião. rosna. mostra os
dentes e olha para mim como se estivesse a perguntar: não fazemos nada? para
o acalmar rosno e mostro também os dentes – somos unha com carne e temos o
mesmo lema dos mosqueteiros: um por todos. todos por um – resolvi
dizer-lhe que um dia também iremos voar. compro dois bilhetes na
TAP e voamos para faro. ida e volta. vamos de manhã e vimos à
noite. sempre tive curiosidade de ver as estrelas de perto – as estrelas
existem só para nos obrigarem a olhar para o céu – hoje não me apetece olhar
para o céu. estou sentado na minha cadeira e ainda não comprei os
bilhetes – tudo o que sou espelhado num aro de madeira sucupira clara.
contorna a janela numa esquadria triste e ausente de liberdade – sem liberdade
ninguém é capaz de sonhar ou voar – e o meu mundo a fugir por uma janela preenchida
de impossibilidades. protege-se com uma persiana feita de buracos
organizados. xis em xis centímetros uma entrada de luz estilizada – gosto
de persianas furados com arte. com design. com criatividade e ao
mesmo tempo. como se soubessem que o excesso de luz pode cegar.
são também protetoras. controlam o caudal de luminosidade. deixam
entrar apenas o necessário para alimentar a vida sem que se corra o risco de
cegar – por isso é que gosto de persianas. se estamos deprimidos
fechamo-la e temporariamente podemos morrer para o mundo numa solidão escura.
e sem hora marcada para o regresso. e quando entendemos ressuscitar
da morte silenciosa. abrimos a persiana aos poucos. num vagar sem
presa. e a luz a tomar-nos a conta gotas. numa renovada claridade.
purificada de todos os males do mundo. prometendo proteger-nos para
sempre do inferno da vida – entrego-me à luz. primeiro um braço.
depois outro. de seguida o tronco. as pernas e por último os
olhos. quero ver tudo. que ver o que a luz ilumina. quero
ver-me na renovada luz e deixo-me subir ao céu como se fosse um avião. e
rio como se estivesse a ser carregado por anjos. e rezo como se fosse
crente. e voo como se fosse pássaro. e abraço-me como se os
braços estivessem carentes de um corpo. e vivo como se quisesse viver.
e quando a noite chegar. sento-me numa estrela que desenhei num papel
triste e fico a olhar para o que sobrou de mim. para o que me trouxe a
esta paz. a cada pessoa que conheci. a cada flor que colhi e a cada
gota de chuva que me molhou e adormeço como se estivesse a sonhar com gaivotas que
voam no céu – tenho que deixar de ouvir o avião. se tivesse um
canhão atirava-o abaixo e depois. aguentava com o que o mundo pensasse
de mim – estou farto de o ouvir – revolvo-me na cadeira. irrito-me – para
que estou eu aqui sentado se a minha vocação é voar – e a janela a pedir-me que
voe como um avião – mas não. não voo e também não vivo num quadro
de renoir a celebrar a beleza do mundo das flores. das mulheres bonitas.
dos tons melódicos e das crianças de mãos dadas aos seus pais e eu no pincel do
mestre a pedir-lhe para me pintar. para me misturar com as flores.
com as crianças que correm como se voassem e o pincel do mestre a voar na tela como
se fosse um avião no céu e a mistura das cores quentes. as crianças
quentes. as flores quentes e as cores mescladas com arte a darem agosto
quente. saudade quente e o poeta das cores a fazer voar o seu próprio
tempo como se fosse um avião que voa sem barulho num céu que se pode apanhar
com as mãos – meu deus. como gosto de agosto e de aviões – porque não
pinto eu? por agosto e pelo renoir era capaz de voar mesmo sem asas – mas
não. estou preso a uma janela em sicupira e tudo o que vejo são pedras no
chão a revolver o céu. a guardar as sombras dos aviões que não vejo – mesmo
assim gosto da minha janela. gosto da pouca esperança que guarda nos
seus caixilhos. um dia vou ver os aviões – um dia a minha janela de
sicupira vai voar como os aviões – sei – há noites em que o meu desejo é apanhar uma estrela e trazê-la para o pé de
mim. mas já percebi que não é possível. o problema nem é a
distância porque às vezes do longe se faz perto. o problema é que as
estrelas só brilham no céu – para que quero eu uma estrela que não brilhe? tal
como escreveu nietzsche quanto mais nos elevamos. menores parecemos
aos olhos daqueles que não sabem voar – a noite chegou. o
pôr-do-sol morreu de vez. e tudo em que tocou morreu também. só o
barulho do avião resiste à morte. sei que não morreu porque se continua
a ouvir – os aviões confundem-se com as estrelas e estas confundem-se com olhos
iluminados de tristeza – quando um homem está mal até as estrelas cintilam dor
– só os aviões continuam no ar – as minhas coisas não voam como os pássaros.
ou os aviões. ou mesmo as desilusões. ou palermices. ou
anormalidades que a ciência ainda não arrolou – estou farto. é hora de
voar como se pode – com coragem atiro o corpo aos pés e voo. voo de mim até
ao chão e na ligeireza da queda a lembrança do alfaiate voador que se atirou da
torre eiffel com a infinitude cega de que não importa o tempo de voo. importa
mesmo é voar – eu voo da cadeira para o chão e do chão para a janela arrasto-me
como se estivesse a voar – se um dia passarem pela minha rua e virem uns olhos pendurados numa janela... sou eu a voar
hoje celebro o aniversário natalício de meu
pai. antónio sampaio lopes. faria hoje noventa e seis anos e
confesso-vos que tenho imensas saudades de lhe falar. de o beijar e de o
abraçar – se fosse crente diria que um dia destes nos veríamos no paraíso.
mas não sou. perdi a minha fé no dia em que o vi partir – mas não o
perdi da memória
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