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8. eu e as
mulheres do meu cunhado
atrás de mim. em guarda.
dois A4 emoldurados numa geometria escangalhada – o lápis do meu cunhado
amantizou-me com dois protótipos de mulheres surreais. estranhas nas formas.
indefinidas na beleza – consigo apreender que uma está nua e outra vestida. uma
está de costas numa janela escancarada enquanto a outra existe rodeada de
livros – em simetria apenas um olho negro e o cabelo ondulado – pouca coisa
para duas mulheres que ocupam totalmente a minha parede norte – só ainda não
compreendi porque raio é que o meu cunhado lhes pintou um olho de negro.
provavelmente para me alertar que o destino dos meus olhos pode ficar igual se
não tiver cuidado com a escrita – pensando melhor. talvez seja uma mensagem
codificada: desde do dia que levaste a minha irmã que tenho dois murros para te
dar – ao certo mesmo confesso que não sei. sei que são coisas do meu cunhado
que nem sempre bate bem do miolinho – os artistas são assim. tem
devaneios que ninguém percebe. excentricidades – o meu cunhado é um grande
artista com um bonito coração. sei que as suas mãos nunca seriam capazes de
magoar o que quer que fosse – mas atenção. não deixa de ser um cunhado
desviante nos equilíbrios artísticos. principalmente na comunicação das formas
e na sua estética – não é fácil tocar bem vários instrumentos: arquitetura.
belas-artes. desenho. escultura. tudo isto num longo caminho de confrontos
diários com a estética-beleza-realidade – ultimamente resolveu acrescentar às
mãos a palavra escrita e confesso que já me surpreendeu – só tenho pena de que
sinta a acentuação como uma extravagância das letras – mas esqueçamos os
acentos. coisa menor em comparação com a sua maior imperfeição. maior do que
uma volta ao mundo em cento e oitenta dias. a teimosia e a surdez – não escuta
nada e teima como ninguém – às vezes a herança de família é coisa ruim – sei do
que falo. não é fácil mas com o tempo habituámo-nos – mas uma mão não lava a
outra e em boa verdade vos digo que se fosse um artista ajuizado nunca me
entregaria à guarda as duas gajas caóticas – confesso que não me entendi com a
mensagem estética destes desenhos – a estética é o estudo que determina o
caráter da beleza. a harmonia das formas e o seu colorido. nestas gajas
estranhas não há. só o negro sobressai no branco do papel – as mulheres do meu
cunhado estão enclausuradas numa esquadria isóscele. desequilibrada nas formas
por dentro e por fora – são protegidas a vidro anti reflexo. duro. quase
inquebrável. como se fossem importantes. e eu. simples mortal. sem nenhuma arte
que me engrandeça. sempre que as olho desconchavo-me. percorro-lhes as feições
e não encontro ponta de harmonia. confusão é tudo que enfrento – confesso que
fico sem saber se esta nasce nos quadros ou se está instalada no escritório –
neste escritório quase tudo é confusão e transtorno. quase tudo é incómodo.
quase tudo é sinónimo de desgraça. quase tudo já foi resgatado ao mundo do além
– tudo que por aqui sobrevive está na estante com livros à minha esquerda. pela
frente continua a janela para o desconhecido e pela direita as fotos que em
desespero me amarram a uma esperança que. mais não é. um fio de luz quase
imaginário – se o meu cunhado tivesse tido o bom senso de desenhar a sua irmã
tudo seria diferente. o escritório instalado num quadrado-sombrio tornar-se-ia
num retângulo-luz colossal. o desarrumado passaria a arte contemporânea e a
desorganização seria sistematização. a janela absorveria toda a arte do mundo
para o seu interior e o negro cairia nos braços do branco – para desenhar a sua
irmã o meu cunhado não necessitaria de arte. bastava-lhe papel vegetal. um
lápis de crayon fino. um par de olhos delicados. uma mão ágil e um pulso firme
para decalcar o belo para um papel virgem de tudo – não tinha que inventar a
cor dos olhos. bastava-lhe pintar o céu no seu interior. ou a cor do amor.
mesmo daquele que é feito com o corpo. com gemidos e no fim aquele abraço que
magoa porque sabemos que não é possível dormir nele para sempre – a sua irmã é
bela. é harmonia. é chama para sempre. como para sempre são os pássaros que
voam nos nossos olhos quando descobrimos o amor de uma vida – tudo que vive no
céu é eterno como eterno fico eu quando adormeço no seu olhar – mas o meu
escritório sempre esteve aberto ao mundo e o mundo do meu cunhado ocupou-me uma
parede com duas mulheres sem nome. sem passado e sem futuro para além de
continuarem a encher uma das paredes da minha vida – que posso eu fazer com
duas mulheres que não me largam as costas? se estivessem de frente era bem
pior. com aquele cabelo ondulado. parado. com curvas e contracurvas. em
conflito com as sombras. as sombras da luz que me alumia e as sombras do
passado que não me largam – estas mulheres. desenhadas pelo meu cunhado numa
noite fodida. nunca tiveram uma única palavra que se ouvisse. são mudas para
mim e para o mundo. não tem paixão. nem calor. nem ardor. nem tesão. nem nunca
se enrodilharam para um único orgasmo colossal – se o meu cunhado estivesse
bem. não tivesse tido um congestionamento de arte nessa noite fodida. teria
substituído aqueles cabelos tresloucados pelo cabelo da sua irmã: dourado-ouro.
comprido. estendido de luz. de bondade. de tolerância. de paz. de
companheirismo. de um beijo que arrasta os lábios para mel e ali ficamos a
ver-nos olhos nos olhos. e as horas passam a anos que não sabemos nem queremos
contar – ao lado da irmã do meu cunhado eu sou um príncipe encantado e tudo
porque me entreguei a um beijo sem tempo – um beijo talhado para meu
destino final – gosto de a amar. gosto de a ter dentro de mim – se não tivesse
tanto dela dentro de mim não saberia que as estrelas só brilham por amor e que
as mãos só abraçam o que lhes cabe dentro da sua palma – se eu não te tivesse
tanto dela dentro de mim nunca saberia que se pode morrer de uma saudade que
ainda não o é mas que vai ser por um destes dias – eu amo uma mulher que não me
cabe dentro da palma da mão – também um dia o meu cunhado vai saber que o amor
quando é grande não cabe dentro da palma de uma mão – nunca nenhum artista se
sentiu realizado quando experimentou recriar o amor como obra de arte.
fosse ele música. pintura. escultura ou palavra – o amor é maior de que
qualquer obra seja de arte ou não – a tua irmã é assim. maior do que a palavra.
maior do que a minha palma da mão. maior do que a minha vida – só temos uma
vida. mas uma vida absoluta só permite ter um único grande amor – eu tive o meu
– mas o meu cunhado numa noite fodida inventou a tristeza. coisa só possível
pelos grandes artistas – já não basta a que carrego de nascença e ainda me
trouxe para casa duas mulheres ilegítimas. feias e tristes – que raio de ideia
cunhado. estavas com medo que eu atravancasse o mundo com uma escrita
maluca e as senhoras seriam a distração – enganaste-te. não sou do mundo. sou
da tua irmã – um dia. quando apanhar o meu cunhado de bem com o mundo. vou pedir-lhe
para dar cor aos quadros. colorir as senhoras com um lápis verde-primaveril com
laivos de azul criança – há cores que não nos largam a perna – mas o meu
cunhado é um artista ainda em segredo como em segredo está a arte que lhe vem
dos antepassados – um artista em que o dom provém dos seus antecessores pode
juntar as cores como bem entender. até pode juntar ao azul e verde um pouco de
lilás compaixão que tudo terminará sempre num branco branco. inocente e puro
como as flores que colhe quando amassa o barro com virtude – um artista só
existe enquanto for capaz de sonhar – quero para ele muito sonhos. sorrisos.
quero muitos lápis. um palete de cores deles. barro e papel de todos as
gramagens e aparos mergulhados em tinta aqui e na china. e também na américa e
também em angola que foi onde o teu pai e o meu sogro deu tropa – quero que
essa arte nascida no teu criador cresça agora nas mãos do teu filho para que um
dia ele te possa escrever melhor do que eu – quero que as bocas falem por todo
o mundo do que fazes e do que ainda vais fazer. quero que acredites nos sonhos
com os olhos abertos e que cresçam em bem-aventurança como os pássaros crescem
nos olhos quando estão pintados com a cor do céu – quero que lhes digas por ti
e por mim que as famílias só existem porque nenhuma obra de arte é mais bonita
de que o amor com que a amamos – eu amo a minha e a tua família. a nossa
família. amo também os meus amigos porque sem amigos não somos nada. amo os
animais. as flores e as palavras e só não me amo a mim porque o que me resta de
amor já só chega para preencher os olhos da tua irmã – nada me separará dela.
nem a fome. nem a doença. nem o erro. nem a desilusão. nem o pecado. nem a
vontade de uma maldição que me ata a uma corda que é descanso – e aqui
estou eu preso a uma secretária que me levará com as palavras ao fim – só
o que escrevo é eterno – digo apenas o que posso em cada instante de mim
desenhos assinados em 2000 - 18 anos de companhia
[desejo-te um bom ano]
[desejo-te um bom ano]
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