.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

04/01/2018

eu e:





foto de autor





       8.    eu e as mulheres do meu cunhado 

atrás de mim. em guarda. dois A4 emoldurados numa geometria escangalhada –  o lápis do meu cunhado amantizou-me com dois protótipos de mulheres surreais. estranhas nas formas. indefinidas na beleza – consigo apreender que uma está nua e outra vestida. uma está de costas numa janela escancarada enquanto a outra existe rodeada de livros – em simetria apenas um olho negro e o cabelo ondulado – pouca coisa para duas mulheres que ocupam totalmente a minha parede norte – só ainda não compreendi porque raio é que o meu cunhado lhes pintou um olho de negro. provavelmente para me alertar que o destino dos meus olhos pode ficar igual se não tiver cuidado com a escrita – pensando melhor. talvez seja uma mensagem codificada: desde do dia que levaste a minha irmã que tenho dois murros para te dar – ao certo mesmo confesso que não sei. sei que são coisas do meu cunhado que nem sempre bate bem do miolinho – os artistas são assim.  tem devaneios que ninguém percebe. excentricidades – o meu cunhado é um grande artista com um bonito coração. sei que as suas mãos nunca seriam capazes de magoar o que quer que fosse – mas atenção. não deixa de ser um cunhado desviante nos equilíbrios artísticos. principalmente na comunicação das formas e na sua estética – não é fácil tocar bem vários instrumentos: arquitetura. belas-artes. desenho. escultura. tudo isto num longo caminho de confrontos diários com a estética-beleza-realidade – ultimamente resolveu acrescentar às mãos a palavra escrita e confesso que já me surpreendeu – só tenho pena de que sinta a acentuação como uma extravagância das letras – mas esqueçamos os acentos. coisa menor em comparação com a sua maior imperfeição. maior do que uma volta ao mundo em cento e oitenta dias. a teimosia e a surdez – não escuta nada e teima como ninguém – às vezes a herança de família é coisa ruim – sei do que falo. não é fácil mas com o tempo habituámo-nos – mas uma mão não lava a outra e em boa verdade vos digo que se fosse um artista ajuizado nunca me entregaria à guarda as duas gajas caóticas – confesso que não me entendi com a mensagem estética destes desenhos – a estética é o estudo que determina o caráter da beleza. a harmonia das formas e o seu colorido. nestas gajas estranhas não há. só o negro sobressai no branco do papel – as mulheres do meu cunhado estão enclausuradas numa esquadria isóscele. desequilibrada nas formas por dentro e por fora – são protegidas a vidro anti reflexo. duro. quase inquebrável. como se fossem importantes. e eu. simples mortal. sem nenhuma arte que me engrandeça. sempre que as olho desconchavo-me. percorro-lhes as feições e não encontro ponta de harmonia. confusão é tudo que enfrento – confesso que fico sem saber se esta nasce nos quadros ou se está instalada no escritório – neste escritório quase tudo é confusão e transtorno. quase tudo é incómodo. quase tudo é sinónimo de desgraça. quase tudo já foi resgatado ao mundo do além – tudo que por aqui sobrevive está na estante com livros à minha esquerda. pela frente continua a janela para o desconhecido e pela direita as fotos que em desespero me amarram a uma esperança que. mais não é. um fio de luz quase imaginário – se o meu cunhado tivesse tido o bom senso de desenhar a sua irmã tudo seria diferente. o escritório instalado num quadrado-sombrio tornar-se-ia num retângulo-luz colossal. o desarrumado passaria a arte contemporânea e a desorganização seria sistematização. a janela absorveria toda a arte do mundo para o seu interior e o negro cairia nos braços do branco – para desenhar a sua irmã o meu cunhado não necessitaria de arte. bastava-lhe papel vegetal. um lápis de crayon fino. um par de olhos delicados. uma mão ágil e um pulso firme para decalcar o belo para um papel virgem de tudo – não tinha que inventar a cor dos olhos. bastava-lhe pintar o céu no seu interior. ou a cor do amor. mesmo daquele que é feito com o corpo. com gemidos e no fim aquele abraço que magoa porque sabemos que não é possível dormir nele para sempre – a sua irmã é bela. é harmonia. é chama para sempre. como para sempre são os pássaros que voam nos nossos olhos quando descobrimos o amor de uma vida – tudo que vive no céu é eterno como eterno fico eu quando adormeço no seu olhar – mas o meu escritório sempre esteve aberto ao mundo e o mundo do meu cunhado ocupou-me uma parede com duas mulheres sem nome. sem passado e sem futuro para além de continuarem a encher uma das paredes da minha vida – que posso eu fazer com duas mulheres que não me largam as costas? se estivessem de frente era bem pior. com aquele cabelo ondulado. parado. com curvas e contracurvas. em conflito com as sombras. as sombras da luz que me alumia e as sombras do passado que não me largam – estas mulheres. desenhadas pelo meu cunhado numa noite fodida. nunca tiveram uma única palavra que se ouvisse. são mudas para mim e para o mundo. não tem paixão. nem calor. nem ardor. nem tesão. nem nunca se enrodilharam para um único orgasmo colossal – se o meu cunhado estivesse bem. não tivesse tido um congestionamento de arte nessa noite fodida. teria substituído aqueles cabelos tresloucados pelo cabelo da sua irmã: dourado-ouro. comprido. estendido de luz. de bondade. de tolerância. de paz. de companheirismo. de um beijo que arrasta os lábios para mel e ali ficamos a ver-nos olhos nos olhos. e as horas passam a anos que não sabemos nem queremos contar – ao lado da irmã do meu cunhado eu sou um príncipe encantado e tudo porque me entreguei a um beijo sem tempo – um beijo talhado para meu destino final – gosto de a amar. gosto de a ter dentro de mim – se não tivesse tanto dela dentro de mim não saberia que as estrelas só brilham por amor e que as mãos só abraçam o que lhes cabe dentro da sua palma – se eu não te tivesse tanto dela dentro de mim nunca saberia que se pode morrer de uma saudade que ainda não o é mas que vai ser por um destes dias – eu amo uma mulher que não me cabe dentro da palma da mão – também um dia o meu cunhado vai saber que o amor quando é grande não cabe dentro da palma de uma mão – nunca nenhum artista se sentiu realizado quando experimentou recriar o amor  como obra de arte. fosse ele música. pintura. escultura ou palavra – o amor é maior de que qualquer obra seja de arte ou não – a tua irmã é assim. maior do que a palavra. maior do que a minha palma da mão. maior do que a minha vida – só temos uma vida. mas uma vida absoluta só permite ter um único grande amor – eu tive o meu – mas o meu cunhado numa noite fodida inventou a tristeza. coisa só possível pelos grandes artistas – já não basta a que carrego de nascença e ainda me trouxe para casa duas mulheres ilegítimas. feias e tristes – que raio de ideia cunhado. estavas com medo que eu  atravancasse o mundo com uma escrita maluca e as senhoras seriam a distração – enganaste-te. não sou do mundo. sou da tua irmã – um dia. quando apanhar o meu cunhado de bem com o mundo. vou pedir-lhe para dar cor aos quadros. colorir as senhoras com um lápis verde-primaveril com laivos de azul criança – há cores que não nos largam a perna – mas o meu cunhado é um artista ainda em segredo como em segredo está a arte que lhe vem dos antepassados – um artista em que o dom provém dos seus antecessores pode juntar as cores como bem entender. até pode juntar ao azul e verde um pouco de lilás compaixão que tudo terminará sempre num branco branco. inocente e puro como as flores que colhe quando amassa o barro com virtude – um artista só existe enquanto for capaz de sonhar – quero para ele muito sonhos. sorrisos. quero muitos lápis. um palete de cores deles. barro e papel de todos as gramagens e aparos mergulhados em tinta aqui e na china. e também na américa e também em angola que foi onde o teu pai e o meu sogro deu tropa – quero que essa arte nascida no teu criador cresça agora nas mãos do teu filho para que um dia ele te possa escrever melhor do que eu – quero que as bocas falem por todo o mundo do que fazes e do que ainda vais fazer. quero que acredites nos sonhos com os olhos abertos e que cresçam em bem-aventurança como os pássaros crescem nos olhos quando estão pintados com a cor do céu – quero que lhes digas por ti e por mim que as famílias só existem porque nenhuma obra de arte é mais bonita de que o amor com que a amamos – eu amo a minha e a tua família. a nossa família. amo também os meus amigos porque sem amigos não somos nada. amo os animais. as flores e as palavras e só não me amo a mim porque o que me resta de amor já só chega para preencher os olhos da tua irmã – nada me separará dela. nem a fome. nem a doença. nem o erro. nem a desilusão. nem o pecado. nem a vontade de uma maldição que me ata a uma corda que é  descanso – e aqui estou eu preso a uma secretária que me levará com as palavras ao fim  – só o que escrevo é eterno – digo apenas o que posso em cada instante de mim

desenhos assinados em 2000 - 18 anos de companhia

[desejo-te um bom ano]










Sem comentários:

Enviar um comentário