pintura - gaetano cresseri
9.
eu e a minha circunferência
quase
tudo por dizer e eu perdido entre um quarto quase quadrado e o instante nove – perdido
ou não. será deste quarto quase quadrado
que continuarei a procurar a essência das coisas em mim – busco o
autoconhecimento e procuro em todas as coisas o que elas realmente são – reflito em cuidado. aceito-me com incertezas e afirmo-me como um ser que é como é
porque a verdade não me deixa ser outra coisa para além do que sou – penso. sou único e indivisível mesmo quando
a minha consciência se divide entre a verdade das coisas em mim e a verdades
das coisas fora de mim – sou uma existência metafísica e procuro explicações em
toda a humanidade e. com lucidez. brio e bondade. talvez aprenda a compreender a minha verdade mesmo que não absoluta
– é com esta carência estrutural que me busco incansavelmente porque tudo o que
sou está dentro de mim; procuro-me para
além do que sinto. procuro-me porque
tudo o que sinto não sei se é verdade – e assim digo. como ser racional: sempre
acreditei que para que a verdade fosse realmente verdade bastasse sentir já que
tudo que sinto parte de dentro de mim e eu não posso ser mentira – mas não. não chega. o que sinto nunca chega para que a [minha] verdade se torne suprema. logo. inalterável no tempo e em mim porque todo o tempo é absoluto e
uniforme – juro que não quero ser mais nada do que sinto. tudo que procuro em mim é a verdade em todas as coisas assente no
padrão da minha universalidade – procuro.
procuro a verdade em tudo que sinto porque a quero como a única verdade dentro
de mim e fora de mim mas confesso. temo
não a encontrar. a vida nem sempre
tem método e coerência. se tivesse. não sentiria o que sinto – sei que é na
partilha do que sinto que a minha verdade colide com a verdade do que os outros
sentem. mas não posso calar. não posso acovardar. não posso ignorar o apelo da minha
verdade para ser universal. só com
esta verdade serei eu dentro ou fora de mim – às vezes excluo-me. recuso-me a fazer parte das iniquidades. cego-me. escondo-me em mim com tudo que sinto e desapreço sem tempo para
voltar. mas em momentos mais nobres. atiro-me para o coração do mundo e
faço justiça com as palavras.
magoo-me e sangro a raiva de tudo que não quero sentir – nunca sei se o que
sinto é a verdade eterna ou apenas a verdade no momento – talvez não exista a
verdade absoluta como também não existe meia verdade. talvez tudo não passe de um embuste do criador para me convencer
de que só como ser divino atingirei a plenitude da vida e é obra dele tudo o
que sinto e também o que não quero sentir – seria imaculadamente uma criatura
de deus. um ser vivente criado a partir do pó da terra e do
barro. missionário da fé e
da sua glória. destino
apalavrado no dia em que os meus pais.
por via do batismo. me fizeram seu
servo e vassalo de todos os seus humores – terei então em todas as coisas deus. tudo o que sinto. dentro e fora de mim.
é unicamente o que ele quer que eu sinta e mais nada poderei sentir ou deixar
de sentir sem a sua permissão – estou encrustado com a fé de deus. nascido para a virtude. adverso ao erro. em busca do aperfeiçoamento.
do meu e dos outros. amante de todas
as criações do mundo. da água. da terra. do ar. do fogo e o
inferno é o que sinto sem saber o porquê de deus me entregar em vida às
labaredas de satanás – e sem dar conta.
em busca da minha verdade absoluta. reapareci
como homem de deus. eu que estava
zangado com o criador desde a morte de meu pai – onde estavas nesse dia? nunca
me deste uma palavra. pregaste-me uma
cruz na memória – nunca fiz nada na vida para te desiludir. procurei-te na verdade porque me ensinaste que só na verdade um
homem encontra o caminho da luz – qual luz? qual caminho? a única coisa que me trouxeste
fui a dúvida e a minha desumanização. renunciei-te
para sobreviver – envelheci.
tornei-me mais do meu mundo e menos do teu.
abandonei a imortalidade e estou-me nas tintas para o paraíso. habituei-me ao inferno. iluminei-me na dor. na misericórdia e todo o mal será perdoado
com sete pés de terra – todo o homem é ingénuo e pateta porque todo o homem com
ou sem deus é pateta em algum momento da vida – não sei se sou muito ou pouco pateta sei apenas que neste momento me
sinto enganado. purificaram-me com água
benta estragada. não tinha a bênção de
deus nem o seu caminho. continuo à
procura de uma verdade que não encontro em lado nenhum. nem em deus – raio de caturrice. bem sei que errar é humano mas só os idiotas é que perseveram no
erro. não se pode alterar o que
nasce no corpo por ordem do sagrado – só com a morte saberei realmente com que
verdade vivi a vida. talvez a tenha vivido
em erro. mas ainda não morri. ainda me procuro. ainda procuro a verdade suprema porque já não tenho mais nada
para procurar para além de saber o que realmente sou e porque sou – sei que um
dia a minha verdade será feita apenas do que fui porque o futuro já nada
alterará – nesse momento nenhuma idiotice fará mais sentido. a verdade será aquela que cada um quiser lembrar. eu estarei morto. serei apenas um ser humano frio e parado no destino – enquanto
for lembrado serei sempre uma verdade em vós e em cada um de vós. estarei vivo – com a minha morte morrerá
para sempre a minha verdade. a que
vive dentro de mim – e assim me procuro em desespero. procuro o que está certo.
mais nada do que certo. porque tudo
que está certo nunca poderá ser mentira e um homem certo é um homem de verdade
e essa verdade em si será também verdade nos outros – não há duas verdades
quando há apenas um homem em si e fora de si – só a verdade será capaz de responder
com conhecimento. mas não interessa. sou o que sou quando o que sinto deveria
ser outra coisa qualquer – afinal aonde fica a verdade? sou o que sou pelo o
que sinto. pelo que não sinto ou quando
enfrento o que sou. por sentir que
sou outra coisa – sou afinal o quê? não sei.
palavra de honra que não sei e talvez por isso me procuro em tudo que sinto
fora e dentro de mim e tudo que sinto me faz sentir o que não quero sentir – às
vezes acredito que a verdade suprema só existe no que escrevo pois escrevo
apenas o que sinto. mas também aqui
tenho dúvidas. quando leio de frente
para trás já não sinto nada do que senti e fico sem saber se a verdade está no
que escrevo ou no que leio – a verdade absoluta é uma ilusão e a sua procura o
primeiro sintoma de uma maldição divina ou interestelar. sou apenas mais um instante infinitamente pequeno de dúvidas do
universo – a vida acontece porque ocorre uma explosão. uma dúzia de átomos colidem uns com os outros e o tempo fez o
resto. o homem aparece – sou o desacerto
dessa explosão. os químicos
baralharam-se no rebentamento e aqui estou à procura da verdade na essência das
coisas. as que estão dentro de mim e
também as que estão fora de mim – sou uma verdade dentro de uma outra verdade
do mundo. um tropeção na sua perfeição
– estou arrasado e com medo. sei que
o meu tempo não é infinito porque a morte acontece no corpo e quando um corpo
morre leva consigo toda a verdade – não sei se sou único dentro de mim. talvez sejamos dois ou três ou quem
sabe mais. mas se o corpo os aceita
e se todos procuram o mesmo. então
tudo que sai de mim só pode ser verdade – sou então o quê? e em que percentagem?
e que juiz encontrarei para decidir o que há de bom e de mau. o que fiz bem e o que fiz errado. o que amei e o que não amei. o que sinto de verdade e o que sinto
que não é verdade. porque seja lá o
que for. uma coisa sei. eu sinto – não sei se o que sinto me
faz totalmente verdadeiro porque não sei se é totalmente verdade. o que posso garantir é que sinto o meu corpo no mundo e a cabeça
prisioneira do que sinto – e se não encontrar salomão serão os que não
compreendem o que sinto que me julgarão? por mais sábio que seja o mundo nunca me
saberá julgar pois sou uma milésima parte desse universo que corresponde a um homem
e um homem não vale por todo o mundo mas tem um mundo dentro de si – também não
quero ser julgado pelos que me aceitam pois apenas conhecem de mim o que compreendem
e eu sou muito mais – procuro-me cada vez com menos argumentos para dizer que
não encontro a verdade do que sinto. o
mundo afinal é mais do que uma verdade.
é muito mais do que sinto – talvez o problema seja meu. talvez eu não saiba compreender o mundo para além do que sinto. não importa. já não importa o que o mundo faz comigo. o que importa mesmo é o que faço com o que o mundo me faz – faço muito
pouco. só faço o que sinto e neste
momento já não sinto quase nada – sei que penso e volto a pensar mas quando
saio para fora do meu quarto o mundo que pensei não existe e quando me encontro
descubro que também não existo porque nada do que pensei existe e no quarto quase
quadrado todas as dúvidas sobre a existência acabam mortas na incerteza do que
sinto – sou a minha verdade e a verdade do mundo e nunca poderei ser outra
coisa. e a ela terei que me habituar
porque o meu quarto é uma ilha cercada do mundo onde vivo – sinto que quando
escrevo esqueço o mundo. encho-me de
silêncio. entrego-me ao mistério e
parto desferrado para dentro de mim numa interminável agonia. rasgo-me e aguilhoou-me por não
saber escrever o que sinto – quando escrevo procuro-me unicamente no que sinto
porque a verdade não existe em mais lado nenhum a não ser no que se sente – mato-me
de tempo e persistência – mas quando paro de escrever reapareço e tudo o que
sinto não serve para nada porque o mundo não sente um homem. o homem é que sente o mundo – é janeiro. e sempre que o janeiro existe sou lembrança e todas as coisas deixam
de ser coisas e todas as gaivotas se apagam no castanho triste dos olhos – mas
quando paro de escrever sou outra vez dezembro porque é no dezembro que sinto o
que não sinto em mais mês nenhum – em dezembro aqueles que amo estão-me
pregados às mãos e não sinto mais nada que não seja o sentir do que sentem por
mim – mas aqui. neste quarto feito
de mim. rodeado de paredes que por
serem feitas de silêncio aprenderam a ouvir-me em tudo que sinto e não sei
escrever – neste quarto quase quadrado vivo uma quadratura em circunferência apertada
com tudo o que sinto e me faz ser o que sou:
sou a minha família. sou os meus
amigos. sou os meus leitores e sou todas
as páginas que escrevi – tudo o resto para vos falar o que sinto não sei se é
verdade ou permanece vivo – aquilo que não amei e não escrevi não sei se existe
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