.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/11/2019

eu. os peixes e o cloro











em dezembro de 2010 resolvi trazer para casa um aquário e cinco peixes miscigenados na raça e na cor – instalei a caixa de vidro num local aconchegado e protegido das correntes de ar. forrei o fundo com joguinhas brancas. encalhei uma nau naufragada do tempo do vasco da gama. plantei umas algas verdes fofinhas para que os guelras pudessem jogar ao esconde esconde. encrostei uma ânfora que borbulha bolhinhas de oxigénio e. mais uns quantos bisegres para que o fundo da caixa reproduzisse. dentro das inúmeras limitações. o fundo do oceano – depois de tudo devidamente preparado e ornamentado inundei a caixa de vidro com água da companhia – delicadamente. abri a saca de plástico transparente. que me permitiu transportar os guelras da loja até casa e. um a um. com delicadeza. operei o transbordo para o meu oceano pacífico privado – e ali fiquei a apreciar os meus novos animais de estimação. quer dizer. os meus novos guelras de estimação e. rapidamente percebi. de que os peixes e as crianças têm uma característica em comum. só precisam de liberdade para serem felizes – ali estava eu parado. também imerso em prazer. a degustar o meu novo e excêntrico “affair” hídrico. suplementado com uma convicção firme de que tinha acertado no escolhimento dos novos inquilinos para o meu exótico aquário – os guelras estavam felizes e confiantes no seu novo habitat. estavam enérgicos. corriam como loucos. davam piruetas com curvas e contracurvas. faziam bolhinhas pela boca e as barbatanas não paravam de bater. mais parecia o voo das andorinhas a anunciar a primavera. tal era a velocidade e alegria com que se moviam de um lado para o outro – estávamos todos felizes. eu. os peixes e o max. que ao meu lado. intrigado com a singularidade dos feitios e cores dos novos amigos. não parava de abanar a cauda – estava tudo a correr dentro da normalidade perspetivada pela vendedora. especialista em animais de todas as espécies. quando me apercebi que algo estranho estava a acontecer. os guelras estavam tremulosos e. os olhos esbugalhados não paravam de piscar – esta altercação não estava prevista no manual de boas práticas de manuseamento e bem-estar de peixes ornamentais – entrei em pânico. não sabia nada da anatomia de peixes. em toda a minha vida só com cães tinha partilhado afetos. não fazia a menor ideia de como se tratava um peixe e muito menos avaliar a gravidade dos seus sintomas – será que estavam todos a ter um AVC por intoxicação da água? ou seriam apenas pequenos espasmos nervosos de adaptação ao seu novo lar? o que me desassossega. é que para o bem e para o mal. sou eu o único responsável pelo seu bem-estar – estamos numa época em que não se pode facilitar com os cuidados aos animais. ainda me culpam de maus tratos e quem sabe. acabo em tribunal acusado de negligência – e pior. estou sujeito a que a qualquer momento me toque a campainha e me apareça à porta a CMTV acompanhada pelo PAN [partida das pessoas. dos animais e da natureza]– comecei à procura do que poderia estar a causar aquele pisca pisca e pensei: será que os peixes estão nauseados com o cloro da água da companhia? é bem possível. a água ultimamente não tem andado grande coisa – se fossem humanos. percebíamos com facilidade se o problema recaía sobre a má qualidade da água. reviravam os olhos. esfregavam-nos e logo concluíamos que a maleita passaria com umas gotas oftalmológicas – mas a verdade é que os guelras não tem mãos e as barbatanas são curtas. creio que nem esticadas chegam aos olhos. que chatice. nem uma comichãozinha podem ter – deus lá teve as suas razões para que na sua infinitude sabedoria não lhes desse mãos – mas a verdade. é que se lhes tivesse implantado umas mãozinhas. tinha-me aligeirado a resolução do problema. misturava na água umas gotinhas para a conjuntivite e logo via se o pisca pisca diminuía – vá-se lá entender deus e os peixes – mas o melhor é meter a viola ao saco e calar-me. não vá o todo o poderoso aborrecer-se com este meu palavreado e ainda lhes desarranja os intestinos – já deveria saber há muito que os desígnios de deus são insondáveis e nunca questionáveis – começo a ficar preocupado. sinto que o pisca pisca está mais intenso e também os sinto mais paraditos – pudessem ao menos chorar para eu perceber a gravidade do piscar do olhos – mas como se veria uma lágrima no meio de um oceano? os peixes são uma dor de cabeça – pensando bem. talvez nesta coisa das lágrimas a minha preocupação seja uma tolice. os peixes não choram não por não terem lágrimas. mas porque não tem sentimentos – a verdade é que também conheço muitos humanos assim. sem lágrimas e sem sentimentos e não vivem no meio do oceano – quem sabe se deus quando criou o mundo animal tenha concebido os peixes propositadamente assim. diferentes de todos os outros animais – talvez quisesse um animal que não fosse bem animal. distinto de tudo o que tinha criado até ao momento. distante dos homens. escamado. com guelras para sobreviver escondido na água. frio. sem sorrisos. com mau feitio e indiferente a tudo que existe fora do mundo aquático – e por mais tentativas do homem para influenciar o seu modo de viver. domesticar. ou até mantê-los em cativeiro. a resposta seria sempre um desapego silencioso por tudo o que o rodeia. sem emoções. sem latidos ou abanares da cauda. sem rosnar. sem miar. sem asas e sem sonhos – tudo o que este animal marítimo traz ao mundo dos humanos é um alheamento sincronizado do movimento das barbatanas com o abrir e fechar das guelras. abana o rabo e pisca os olhos para assinalar a marcha pela profundeza dos oceanos – deus substituiu-lhes então as mãos por guelras para que não pudessem abraçar. de seguida. tirou-lhe a voz para que não pudessem dizer: gosto de ti e ainda insatisfeito. trocou os pulmões por guelras para que não pudessem arfar quando se apaixonassem – por fim. meteu-os nos oceanos e mandou-os multiplicarem-se. dizendo-lhes: vocês serão o maior desafio para a humanidade – os homens nunca compreenderão a vossa indiferença. nem tão pouco aceitarão a forma como vos amais – e assim se fez a vida dos peixes desde a criação do mundo até à compra do meu aquário – a vida dos animais com guelras é realmente muito complicada e insípida – foi quando pensei como a criação do homem foi especial. como é bom dizer a alguém gosto de ti. abraçar e sentir o calor da retribuição. o carinho de um abraço. um sorriso. uma palavra ou uma lágrima – deus fez um grande trabalho – enquanto me inebriava com as correrias dos guelras. sentado a meu lado o meu cão seguia atentamente as acrobacias dos seus novos camaradas com espanto. percebi no seu olhar que estava feliz. não sei se por achar que teria ganho mais cinco companheiros. ou apenas porque estava solidário com a minha alegria – a vida só tem sentido quando não desistimos dos afetos. mesmo quando esses afetos são difíceis de alcançar. como com os peixes – encostei a minha cara ao aquário e com um sorriso de quem gosta de fazer novos amigos apresentei-me: sou o sampaio. muito gosto. sou o vosso encarregado de bem-estar. espero que se sintam confortáveis na vossa casa. que também é a minha – fiquei à espera de uma resposta emocional. um olá. uma cambalhota com um mortal à retaguarda. um borrifo de água. mas nada – foi quando fui levemente surpreendido. depois da apresentação fiquei com a ideia de que já não piscavam os olhos e. estava para jurar. que até sorriam – fiquei em paz e resolvi não mais questionar ou mudar o que deus fez – olhei novamente e decidi batizá-los. escrevi o texto: aquário

sampaio rego 20 de novembro de 2019

aquário
os meus olhos encheram-se de peixes – eugénio. amarelo. explícito na sensibilidade – camões. nos olhos a sua marca – excêntrico. chama-se dali. são cores – torga. veste-se de negro. talvez saiba da morte – pessoa. sempre ele. um vira casacas. à noite caeiro – eu sou aquário de ascendente [hoje]. mas só depois de carneiro

sampaio rego 20 de dezembro de 2010



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