antónio sampaio lopes
nota: este
texto foi confecionado antes de 17 de março de 2019. ainda o meu
agnosticismo não tinha sofrido com o abalo da morte da minha cunhada maria josé
– a sua partida deu início a um novo ciclo de incertezas sobre a minha fé.
fez-me questionar de novo deus e aceitar uma nova cruzada de interrogações e perguntas
– sei que ter fé é ter dúvidas – confesso que ainda não estou totalmente certo
de nada. mas estou recetivo a uma nova reconquista evangélica – saiba o
senhor tocar-me – preciso de voltar a acreditar no que não vejo – o homem é
feito de mudanças e eu sinto-me disponível para mudar – quero acreditar
na ressurreição da alma. na sua imortalidade. na firmeza de que
“para deus não haverá impossíveis para todas as suas promessas.” – a
minha cunhada pisa agora o caminho da glória. vive uma nova existência
no mundo celestial – sinto falta de falar com ela – um dia. quando a minha
alma estiver mais forte. explicarei como a partida inesperada da zeza me
retirou do abismo do nada – “na natureza nada se cria. se perde. tudo se transforma” – a minha
cunhada zeza transformou-se no meu último anjo
senhor. estou
preocupado contigo e comigo – não é nada de especial. mas já passaram
mais de vinte e um anos [vinte e dois] desde que levaste o meu pai para junto
de ti – deixa-me dizer-te: não sei se sabes que o meu pai. todas
as noites. te entregava uma oração com o sinal da cruz – creio que não
sabes mesmo. em boa verdade. acho que não sabes nada do mundo.
cresceu excessivamente para ti – mas não te inquietes. já passou
demasiado tempo para me voltar a aborrecer contigo – o que queria que me
dissesses. se não fosse muito incómodo para ti. é se o meu pai
está bem. se ainda está ao pé de ti. se o tens protegido.
guardado de outros males – é o mínimo que deves fazer por aqueles que te são
fiéis. ele escolheu-te. desejou-te a seu lado. acreditava
em ti. na tua proteção e na tua amizade – se a família não se escolhe.
os amigos é sempre uma escolha nossa – o meu pai achava-te amigo. achava-te
de confiança – sempre respeitei as suas escolhas. era teu devoto e rezava
para que tu. no dia do juízo final. o acolhesses a teu lado –
queria a vida eterna – espero sinceramente que não o tenhas desiludido – já comigo
não tens com que te preocupar. escusas de me guardar lugar. fui
purificado com a tua água. mas morrerei seco e em pecado – perdi toda a
confiança em ti. nas tuas rezas. nas tuas leis e nos teus
discípulos na terra – não te perdoo o que lhe fizeste. melhor. o
que nos fizeste – a dor que lhe infligiste foi também a nossa dor – as boas famílias
cristãs são assim. sofrem e riem juntas – nós éramos uma família.
uma comunidade familiar de fé. de esperança. caridade e afetos – as
nossas orações quotidianas deveriam reforçar a bondade em ti. a atenção.
o perdão e a misericórdia – o meu pai amou-te. amou
a sua esposa. os seus filhos. o seu semelhante. o meu pai
cumpriu os teus mandamentos e. quando errou. como homem concebido
do barro de adão. teve a humildade de te pedir perdão pelas suas
fraquezas. de se ajoelhar e apelar à tua infinita misericórdia – e tu
que fizeste? uma família cristã é evangelizadora e missionária. o que tu
fizeste foi acabar com a minha fé. terminaste com a evangelização da
minha descendência – fechei-te a porta. a ti e à tua religião – eu sei
que tinhas de levar o meu pai como fazes com todos os outros. mas não
ficaste satisfeito só em levá-lo. tiveste que lhe roubar a alma.
a memória. e a derradeira oportunidade de lhe falar pela última vez – eu
sabia que o ia perder… mas não em silêncio – um filho nunca é adulto enquanto
o seu pai viver – eu não queria ser adulto. queria ser dono do tempo e
trazer a vida para trás – queria falar-lhe de nós. falar-lhe de mim.
do meu mundo. daquilo em que acreditava. os jovens acreditam em
cada coisa mais tola – confesso que o que queria mesmo era o seu perdão – era
demasiado jovem para a sua sabedoria – queria dizer-lhe que gostava de ter
nascido mais cedo. de o ter mais tempo a meu lado. gostava de ter
sido mais velho só para ele ser mais novo – um homem mais velho é sempre mais sábio
– na juventude o coração perde-se em tudo e em nada. quase sempre sem
tino. critério e valores. nunca percebi que metade de mim era dele
– e eu sem saber que os corpos desaparecem enquanto a existência nos distrai
com ruas e projetos que nunca chegarão a lado nenhum – os beijos que não lhe
dei multiplicaram-se com a saudade e são agora uma inquietação permanente – que
saudades tenho de ti meu pai – se eu te pudesse explicar a minha vida.
explicar o tempo que gastei por aí. tenho a certeza de que me irias
compreender. e me dirias que a terra prometida não existe para quem quer
fazer coisas – dirias que ambição são sonhos que se podem realizar.
dirias que é bom sonhar – vinte e um anos [vinte e dois] e as noites ainda
escurecem com o teu nome – quando partiste ainda não era capaz de perceber como
o tempo passa a correr. só quando envelhecemos compreendemos que o
amanhã é quase sempre tardio para quem não faz o que deve fazer – há um momento
certo para tudo – sabes deus!! o meu pai era um homem fantástico – nunca
compreendi muito bem esse teu gesto miserável. essa canalhice. esse
roubo ignóbil. calculista e maquiavélico. o meu pai era um homem bom.
de quem toda a gente gostava e não merecia morrer sem que pudesse levar um
sorriso de quem o amava – desculpa senhor. mas para ti o perdão ainda é
um sentimento que renego – mas deixa-me dizer-te. com o envelhecimento acabei
por amolecer. já não sinto aquela sensação de raiva e rancor. aquele
mau estar quando ouço o teu nome. há dias em que não sinto mesmo nada.
só não te quero por perto. não te quero dar a outra face – nunca
percebi por que raio um homem magoado tem que dar a outra face – que se lixe.
és o que és. e eu sou o que sou. e não faço questão nem de mudar.
nem de esquecer – o que me intriga. é que desde que abandonei a tua
casa. logo após cobrir o meu pai com terra sagrada. nunca mais te
vi por perto – a minha dúvida é a seguinte: será que te pesou a
consciência e percebeste que não agiste bem com a nossa família? ou não
aguentaste a tampa e ficaste enfunado? confesso que às vezes acontecem-me
coisas para as quais não encontro explicação. vem-me à ideia de que
alguém com a tua personalidade se sinta ressabiado e goste de me provocar – vamos
lá esclarecer esta coisa de uma vez por todas: eu não te quero mal.
confesso que não sei porque não te quero mal. sim. depois do que
me fizeste eu deveria ter ido por esse mundo inteiro anunciar que na tua boca
não há verdade. mostrar como não és de confiança. afinal um
trafulha é sempre um trafulha. quer viva no céu. ou na terra – que
se lixe tudo senhor. que se lixe o passado e as tua trafulhices – quero tranquilidade.
quero paz para mim e para as memórias do meu pai – se um dia não tiveres onde
pernoitar quero que saibas que a minha casa está à tua disposição com água e
pão. não terás que recorrer a nenhum dos teus milagres para saciar a
fome e a sede – tens uma única condição. não podes falar de religião – falamos
de bola. de política. do preço das coisas. sei lá. falamos
como se eu ainda fosse criança – tu sabes que sempre gostei de ser criança. são
inocentes. não contam o tempo e acreditam em tudo que lhes dizem – vê lá
bem que até me fizeram acreditar em ti – pobre miudagem – se realmente é
verdade que és omnipotente e misericordioso. então. és obrigado a
perdoar-me. és obrigado a perdoar todos aqueles que pecaram por
pensamentos. palavras. atos ou omissões – espero que ponhas um
ponto final neste assunto e aceites de uma vez por todas o meu agnosticismo –
esquece estes últimos vinte e um anos [vinte e dois]. esquece que um dia
pertenci ao teu rebanho – deixa-me viver a minha condição de pai.
deixa-me amar os meus filhos – nunca deverias ter levado o meu pai sem que ele me
dissesse o que um pai diz sempre ao filho quando se ausenta: tem cuidado.
toma conta da tua mãe. não te esqueças de apagar as luzes à noite – tudo
o que me resta é aquele beijo frio. gelado – quero avisar-te que se me tentares
roubar a alma e a memória. com as mesmas artimanhas que usaste com o meu
pai. não vai resultar comigo. já deixei recomendações da minha última
vontade. deixei tudo escrito – não me levas para lado nenhum. não
somos amigos – entretanto. vamos mantendo a cordialidade. bom dia
e boa tarde – vemo-nos nos casamentos. batizados e funerais – o resto
já sabes…
Sem comentários:
Enviar um comentário