.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

16/03/2020

17 de março de 1998






antónio sampaio lopes





nota: este texto foi confecionado antes de 17 de março de 2019. ainda o meu agnosticismo não tinha sofrido com o abalo da morte da minha cunhada maria josé – a sua partida deu início a um novo ciclo de incertezas sobre a minha fé. fez-me questionar de novo deus e aceitar uma nova cruzada de interrogações e perguntas – sei que ter fé é ter dúvidas – confesso que ainda não estou totalmente certo de nada. mas estou recetivo a uma nova reconquista evangélica – saiba o senhor tocar-me – preciso de voltar a acreditar no que não vejo – o homem é feito de mudanças e eu sinto-me disponível para mudar – quero acreditar na ressurreição da alma. na sua imortalidade. na firmeza de que “para deus não haverá impossíveis para todas as suas promessas.” – a minha cunhada pisa agora o caminho da glória. vive uma nova existência no mundo celestial – sinto falta de falar com ela – um dia. quando a minha alma estiver mais forte. explicarei como a partida inesperada da zeza me retirou do abismo do nada – “na natureza nada se cria.  se perde. tudo se transforma” – a minha cunhada zeza transformou-se no meu último anjo



senhor. estou preocupado contigo e comigo – não é nada de especial. mas já passaram mais de vinte e um anos [vinte e dois] desde que levaste o meu pai para junto de ti – deixa-me dizer-te: não sei se sabes que o meu pai. todas as noites. te entregava uma oração com o sinal da cruz – creio que não sabes mesmo. em boa verdade. acho que não sabes nada do mundo. cresceu excessivamente para ti – mas não te inquietes. já passou demasiado tempo para me voltar a aborrecer contigo – o que queria que me dissesses. se não fosse muito incómodo para ti. é se o meu pai está bem. se ainda está ao pé de ti. se o tens protegido. guardado de outros males – é o mínimo que deves fazer por aqueles que te são fiéis. ele escolheu-te. desejou-te a seu lado. acreditava em ti. na tua proteção e na tua amizade – se a família não se escolhe. os amigos é sempre uma escolha nossa – o meu pai achava-te amigo. achava-te de confiança – sempre respeitei as suas escolhas. era teu devoto e rezava para que tu. no dia do juízo final. o acolhesses a teu lado – queria a vida eterna – espero sinceramente que não o tenhas desiludido – já comigo não tens com que te preocupar. escusas de me guardar lugar. fui purificado com a tua água. mas morrerei seco e em pecado – perdi toda a confiança em ti. nas tuas rezas. nas tuas leis e nos teus discípulos na terra – não te perdoo o que lhe fizeste. melhor. o que nos fizeste – a dor que lhe infligiste foi também a nossa dor – as boas famílias cristãs são assim. sofrem e riem juntas – nós éramos uma família. uma comunidade familiar de fé. de esperança. caridade e afetos – as nossas orações quotidianas deveriam reforçar a bondade em ti. a atenção. o perdão e a misericórdia o meu pai amou-te. amou a sua esposa. os seus filhos. o seu semelhante. o meu pai cumpriu os teus mandamentos e. quando errou. como homem concebido do barro de adão. teve a humildade de te pedir perdão pelas suas fraquezas. de se ajoelhar e apelar à tua infinita misericórdia – e tu que fizeste? uma família cristã é evangelizadora e missionária. o que tu fizeste foi acabar com a minha fé. terminaste com a evangelização da minha descendência – fechei-te a porta. a ti e à tua religião – eu sei que tinhas de levar o meu pai como fazes com todos os outros. mas não ficaste satisfeito só em levá-lo. tiveste que lhe roubar a alma. a memória. e a derradeira oportunidade de lhe falar pela última vez – eu sabia que o ia perder mas não em silêncio – um filho nunca é adulto enquanto o seu pai viver – eu não queria ser adulto. queria ser dono do tempo e trazer a vida para trás – queria falar-lhe de nós. falar-lhe de mim. do meu mundo. daquilo em que acreditava. os jovens acreditam em cada coisa mais tola – confesso que o que queria mesmo era o seu perdão – era demasiado jovem para a sua sabedoria – queria dizer-lhe que gostava de ter nascido mais cedo. de o ter mais tempo a meu lado. gostava de ter sido mais velho só para ele ser mais novo – um homem mais velho é sempre mais sábio – na juventude o coração perde-se em tudo e em nada. quase sempre sem tino. critério e valores. nunca percebi que metade de mim era dele – e eu sem saber que os corpos desaparecem enquanto a existência nos distrai com ruas e projetos que nunca chegarão a lado nenhum – os beijos que não lhe dei multiplicaram-se com a saudade e são agora uma inquietação permanente – que saudades tenho de ti meu pai – se eu te pudesse explicar a minha vida. explicar o tempo que gastei por aí. tenho a certeza de que me irias compreender. e me dirias que a terra prometida não existe para quem quer fazer coisas – dirias que ambição são sonhos que se podem realizar. dirias que é bom sonhar – vinte e um anos [vinte e dois] e as noites ainda escurecem com o teu nome – quando partiste ainda não era capaz de perceber como o tempo passa a correr. só quando envelhecemos compreendemos que o amanhã é quase sempre tardio para quem não faz o que deve fazer – há um momento certo para tudo – sabes deus!! o meu pai era um homem fantástico – nunca compreendi muito bem esse teu gesto miserável. essa canalhice. esse roubo ignóbil. calculista e maquiavélico. o meu pai era um homem bom. de quem toda a gente gostava e não merecia morrer sem que pudesse levar um sorriso de quem o amava – desculpa senhor. mas para ti o perdão ainda é um sentimento que renego – mas deixa-me dizer-te. com o envelhecimento acabei por amolecer. já não sinto aquela sensação de raiva e rancor. aquele mau estar quando ouço o teu nome. há dias em que não sinto mesmo nada. só não te quero por perto. não te quero dar a outra face – nunca percebi por que raio um homem magoado tem que dar a outra face – que se lixe. és o que és. e eu sou o que sou. e não faço questão nem de mudar. nem de esquecer – o que me intriga. é que desde que abandonei a tua casa. logo após cobrir o meu pai com terra sagrada. nunca mais te vi por perto – a minha dúvida é a seguinte: será que te pesou a consciência e percebeste que não agiste bem com a nossa família? ou não aguentaste a tampa e ficaste enfunado? confesso que às vezes acontecem-me coisas para as quais não encontro explicação. vem-me à ideia de que alguém com a tua personalidade se sinta ressabiado e goste de me provocar – vamos lá esclarecer esta coisa de uma vez por todas: eu não te quero mal. confesso que não sei porque não te quero mal. sim. depois do que me fizeste eu deveria ter ido por esse mundo inteiro anunciar que na tua boca não há verdade. mostrar como não és de confiança. afinal um trafulha é sempre um trafulha. quer viva no céu. ou na terra – que se lixe tudo senhor. que se lixe o passado e as tua trafulhices – quero tranquilidade. quero paz para mim e para as memórias do meu pai – se um dia não tiveres onde pernoitar quero que saibas que a minha casa está à tua disposição com água e pão. não terás que recorrer a nenhum dos teus milagres para saciar a fome e a sede – tens uma única condição. não podes falar de religião – falamos de bola. de política. do preço das coisas. sei lá. falamos como se eu ainda fosse criança – tu sabes que sempre gostei de ser criança. são inocentes. não contam o tempo e acreditam em tudo que lhes dizem – vê lá bem que até me fizeram acreditar em ti – pobre miudagem – se realmente é verdade que és omnipotente e misericordioso. então. és obrigado a perdoar-me. és obrigado a perdoar todos aqueles que pecaram por pensamentos. palavras. atos ou omissões – espero que ponhas um ponto final neste assunto e aceites de uma vez por todas o meu agnosticismo – esquece estes últimos vinte e um anos [vinte e dois]. esquece que um dia pertenci ao teu rebanho – deixa-me viver a minha condição de pai. deixa-me amar os meus filhos – nunca deverias ter levado o meu pai sem que ele me dissesse o que um pai diz sempre ao filho quando se ausenta: tem cuidado. toma conta da tua mãe. não te esqueças de apagar as luzes à noite – tudo o que me resta é aquele beijo frio. gelado – quero avisar-te que se me tentares roubar a alma e a memória. com as mesmas artimanhas que usaste com o meu pai. não vai resultar comigo. já deixei recomendações da minha última vontade. deixei tudo escrito – não me levas para lado nenhum. não somos amigos – entretanto. vamos mantendo a cordialidade. bom dia e boa tarde – vemo-nos nos casamentos. batizados e funerais – o resto já sabes






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