cyril rolando
I.
abraço-me. abraço-me num
abraço absurdo – que autoestima sobeja num abraço absurdo? que dúvidas farão de
mim um recomeço? a irracionalidade de um abraço absurdo é quase sempre desespero
e sofrimento – procuro no absurdo justificação para uma tristeza que às vezes
parece um hábito repetitivo que vicia – sabe-se hoje que a genética interfere
na herança dos vícios – cada vez acredito mais que nasci viciado numa
dependência de coquetéis absurdos. sofro do síndrome de abstinência neonatal – não me lembro de viver sem que um absurdo não
estivesse por perto – porque raio não param de me acontecer estes absurdos excêntricos – talvez o
diabo me tenha tomado a alma à nascença infetando-a de medos e horrores absurdos
– talvez deus me tenha entregue a este
caminho absurdo apenas para me purificar de outras encarnações – que raio
trouxe no corpo para que deus ou diabo se interessem por alguém tão estupidamente
absurdo – sim. eu tornei-me num absurdo sem deus nem roque e o que temia
me sobreveio – toda a vida é um absurdo incontrolável. um segundo mais tarde
perde-se o comboio. um segundo mais cedo morremos esmagado pelo mesmo
comboio – em cada segundo cabe uma enormidade de absurdos – somos o que somos num
tempo incrivelmente egoísta. ninguém quer saber o que te levou a ser um absurdo.
ou porque foste tu e não outro o parceiro perfeito para os absurdos – não
acredito no destino – tudo vazado dum caldeirão de humanos. contaminados
pelo absurdo das suas diferenças onde ninguém é igual a ninguém e no entanto.
todos parecem tão iguais – não escolhemos viver assim. na
fragilidade do nascimento somos infetados por um mundo absurdo – sou o gozo estúpido
de um espermatozóide. eram mais de mil… absurdamente o que chegou
à vida foi este – não há dia nenhum que não me interrogue o porquê desta vida
absurda que me consome numa labareda que ninguém sabe que existe – bem sei que as
dúvidas absurdas confirmam a minha existência ínscia – perdoe-me deus ou diabo.
mas só posso alterar o que vive e sinto em mim – já não sinto grande coisa – um
homem é sempre o que sente e. mesmo que duvide do que acredita sentir.
não pode deixar de acreditar. por mais absurdo que lhe pareça esse sentir
incerto: às vezes amor. outras apenas indiferença… ou
ainda um absurdo de coisas que não se explicam. sente-se e sabe-se – é
na dúvida que se encontra a certeza – a dúvida existe para nos dar certezas –
que absurdo se torna o meu mundo se um dia perder as dúvidas sobre mim – quero
continuar a viver este meu mísero e triste absurdo. quero continuar a duvidar.
quero que o tempo que me resta seja todo ele de enormes incertezas absurdas
– “antes morrer de pé do que viver de joelhos” – que cabeça não sabe duvidar?
como se para duvidar do absurdo tivesse o corpo que viver no mundo das
invenções. dos aviões. dos relógios atómicos. dos
foguetões e das balas que continuam a matar aqueles que já morreram várias
vezes de vergonha – confesso. tenho medo e vergonha do que penso. porque
tudo o que penso quero que exista e tudo que existe é um absurdo que só faz
sentido na minha cabeça – tenho raiva e vergonha do presente. tenho raiva
e vergonha do passado. mas não tenho nada para amanhã. a não ser fabricar
na minha cabeça absurdos inimagináveis – nada das coisas que imaginei morreu em
mim porque o tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem faz –
ainda quero fazer milhentas coisas. mesmo que sejam absurdas – a
felicidade e a tristeza alimentam-se do pensamento. mesmo absurdo –
penso. logo sou absurdo – utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos
o deixarão de ser – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o absurdo
em mim possa parecer loucura
II.
vivo agora também a
dúvida absurda do silêncio – o silêncio preenche todos os vazios. traz bondade.
dignidade. perdão e quando chega o barulho das dúvidas absurdas… já
não tem força. nem tamanho para magoar – não deixa de existir.
não. torna-se apenas num barulho bondoso. humano. clemente.
compreensivo. e generosamente vai repetindo ao ouvido. numa
tranquilidade completamente absurda: estás perdoado por toda essa vida
absurda – e o eco das palavras a embalar-me num sono de criança. talvez a síndrome de abstinência neonatal
continue a fazer das suas. um viciado nunca se cura. a falta do cordão
umbilical existirá até ao último suspiro – talvez esta minha resistência
à loucura do absurdo seja o que me mantém vivo. ou então. a forma
que encontrei para vos dizer que ainda tenho dignidade para suportar os vivos –
talvez a dúvida absurda exista porque eu existo no silêncio – sem o silêncio da
noite não sou nada – na dúvida absurda do silêncio posso correr para o outro
lado de mim e não encontrar nada ou… encontrar todo o barulho do mundo:
os meus amigos a jogar à bola. o carro a acelerar. as máquinas a
trabalhar. os filhos a chorar. a mãe a chamar e o pai a apontar
para o absurdo dos nossos antepassados – e a mente que cria as tempestades
absurdas pede uma última certeza que não seja absurda. e corro para todo
lado e em todo lado me encontro com as mesmas marcas no corpo. as mesmas
dúvidas absurdas – será que não há uma alegria absurda perpétua? não tenho
aonde me esconder. e as tempestades não param porque não consigo parar
de pensar nos absurdos da minha vida. não consigo parar de ter dúvidas do
que fiz – confesso. não sei se a culpa é minha por me tornar num absurdo.
ou o absurdo é um cabrão sem piedade que me infiltra doses maciças de
inverdades. insegurança. hesitações e medos – o pior disto
tudo é que não consigo fugir da inverdade. da insegurança. da
hesitação e do medo – sofro. fugir de sofre já é sofrer – não consigo
deixar de viver onde cresci – eu sou um todo e mesmo que me divida em silêncio
ou barulho. em irreal ou real. em fé ou desconfiança. em
deus ou ateu. em luz ou negrume. serei sempre eu. e mesmo
morto serei eu. ninguém me apagará do universo – também eu alimentei o
absurdo da vida. também eu fui de casa em casa. amigo em amigo.
trabalho em trabalho. sonho em
sonho. em paz ou irado. ajoelhado ou de pé. com deus ou
com o diabo. tudo num destino que não escolhi – nunca poderia ser
pescador porque nasci sem mar. sonhei-o muitas vezes. visitei-o.
senti-o quando a cada mergulho me fiz água. nadei como os peixes.
mergulhei como os golfinhos. fechei-me numa garrafa e percorri todas as
correntes do mundo com mensagens absurdas. mas ao fim do dia. a
minha casa não cheirava a mar. cheirava a couro. os barcos eram
máquinas e os pescadores eram operários – o absurdo é que amo as máquinas e o
mar – tenho no peito tatuado uma gaivota e o mundo num abraço – aristóteles
dizia que todos os seres foram criados para um fim – a minha dúvida é se há
fins absurdos – o que faz um homem num desespero absurdo? olho para mim e interrogo-me
se sou o que quis ser. ou sou o que me rodeou? o que fiz fez-me.
ou sou o que sou porque não fiz o que deveria ter feito – há um limite para
tudo. há um limite mesmo quando não há respostas para o que queremos
saber – há um limite até para os absurdos – também eu fui castigado como sísifo.
e a pedra no sopé da montanha todos os dias a crescer. e o absurdo das
coisas em mim a tirar-me as forças para carregar o que mais ninguém vê – e uma
pedra enorme no sopé de uma montanha absurda – porque me deram uma montanha se o
que sempre desejei foi apenas o que sentia em mim? e o raciocínio perdido num
sacrifício absurdo. em dor absurda. em raiva absurda. em
desespero absurdo. maior que qualquer montanha absurda. maior que
a pedra de sísifo – mato o absurdo que nasceu comigo? seria eu a mesma pessoa
sem o absurdo? ou o absurdo é a minha pedra. a pedra que carrego e não
chega a lado nenhum – infelizmente a eutanásia não se aplica a quem sofre de
coisas absurdas – tenho que viver
III.
não tenho inveja do
que não alcancei. talvez um pouco de azedume e arrependimento.
mas não posso alterar o passado – serei o que o destino quiser. continuarei
a erguer-me do chão quando caio – não me posso zangar por aquilo que errei
quando pensava estar certo – cada época tem as suas certezas absurdas – não
posso continuar a amar quem não respeita esta minha forma absurda de ser – não
posso aceitar calado tamanha humilhação – não posso respeitar quem não acredita
que o absurdo existe. tal como as “brujas. no creo. pero
que las hay. las hay” – prefiro morrer sozinho. prefiro morrer a
falar comigo. a explicar-me até que o último sopro me despedace esta
absurda certeza incerta que vive comigo. como vive o coração. que
trabalha como um coração. que voa como as gaivotas. que chora
como os homens – escolhi sempre o melhor absurdo. não o menos arrojado.
mas aquele que no futuro me faria honrar todo o passado – às vezes a justiça do
passado faz-se apenas com uma única absurda certeza incerta – estou aqui meu
querido absurdo. também eu te quero honrar. quero fazer-te
existir como mestre de uma arte que por ser absurda só alguns a reconhecem – o
absurdo não existe apenas porque eu nasci. mas confesso. ás vezes
até que parece – se deus não me receber no dia que chegar ao céu. que as portas do inferno se abram para que
possa caminhar sobre as chamas. pois esse será o meu último absurdo – se
no passado abandonei o divino. hoje. ajoelho-me com fé. e
humildemente peço a deus que ilumine com sabedoria esta minha última viagem.
absurda ou não – quero morrer em paz. quero que a minha alma suba
ao céu enaltecida – quero confiança. saber e um bom destino para aqueles
que deixei no teu quintal terreno – mas se nesta última caminhada. perceber que fui eu o único culpado do absurdo
existir. então. que me sobre saber e memória para o escrever com
a maior crueldade que trago nas mãos – eu não me encerro em mim. não sou
o fim do mundo. sei que sou futuro naqueles que mesmo em caminhos enganados
fui capaz de trazer à vida: o sagrado que me perpetuou
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