esta crónica é dedicada a
uma pessoa muito especial para a nossa família: a lourdes não merecia
este vírus
I.
chega
mais uma vez aquele momento odioso dos números da tragédia nas últimas vinte
quatro horas – e ali estou eu a olhar para a tv. silencioso. cabisbaixo. triste
e com medo. a covid19 não para de se revelar. nenhuma família está
completamente a salvo da dor – não é a primeira vez que o mundo está em maus
lençóis e também não será a última vez. a história produziu imensas tragédias e
também as guarda para servir de aviso. mas não adianta. o ser humano é coisa
complicada. e nem o saber dos provérbios populares os acautela na ambição: lê o
passado e ficarás preparado para o futuro – para não me perder pelas crises e
tragédias no mundo. vou apenas referir-me às mais importantes deste século:
sofri a primeira incursão de terror com o ataque terrorista ás torres gémeas no
11 de setembro de 2001. não foi fácil lidar com aquele limbo de indefinição das
primeiras horas. mas logo percebemos que a guerra era inevitável – nunca
conheci uma guerra boa para as mães – de seguida acorrentei-me ao pânico na
falência do lehman brothers nos estados unidos. o colapso desta instituição financeira
deu origem a uma crise económica mundial. acabando por afetar de diferentes
formas todos os continentes – para se ter uma ideia da importância de certos
países na nossa economia. dizia-se em tom jocoso. que quando os estados unidos
ou a alemanha espirram. os países com as economias mais débeis ficam de cama
com gripe – foi a maior crise. melhor dizendo. a maior gripe desde o crash de
wall street de 1930 – este pedaço de terra plantado à beira-mar. mesmo sendo um
país periférico e minúsculo do sul da europa. tantas vezes esquecido e
ignorado. foi mais uma vez capaz de espantar o mundo – desde o tempo das
descobertas e. com a chegada a lisboa das naus carregadas de ouro do brasil.
nunca mais perdemos a mania das grandezas – o banco de portugal. que alegadamente
tinha mecanismos para supervisão. garantindo a estabilidade e a solidez do
nosso sistema financeiro. e deste modo. certificar a sua boa saúde e
respeitabilidade. surpreendentemente. ou não. foi incompetente – o banco com o
nome desta nossa nação imortal. não foi capaz de perceber. os sinais de alerta
que chegavam da banca. não só de alguma banca. mas de uma maneira geral do
nosso ecossistema financeiro – claro que os portugueses ainda hoje se
interrogam como foi possível isso acontecer – o que ficamos a saber. é que os
nossos bancos eram geridos por pessoas pouco idóneas. digo. por mafiosos – os
nossos “banqueiros”. com raiva do que se passava fora de portas. fizeram
questão de mostrar ao mundo. que apesar de pequenos e pobres. estávamos ao nível
do que melhor se faz nos grandes países. não lhes faltado arte. e de uma
penada. tivemos o BPN. BES. BANIF em bancarrota e assim. milhares de
portugueses ficaram sem as poupanças de uma vida – um país inteiro enganado. em
falcatruas somos capazes até de superar as grandes potências mundiais. mas ao
contrário de outros países. onde os prevaricadores foram a tribunal e pagam com
cadeia as trafulhices. no nosso adorado portugal. tudo continuou como dantes.
os banqueiros nas suas casas e os depositantes na pobreza – por fim. com o país
na bancarrota. com falências em série no tecido empresarial e o desemprego a
roçar os 15%. deram-nos a estocada final. trouxeram a troika como a derradeira
solução para a salvação do pouco que ainda detínhamos verdadeiramente nosso: as
pequenas e médias empresas – estes cavalheiros chegados de países frios e
escuros com breu. de poucos sorrisos. óculos escuros. gabardine preta e pasta
de cabedal preta. não quiseram saber de quem era a culpa. e para expiação dos
nossos pecados. uma dúzia de credos diários e jejum absoluto. como no tempo da
inquisição. pão. água e fé no centeno que é outra forma de dizer centeio. ou
coisa para matar a fome – de lâmina afiada foi cortar a eito. e não importa que
seja velho ou doente. com ou sem medicamentos. com casa ou sem casa. uma
barbárie com o selo da CE – tenho muitas dúvidas que seja possível contabilizar
as mortes associadas a estas tragédias. mas se fosse possível. por arte de um
qualquer nobel de contas. tenho a certeza que o saldo final destes falecimentos
violentos. suplantaria em muitos os contabilizados pela covid19 – mas enfim.
esses mortos nunca foram contabilizados. mas tem uma coisa em comum com os que
morrem com a covid19: morrem ambos asfixiados – a diferença é que para uns a
falência do corpo aconteceu por culpa de um vírus importado da china que ataca
o sistema respiratório. e para os outros. a falência do corpo aconteceu por
culpa de um vírus económico importado de banqueiros sem escrúpulos. que ataca
de igual modo o sistema respiratório. sufocando as pessoas pela fome e pelo
desgosto – o mundo em geral e os portugueses em particular. sempre viveram em
agonia e na corda bamba – em rodapé do meu pensamento corre em passo acelerado
uma esperança desmiolada: hoje vai ser melhor do que ontem. a curva não vai
subir tanto – é a isto que se chama fé desmiolada. todo mundo sabe que será
pior. mas todos continuamos pregados à televisão. numa espera amargurada.
amarrados a fátima e às orações – somos uma nação de gente boa que está
habituada a sorrir e a abraçar. queremos acreditar num milagre. que se sabe que
não irá acontecer – felizmente que este fenómeno tresloucado e de pouco juízo é
comum à maior parte dos meus conterrâneos. o que me deixa mais sossegado. ainda
não apresentou sinais relevantes de um esgotamento nervoso – é bom saber que
não estamos sós nos nossos devaneios – no entanto. há uma diferença enorme
entre a minha fé desmiolada e a de um grande número de portugueses pouco
ajuizados: eu tenho fé de que o número de infetados e de mortes seja menor. e
os meus conterrâneos pouco ajuizados acreditam que o vírus só ataca o vizinho –
por via dessa fé pouco ortodoxa. podem continuar a passear. podem ir à praia.
formar grupos de cavaqueira à porta dos cafés fechados. e os mais novos também
podem continuar a galhofar com este vírus estúpido que só mata velhos – como
sei que a maioria dos jovens tem pais. avós. tios e outras almas em fim de
vida. o que eles querem mesmo acreditar é que a doença só ataca pessoal da
família dos vizinhos – pois bem. até pode ser uma doença de velhos. até me
podem jurar a pé juntos que ninguém com menos de setenta anos será afetado por
este vírus. podem dizer o que quiser. mas o que me revolta. não é o que a nossa
juventude inconsciente diz. isso perdoo-lhes porque em boa verdade a culpa não
creio mesmo que seja deles. mas isso levava-me a outra viagem. que nesta
conjetura não é relevante. o que me custa imenso. mas imenso mesmo. é que as
notícias nos nossos principais órgãos de comunicação social. escrita e falada.
associem a tragédia das mortes pela covid19 à idade das vítimas. induzindo os
espectadores mais novos a uma desresponsabilização emocional – sei bem que essa
é uma verdade da covid19. sei também que é verdade que são os idosos as
principais vítimas deste vírus. sei também que a maior parte deles estão muito
debilitados por quadros clínicos muito complicados. mas todas essas verdades
não justificam que a dor ou as lágrimas de uma morte sejam menores e diferentes
de que quando acontece com pessoas mais novas – os velhos dominam o mistério da
vida. são eles que dominam a magia do tempo. são eles que dão sentido à
juventude para que possam perceber mais rapidamente que não devem desperdiçar
um único segundo da sua vida – não podemos facilitar com as palavras. mesmo
quando por mais que tentes elas digam o que não queres dizer. a morte não tem
idade. nem nunca saberemos quem merece viver mais um dia. se um velho de
oitenta anos que ainda toma conta dos netos para que os seus filhos possam
sobreviver com os ordenados miseráveis. ou um jovem que com a sua má formação
de carácter se transformará num breve espaço de tempo num criminoso sem
escrúpulos – mas tentarei explicar melhor na segunda parte desta crónica o
enredo das nossas televisões na caracterização das mortes nesta tragédia da covid19… e claro. com a nossa lourdes
II.
bem
sei que é inevitável essa associação. mas fico com a ideia de que às vezes há
uma comunicação desatenta com as palavras. pouco trabalhada. pouco cuidada. às
vezes em pânico. que nos chega emparelhada. mesmo que de forma ténue. a
sobreviver à custa da original. encriptada de aliviação. parasita. mas também
um género de bálsamo anestesiante para as dores da alma. um relaxador de medo.
um perdoa-me do comunicador. e que diz mais ao menos assim: caros ativos deste
país. pagadores de impostos. gente que usa as autoestradas. gente que faz filas
de trânsito. gente que leva filhos aos infantários. gente que corre atrás de
uma bola. gente que faz o mundo andar à velocidade dos aviões. gente que compra
moda. que compra excentricidades e coisas que não servem para coisa nenhuma.
gente que faz política e ainda outros que se encaixam em perfeição no
liberalismo selvagem. gente do lucro. das grandes cadeias mundiais de produção.
das ações de wall street. da distribuição de dividendos. dos ricos cada vez
mais ricos. e daqueles que são escandalosamente menos ricos. humildes. modestos
sem saberem o porquê. talvez por causa do alimento. da sobrevivência. da
dignidade do nome. da descendência. e do rir. do fingir para esquecer… e
viramos as costas aos que têm mais gula do que olhos. e planeamos tudo para uma
eternidade feliz e absoluta. que nunca teremos – relaxem… só morre malta acima
dos oitenta anos. malta sem velocidade. malta das cadeiras de rodas. que não
corre. que não paga impostos. não leva filhos aos infantários. só os vão buscar
quando os pais não podem. malta estranha. velhos do restelo. estão sempre
contra tudo e todos. só sabem ver telenovelas para não falar nas fraldas –
descontraiam. isto é doença para quem arrasta os pés. nós temos é que
trabalhar. temos que fazer o país andar. quem é que paga as contas no fim do
mês – pois bem. não tenho oitenta anos. estou até ainda bastante longe dessa
idade de risco. mas confesso-vos. este momento que estamos a atravessar está a
deixar-me amedrontado – estou farto de pensar como a juventude às vezes é
traiçoeira. fumei durante trinta anos e nunca imaginei que um dia seria capaz
de envelhecer – palermices que só os velhos compreendem – apesar de já ter
abandonado o vício há mais de quinze anos. as mazelas da nicotina são como
vulcões adormecidos. a qualquer momento acordam. e sempre com mau feitio – os
invernos infernizam-me os brônquios. causando-me desconforto no peito. e só não
se torna grave porque um dia o escocês alexander fleming. reparou que as suas
culturas de staphylococcus estavam contaminadas por mofo – infelizmente. na covid19. ainda ninguém reparou em nada que nos valesse nesta aflição. talvez
apareça um galês. ou quem sabe… um português descendente do egas moniz. e me
retire deste medo horrendo – mas não quero falar de mim. bato três vezes numa
superfície preta e rumino entre dentes uma ladainha contra os males chineses
que nos acercam: diabo do vírus seja cego. surdo e mudo – agora que já me sinto
completamente protegido. confesso: estou cansado de andar da sala para o
escritório e do escritório para a sala. às vezes vou à cama para descansar do
que não faço. mas por pouco tempo. um bom soldado não dorme em tempo de guerra.
tem que manter o corpo em estado de prontidão – já ouvi dizer que o vírus
atacou o vizinho do quarto andar. apanhou-lhe as entranhas e nem tempo teve
para dizer ai – ouve-se pela caixa do elevador que passa o dia a espirrar e a
coçar-se – coitado. já não saía de casa desde o dia em que a covid19 surgiu na
china. e ninguém consegue dizer como aquilo lhe foi parar ao quarto andar – uma
calamidade nesta nossa comunidade vertical – há quem diga na vizinhança que viu
um vulto a esgueirar-se pelas paredes do prédio. esfarrapado e com os olhos em
bico. a tossir. com uma coroa na cabeça. e abeirar-se da janela com meneamentos
de dragão oriental – é o diz que disse. a questão é ninguém sabe quanta verdade
há numa mentira – confesso que estou em pânico. e também eu decretei uma cerca
sanitária em redor da minha casa. já não me bastava a pandemia mundial e ainda
ter que aguentar uma pandemia no prédio – por isso é que me mantenho em estado
de alerta total. mais vale prevenir do que arremediar – desde o dia em que um
chinês me impingiu um guarda-chuva com a mola quebrada. nunca mais fui capaz de
confiar nessa malta de olhinho pequenino – ninguém está preparado para esta
barbárie. mas se por um lado ter medo é fundamental para sobreviver. alerta-nos
para perigos reais. faz-nos ficar em casa. lavar as mãos duzentas vezes ao dia.
usar máscara. e outros cuidados excêntricos que até há bem pouco tempo eram
impensáveis. por outro lado. o terror amarra-se à cabeça como sanguessuga ao
corpo. e o bom senso fica em aflição. numa ansiedade dolorosa e sem controle
emocional – o inferno deve ser uma coisa parecida com isto. imagino eu. só que
sem a possibilidade de ouvir hauser. de ver a netflix. ler um bestseller e
partilhar o isolamento social com a mulher da nossa vida – acredito que ter
acesso a informação credível. com uma boa dose de sabedoria. uma atitude
positiva. confiança nas autoridades e no nosso serviço nacional de saúde. é com
toda a certeza o melhor antidoto para combater o medo – para aliviar este
stress a que estou sujeito diariamente. como milhões de pessoas em todo o
mundo. e também para vos mostrar como esta covid19 pode ser muito velhaco. vil.
mau e traiçoeiro. um pulha da pior espécie. ao escolher como alvo principal os
mais débeis e doentes. gente no limite das forças. cansada. gasta pela vida: os
idosos. resolvi tirar do anonimato uma dessas pessoas com muita idade. mas
muito especial para mim [que
deus me ajude em palavras e a minha arte exalte o seu nome] tenho
o prazer de vos apresentar uma pessoa que serviu a nossa família durante quatro
gerações: lourdes. oitenta anos. diabética. hipertensa. graves dificuldades de
locomoção e ainda outros problemas que. sendo de menor gravidade. a
impossibilitam de ter uma vida normal – a ua. como carinhosamente é tratada no
nosso meio familiar. chegou à casa dos meus bisavós maternos aos catorze anos
com a missão ingrata de ajudar a tratar a minha avó de um mal ruim. como era
normal dizer na época para as doenças oncológicas – com o falecimento da minha
avó viajou para braga. veio servir para casa dos meus progenitores. e ali se
fez mulher a partir dos seus dezasseis anos – com o tempo acabou por se tornar
na “criada” de confiança dos meus pais e também a inveja de outras serventes
nas redondezas – tratava das compras para alimentação diária da família. dos
asseios da casa. da roupa. dos meus irmãos e mais tarde de mim. e por último.
num upgrade às suas funções menos nobres. era também um género de terapeuta
para situações de crise da minha mãe que. tomada pelos nervos ao cair da noite.
iniciava uma série de ais aflitivos. atarantando o meu pai que ficava sem saber
o que lhe fazer com os afrontamentos ruidosos – a solução passava pela lourdes:
postava-se aos pés da cama. alevantava a voz. puxava o ânimo até á cabeceira da
cama. e desenrolava em sistema de arma automática uma panóplia de histórias e
segredos da vizinhança. extorquidos em sistema de saca-rolhas às colegas de
profissão… sabe-se lá a que custo – bem… tal como um exorcista expulsa os
espíritos maus do corpo. a lourdes. também expulsava os ais da minha mãe – com
o avançamento dos enredos a trama das fofocas começava a produzir expectativas
elevadas sobre o final. um género de telenovela com personagens conhecidas nas
redondezas. e que mantinha a minha mãe com a atenção focalizada na narrativa. fazendo-a
esquecer todos os males de aflição – os ais começavam rapidamente a espaçar. a
perder vigor. e com a adição de um chá bem quentinho. bebido em tragos lentos.
permitia que sua senhora deixasse escapar uns arrotos mais ao menos fortes
sempre que o enredo esmorecia – estava dado o sinal para o fim da crise. a
maleita estava em completa remissão – às doze badaladas da igreja do carmo já
os anjos dormiam em sossego. e eu finalmente também em paz. enrodilhado em
cobertores. agradecia a deus por me ter concedido a graça de ter em nossa casa
uma curandeira com poderes especiais de cura – acreditem. as histórias da
lourdes tinham o efeito de um valium. talvez até de algum ansiolítico mais
forte. diria que nos nossos dias não se poderia adquirir sem receita médica – o
que é certo é que a minha mãe ao romper do sol apresenta-se ao trabalho como um
general. com a alma revigorada e pronta para comandar as suas funcionárias –
com o casamento da minha irmã apareceram novas crianças. as minhas sobrinhas.
sandra e bárbara. vieram elas também para os cuidados da ua. e o lar voltou a
encher-se de alegria e barulhos – foram anos de muita paz e sorrisos. os avós
tinham novamente crianças em casa. a lourdes novas preocupações. as miúdas não
lhe saiam do pé o que lhe agradava. e eu deixei de fazer parte das preocupações
dos mais velhos. estava tudo perfeito – não há dúvida que as crianças têm
poderes curativos inimagináveis – os anos passaram e a lourdes ganhou direito a
pertencer à nossa família sem necessidade de invocar a usucapião – para mim que
nasci com a sua presença ao meu lado. que dormi na sua cama até a escola me
chamar. que lhe fazia rolinhos no cabelo para adormecer. que me vestia.
alimentava. acarinhava e aturava a minha vontade indomável de ser livre. dizem
que não era fácil segurar-me. era mais do que óbvio que estava em nossa casa
desde o tempo da pré-história – a lourdes era estimada por toda a família e
mesmo com a chegada de novos membros. genros e noras. nada se alterou. o apreço
por esta senhora era unânime – o tempo. infelizmente. também passou por mim. e
um dia. o meu pai. perguntou-me porque não me casava – achei que tinha razão.
os meus dias sempre tiveram o dobro das horas. estou até convencido. que com as
cismas dos progenitores nos dias de hoje. o mais certo. era enfiarem-me pela
goela abaixo umas quantas pílulas para a hiperatividade – fiz a vontade ao meu
pai e também a mim. e casei com a companheira que resiste estoicamente a meu
lado. confirmando a promessa de que era para sempre. para o bem e para o mal.
com vírus ou sem vírus – um pouco antes da boda. e com muita tristeza para a
família e principalmente para a minha mãe. a lourdes informou que iria voltar à
aldeia dos meus ascendentes para tomar conta da mãe. senhora glória. com
setenta e cinco anos; do pai. senhor barreto. com sessenta e quatro anos; e de
uma tia. senhora marquinhas. com oitenta e nove anos. que depois da minha avó
falecer acabou por casar com o meu avô – estamos não só a falar de gente
idosa. mas de gente escrava. com marcas
no corpo de um passado feito de dificuldades. de miséria. de trabalho no campo
sem descanso. de fome. e que para além da idade avançada. também copulavam
saúde periclitante. limitando a sua mobilidade. e incapazes de se valerem a
eles próprios – a lourdes percebeu que só com a sua ajuda seria possível dar
mais algum tempo de vida com qualidade aos seus familiares. mas isso implicava
a sua presença junto dos idosos em permanência – foram momentos dramáticos em
casa dos meus pais. para lá de se perder uma pessoa que já era da família.
perdia-se uma governanta insubstituível – infelizmente comprovou-se que era
mesmo impossível a sua substituição. nunca conseguimos acertar com as novas
promessas e acabamos por desistir de encontrar uma outra governanta. recorremos
mais ao take away – muito bem. o texto está a complicar-se com a quantidade de
páginas. o melhor é centrar a história definitivamente na personagem principal:
a lourdes – esta alma de deus merece cada linha desta pequena eternidade que
lhe escrevo – é ela a razão porque acho o covid19 um vírus muito estúpido e
injusto – peço-vos que apreciem por favor esta história. para além de ser a
história da lourdes é também a minha
III.
a
maria de lourdes correia. nossa ua. frequentou a escola de s. mamede de escariz.
aldeia onde nasceu no concelho de vila verde. até completar a segunda classe –
naquela época. o país não tinha na letra da lei a escolaridade obrigatória.
apenas frequentava o ensino escolar filhos de famílias mais abastadas – é
sempre bom lembrar que nos primeiros anos da república o analfabetismo revelava
a presença de aproximadamente 80% de analfabetos – também a lourdes foi
resgatada da escola contra sua vontade. os pais precisavam de ajuda. o cultivo
dos campos não se fazia sem mãos e os animais não conheciam o trilho para o
pasto – as relações de amor e afetos familiares. como os beijos. os abraços. as
expressões verbais de ternura. só se generalizaram no último terço do século
passado. primeiro nos grandes centros urbanos. e só muito mais tarde nas
comunidades rurais – a criança ao longo dos séculos sempre foi olhada como um
pequeno adulto em crescimento. qualquer demonstração de carinho era muito
mal-entendida pela comunidade. entendia-se nesse tempo de escureza. que as
manifestações de afecto prejudicavam seriamente o crescimento. não ficando
estes suficientemente fortes para resistir às borrascas da infância – a criança
aos sete anos era referenciada por [quase] toda a comunidade rural como parte
integrante da capacidade produtiva da família – aprendia caminhando ao lado dos
pais. não tinha juventude ou tempo de aprendizagem. a resistência e a força
para executar tarefas determinava o fim de um ciclo e o começo de outro: a
criança tornava-se adulta – os dias dos seus progenitores eram passados de enxada
na mão de sol a sol. num trabalho escravo. mal pago. não permitindo na maior
parte do ano. exceção ao verão. alimentar a família condignamente – as semanas
eram muito longas. com cargas horárias alinhadas à luminosidade solar. não
havia semana inglesa. eram seis dias de padecimento e sacrifício. sobejando um
único dia para se cumprir a vontade do senhor: ao sétimo dia descansar e
glorificar o criador – assim era. pela manhã bem cedo. em júbilo pelo sossego
do corpo. a família vestia com cuidados a roupa domingueira: ora puída. ora
remendada. contudo. asseada e limpa. a iluminar o corpo com luz. numa nobreza à
existência dos pés à cabeça. dignos de tudo – esperavam o chamamento do sino
que. em batimentos ritmados e possantes. chegava a todos os cantos da freguesia
num apelo aflitivo: despachem-se – as manhãs de domingo despertavam
imperiosamente com a primeira eucaristia do dia na igreja paroquial da
freguesia – o padre e o senhor são sempre pontuais – era o sinal para partir.
ainda tinham de caminho uns bons quinze minutos em passo acertado – o domingo
servia para asseverar a fé. recuperar as graças do senhor e renovar o pedido de
socorro e proteção – o senhor era seu pastor e seu conselheiro – era ali. na
casa de deus. que lhe rogava encarecidamente proteção divina. que não
abandonasse a sua família. que os guiasse e iluminasse pelo caminho da virtude
– no fim da eucaristia. enquanto o pai saía para o adro da igreja. a mãe.
trajada de preto com o lenço a cobrir-lhe a cabeça em respeito. obediência. e com
as crianças a seu lado. aproximavam-se de são mamede. santo protetor da aldeia.
ajoelhavam-se com os olhos vencidos em clemência. devoção e renovavam a fé no
espírito santo: pai todo o poderoso e salvador do mundo – por fim. despediam-se
relembrando-lhe humildemente que a oferenda continuava válida: se as colheitas
colherem a sua graça. presenteiam-no com meia rasa de milho e uma vela de
parafina branca. pois a palavra do senhor é certa. cobre a terra e traz
salvação – os dons e o chamado de deus são irrevogáveis – infelizmente. mesmo o
dia do senhor não ficava sem trabalho. o regresso era igualmente feito em
andamento de quem tem pressa: os animais também ruminam aos domingos. não
apresentando nenhum tipo de respeito e gratidão para com o seu criador – o que
sobrou da escola à lourdes foi uma assinatura trémula do nome. e umas quantas
palavras que aprendeu a juntar. nem sempre da forma mais assertiva. mas o
suficiente para dar as boas novas a sua mãe sobre o estado de saúde do seu
único irmão internado no sanatório do caramulo com tuberculose – a lourdes
nasceu em mil novecentos e trinta e nove. uma época complicadíssima. não havia
ameaça pandémica. mas havia outros males na sociedade que matavam mais cristãos
que a nossa covid19 – eram tempos muito difíceis para todos: não havia estado
social. sistema nacional de saúde. não havia médicos de família. não havia
transportes diários para se chegar às vilas e cidades. não havia dinheiro para
medicamentos. o que realmente abundava no nosso portugal era muita miséria –
como uma desgraça nunca vem só. estávamos no começo da II guerra mundial
[1939-1945]. e a guerra civil na nossa vizinha espanha [1936-1939] apesar de já
ter terminado. os efeitos ainda se faziam sentir no país – a fome. a pobreza. a
miséria. a literacia. a falta de informação. a falta de todos e quaisquer
cuidados de saúde e as guerras no mundo. fazia com que as pessoas naquela
época. se preocupassem exclusivamente em sobreviver. a comida era escassa e
difícil de encontrar – vivia-se um momento calamitoso. a guerra adquiria
proporções cada vez mais devastadoras e o estado da economia tornou-se caótico
– para agravar a situação em que o país se encontrava. salazar. o estadista
nacionalista português e condutor dos destinos do império. decidiu. dividir o pouco
que tínhamos com a nossa vizinha espanha – é portugal que alimenta a máquina de
guerra fascista de franco. e mesmo depois da guerra civil terminar. é também
salazar. mais uma vez. que evita a morte à fome de milhões de espanhóis. não
interrompendo o envio de mantimentos – no entanto. salazar evitou que os
horrores da II grande guerra atingisse o nosso país. e considerou ele. que esse
foi o momento mais difícil da sua governação. mas também a maior graça que deus
lhe concedeu. iluminando-o de sabedoria. de arte e de engenho. fazendo
acreditar alemães e ingleses que a neutralidade de portugal era o que melhor
servia as duas nações – só não evitou a fome. a miséria e o atraso tecnológico
em relação a outros países da europa – não se podia ter tudo. tivemos paz – a
tia da lourdes. senhora marquinhas. que cheguei a conhecer muitíssimo bem. foi
trabalhar para o meu bisavô. e por necessitar de ajuda. acabou por chamar a
lourdes para a sua companhia – tinha. como já disse. catorze anos – como também
referi anteriormente. aos dezasseis anos. veio servir para a casa dos meus pais
em braga. e ali ficou até cerca dos quarenta e cinco anos. quando foi obrigada
a regressar à aldeia dos meus avós. parada de gatim no concelho de vila verde.
para cuidar dos familiares idosos – foram os anos mais difíceis da sua vida.
isolamento. solidão e muito sacrifício. foi como se tivesse sido desterrada.
privada completamente de toda a liberdade – a casa. digo. o barraco. era
composto por um quarto com duas camas onde dormia a lourdes e as duas velhotas.
mais um quarto no exterior. que nas casas da aldeia. era vulgarmente designado
pelo quarto dos defuntos e usado para os velórios sempre que alguém falecia –
nesse quarto estava instalado o seu pai – sobrava uma cozinha e um “quarto de
banho” feito às três pancadas onde mal cabia a sanita e nada mais –
acrescentava-se o negrume nas paredes pelo fumo da lareira e uma lâmpada de
casquilho grosso enfarruscada de fumo negro – não era uma casa portuguesa como
cantarolava a amália rodrigues. nem uma casa como aquela em que vivera os
últimos vinte e nove anos. era sim. uma casa miserável. pobre. muito pobre. a
sua única riqueza era a humanidade com que a lourdes tratava os idosos –
exilada do mundo. do conforto. do bem-estar. combatia a solidão e as horas com
um rádio a pilhas que consentia que a radio renascença levasse diariamente a
eucaristia aos velhinhos. uma tv portátil a preto e branco inundada de
granulado cinza que. em boa verdade. ninguém percebia muito bem o que de lá
saía – a sua única preocupação era cuidar do corpo dos velhinhos. levando-lhes
a comida à boca. fazendo-lhes a higiene diária e quando acamados. mudar-lhes a
posição de hora em hora. para evitar as escaras – nunca faltaram cuidados ou
afetos àqueles idosos. e quando chegou a sua hora partiram em paz e com a
certeza de que não encontrariam ninguém com a dimensão espiritual da lourdes –
a lourdes renovou a necessidade de uma nova conciliação com o ser humano. uma
outra forma de estar. de proceder. outra dimensão social para promover o amor e
bem-estar. mostrando-nos que o que importa não é o que se espera da vida. mas
sim. o que a vida espera de nós. que é como quem diz. aceitar a obrigação de
responder às necessidades de cada individuo na exigência de cada momento – a
lourdes abdicou da sua vida para responder às necessidades dos seus familiares
no momento mais débil das suas vidas: a velhice – mahatma gandhi dizia que o
amor é a força mais subtil do mundo. é completamente verdade – foi preciso
muito amor para abdicar de uma vida confortável. citadina. com todas as
condições de civilidade onde era estimada e reconhecida – depois das cerimónias
fúnebres. e de um luto que fez questão de consagrar à sua prole. já nada a
ligava àquele pedaço de terra longínqua de tudo. estava na hora de regressar a
casa – regressar não para servir. regressar porque a nossa casa. era também a
sua casa – mas como diz o papa francisco: quem não vive para servir. não serve
para viver – a lourdes vive para servir – vivíamos na família um momento muitíssimo
complicado. o meu pai encontrava-se em estado terminal de uma doença destrutora
– foram cinco anos devastadores. cinco anos para o corpo chegar à miséria – a
maldição do relógio não parava de contar tempo. os dias de luz tornavam-se cada
vez mais escassos. e esperávamos. sem que já nenhum milagre pudesse acontecer.
que a doença lhe tomasse definitivamente as forças – estava na hora do meu pai
encontrar o céu porque tanto rezou – mais uma vez a lourdes esteve a seu lado
dia e noite. tentando aliviar dores que já não cediam com nenhum tipo de
medicação – foi quase um ano de uma angústia lacerante. a situação era muito
crítica. a degradação física chegou a limites que nunca imaginei que fosse
possível. já quase nada restava daquele corpo general. só o nome o ligava às
fotos que ainda viviam pelos cantos da casa – estou convencido que a chegada da
lourdes evitou que também tivéssemos que enterrar a minha mãe. estava
completamente exausta e já sem lucidez física e psíquica para continuar a
prestar os cuidados paliativos – finalmente. a dezassete de março de mil
novecentos e noventa e oito. o meu pai desistiu de si e foi ao encontro do seu
deus. levou com ele a nossa saudade e nas mãos a bondade dos homens – tenho
agora uma profunda convicção que. com a chegada da minha mãe ao reino dos céus
[dezembro de 2018]. o meu pai tenha encontrado a outra parte da vida que deixou
para trás – hoje. com os meus quase trinta cinco anos de casamento. sei que o
meu pai gostava imenso da minha mãe – a casa dos meus pais era muito fria. era
assim um género de casa siberiana. tetos de estuque. imensas clarabóias. enorme
em tamanho e correntes de ar e com frinchas nas janelas maiores de que guritas
de sentinelas – aplicava-se na perfeição aquela expressão popular de
trás-os-montes: nove meses de inverno e três de inferno. ninguém melhor do que
eu sabia o que era viver naquela casa feita de frio – era uma enormidade de
casa para duas mulheres desaparecidas no negrume do luto. e logo que o verão se
arrastou para dentro do outono o frio tomou em absoluto conta dos corpos – a
minha mãe confinava-se ao seu quarto para evitar que as nevascas lhe
paralisasse os membros. e a lourdes arrastava-se pelo corredor chumbada de
agasalhos procurando sorrisos que já não existiam – tudo era escuro e desgostoso
– a minha mãe não se conformava com a solidão do luto. continuava mergulhada em
memórias e saudade que a deixavam sem vontade de viver – com o tempo ganhou uma
tristeza que me parecia mais um pronúncio de morte. o que me deixou a pensar na
necessidade de se copiar o que se faz na suíça e criar os cafés da morte. para
que as pessoas possam falar dos seus medos da “mortalidade entre goles de café
e mordidas em bolinhos” – o desaparecimento do meu pai mudou completamente a
minha forma de encarar a morte. se no passado me perguntassem se tinha medo de
morrer o mais certo era ter dito que não. tudo se resumia a fechar os olhos. ou
como diz fernando pessoa. a morte é a curva da estrada – pois bem. já não é
assim. mudou tudo. a resposta alterou-se pelo sofrimento que fui obrigado a
vivenciar – agora tenho pavor de morrer – já se sabe que o cérebro tem
ferramentas que evitam que pensemos na morte. é a sua forma de se proteger da
ansiedade – no entanto. com a forma horrenda e bárbara como o meu pai. dia a dia.
passo a passo. dor a dor. foi perdendo o controle de viver. deixou em todos nós
um estado de profunda revolta e mágoa. e principalmente um transtorno de
ansiedade grave – passamos a projetar a nossa morte no mesmo quadro de dor e
terror. o que ainda hoje é cruz que carrego e me faz caminhar pelas veredas da
injustiça – estávamos todos completamente devastados e tudo demorou muito tempo
a voltar aos sorrisos. a viver sem medo – para a minha mãe tudo foi mais
espinhoso. para além da idade tinha perdido o seu amor de quase cinquenta e
dois anos. e um companheirismo que ultrapassava em muito a vida conjugal. havia
em comum a edificação de um património profissional construído com muito
sacrifício – foi uma daquelas mulheres emancipadas do pós-guerra. que pela sua
capacidade de trabalho e liderança se impusera no mundo dos homens – às vezes
não é fácil admitir que aqueles que lideraram as nossas vidas também
envelheçam. principalmente uma mãe. sempre tão imperiosa. robusta. dinâmica. e
agora tão frágil. quebradiça e indefesa. a morte de meu pai envelheceu-a vinte
anos – a minha família estava à justa para o apartamento. três filhos para três
quartos. a solução passava por encontrar um apartamento próximo. um género
upgrade e depois criar uma ponte vaporosa de abastecimento: alimentação e
afetos – assim foi. surgiu uma oportunidade. e merquei um outro T3 mesmo ao
lado do meu. dupliquei o número de quartos passando todos a viver à larga e à
francesa – com este golpe de oportunidade consegui juntar à minha volta as três
mulheres mais importantes da minha vida – foram anos bons para a nossa família.
reinava finalmente a paz. e com a ajuda dos médicos fomos adiando o que sabemos
ser inevitável – passaram-se vinte anos. e a lourdes na sua infinita vocação de
servir os outros. continuou a auxiliar a minha mãe como se ainda pudesse
enganar a idade. reinventando o tempo e escondendo as fragilidades de saúde – não
era assim. as contrariedades já eram muitas. via-se perfeitamente que as
debilidades estruturais do corpo estavam a chegar ao limite. entrara em
definitivo na velhice dos cuidados – as viagens do quarto à sala começaram a
demorar cada vez mais tempo. o andamento era cada vez mais lento. depois o
passo a passo. e os ais que antigamente não existiam. agora. acompanhavam a
curvatura das costas misturados com o inchaço dos joelhos a ranger caminho – a
lourdes não podia continuar a oferecer à minha mãe as mordomias do passado. não
era justo manter aquela canseira. o corpo era agora um peso e com dor –
pedi-lhe várias vezes para que fosse mais contida na sua lida. mas não
adiantava. tinha a teimosia de um carro de mulas bravas. e se insistisse em
demasia. o mais certo era levar uns coices – duas coisas que não se podiam
pedir à lourdes: para estar quieta. ou para estar calada – quando a minha mãe
acordava o pequeno almoço estava pronto. o almoço adiantado. e a lida da casa
num reboliço controlado – à tarde o enredo repetia-se com as mesmas
protagonistas: o lanche por volta das quatro e meia. e quando o sol batia nas
sete da tarde a lourdes gritava:
-- senhora. a sopa está na mesa. venha senão
arrefece
acompanhava
com uma peça de fruta descascada e uns quantos comprimidos. todos em fila
indiana para que não houvesse falhas no receituário – não podia mesmo haver
esquecimento. era a única defesa para manter a idade escondida do padecimento.
a senhora minha mãe chegou aos noventa e quatro anos – o fim do jantar trazia
finalmente o descanso e também a telenovela que não se perdia nem por coisa
grave – a minha mãe recolhia-se no quarto. e a seu lado. para o que desse ou
fosse necessário. sentava-se a lourdes numa senhorinha de veludo mel. que bem a
podia presentear com o nome – a comunicação era escassa. as atenções eram
exclusivas para a meada da novela da SIC. a não ser que um tratante no écran
precisasse de um corretivo verbal. os maus lá por casa não tinham a vida
facilitada – a minha mãe teve a lourdes a seu lado até ao dia em que foi
internada no hospital. dia e noite. em nenhum momento a abandonou – sofreu
muito com a doença da sua senhora. todos sabíamos que a minha mãe não era uma
pessoa fácil com a doença. sempre foi assim. uma qualquer dorzinha e era o deus
me livre – também eu sofri imenso em miúdo com os seus males. mas era assim.
ainda não havia ciência para todos os padecimentos. o que não se sabia ou era
coisa ruim. ou nervos – a solução passava sempre por uma cura de águas e muito
descanso sem arrelias – a dor era partilhada pela família em formato de ais de
coisa grave – sem nenhum género de tolerância ao sofrimento. lá vinha o dr.
rocha peixoto. com aquela perna mais curta do que outra. a subir as escadas com
uma mão no corrimão e outra na bengala. em tremeliques promissores de um cai.
não cai – atrás. em estado de alerta vermelho. não fosse o doutor perder a
coerência com os degraus. seguia meu pai com o malote de médico e o
estetoscópio que. com aflição ia dizendo:
quem
não achava piada nenhuma àquela coisa do… temos tempo era a minha mãe. que para
contrariar deixava escapar um ai agudo emparceirado com dois suspiros profundos
que se ouviam ao fundo das escadas – de uma penada. o médico. com as duas
pernas em prumo. esbaforido. chegava ao quarto com mais ais do que a doente.
virava-se e dizia:
--
boa noite dona carolina
--
boa noite sr. doutor
e
mais dois ais moribundos. quase desmaiados… o que deixava antever sérias
dificuldades para a cura
--
sr. lopes. arranje-me por favor uma cadeira
sentava-se
todo desengonçado. recuperava folêgo. virava-se para a minha mãe e perguntava-lhe
com ar de doutor:
--
minha senhora. então o que a preocupa
é
verdade que nos últimos seis meses havia realmente razões para se queixar. o
cancro da mama alastrou primeiro para os ossos. e de seguida. disseminou-se a
outros órgãos vitais. as dores tornaram-se realmente insuportáveis. a morfina
deixou de ser competente no controle da dor. apenas o coração e a vontade de
viver resistiam – quando a minha mãe faleceu. logo após as exéquias. tive o
cuidado de falar com a lourdes e dizer-lhe que estava na hora de pensar mais em
si. as desculpas com o avançar da idade deixam de funcionar – ou começava
realmente a preservar a pouca saúde que ainda lhe restava ou o seu corpo iria
ceder muito mais rápido do que poderia imaginar – estava na hora de descansar.
de estar quieta. de viver sem preocupações. de viver sem horas – já não seria
possível acertar contas com o passado. mas podia aceitá-lo. e aproveitar o
resto dos seus dias para viver com serenidade pois merecia-o – a promessa ficou
feita. tudo faríamos para a recompensar dos longos anos dedicados à nossa
família. não só eu. mas todos aqueles que tiveram o privilégio de viver a seu
lado. um sentimento de gratidão também reconhecido pelos meus irmãos – não
queríamos que se preocupasse com nada. queríamos unicamente que se sentisse
protegida. que se sentisse viva. em paz e com o seu deus – a lourdes sempre foi
uma mulher de muita fé e com uma correspondência muito próxima com deus e seus
discípulos – tenho a certeza. de que quando chegar ao céu. logo a seguir à sua
assunção gloriosa. terá à sua espera as primeiras figuras da igreja –
acreditem. falar da ligação da lourdes com o seu deus levava-me a uma quase
interminável crónica – quem sabe um dia eu ganhe coragem – continuou por isso a
viver no mesmo apartamento. usufruindo de todas as comodidades que cabiam à
minha mãe – entretanto nos últimos meses o seu corpo debilitou-se imenso. os
movimentos ficaram reduzidos ao espaço onde reside. e para se deslocar a nossa
casa. já só é possível com a ajuda de cadeira de rodas – mas mantemos o bom
hábito de que nos visite todas as tardes: senta-se no sofá. vê a júlia
pinheiro. janta connosco. algo que já não fazia há muitos anos por limitações
da sua senhora – lamento não me ser possível por falta de talento. descrever a
satisfação que lhe encontramos sempre que se senta à mesa. finalmente servida e
sem desassossego – a minha mãe roubava-lhe muito sossego – com o aparecimento
da covid19 tomamos a decisão de a proteger. o que não fizeram os lares
atempadamente. fizemos nós. ainda o vírus não tinha expressão no nosso país e
já a lourdes estava em quarentena rigorosa – ao princípio custou-lhe um pouco.
não alcançava o porquê de tanto cuidado. afinal a doença ainda estava em itália
e por aqui ainda eram meia dúzia de casos sem expressão – hoje pensa de maneira
diferente. está há mais de cinquenta dias sem visitas. e não há exceções para
ninguém – uma única pessoa a visita diariamente. a minha companheira. leva-lhe
a alimentação e um pouco de conforto. o que a doença permite – pois bem.
cheguei ao momento das interrogações. como é possível deixar passar a mensagem
que esta doença só mata mesmo pessoas de idade. que é como quem não diz. mas
pensa: em vez de ir mais tarde. vai mais cedo – a comunicação é feita sempre
com a subtileza de que é preferível morrer dez velhos em troca de um novo – não
dizem o que estão a pensar. mas subentende-se: estes velhotes já viveram o
suficiente. ou então. como já não são produtivos. são dispensáveis. não fazem
falta – estou certo que muita da nossa juventude não sabe que esta gente velha
e feia. que entope os hospitais com gripes. e consome quase a totalidade do
nosso orçamento para o serviço nacional de saúde. foi quem fabricou.
desenvolveu e trouxe para os nossos dias. com os seus sacrifícios
inimagináveis. este estado providência que nos dá quase tudo: serviço nacional
de saúde para toda a população com custos muito reduzidos. manuais escolares
gratuitos durante o período de escolaridade obrigatória. universidade com
propinas diminuídas. bolsas de estudo para os alunos com dificuldades.
transportes urbanos com preço reduzido. e tantas outras coisas – pois parece
que ninguém se quer lembrar disso – os noticiários gostam de abrir com o
cataclismo de uma morte jovem. ou famoso pela ciência. ou pelas artes. ou pelo
desporto. ou ainda unicamente pelo dinheiro. e tudo dito com tanta emoção e
tanto infortúnio. e quando o mundo inteiro já está completamente apavorado.
amedrontado. hiperventilado. e em sufoco. chega o alívio para esse cocktail de
medos: é anunciado que apesar do número elevado de mortes. mais de noventa por
cento dos falecidos tem mais de oitenta anos e com outras patologias associadas
– esta voz não informa. esta voz mitiga o mal-estar. o desconforto e o incômodo
de quem ainda não chegou à idade de risco – não há diferenciação positiva nas
notícias. estamos a falar de números. estamos a falar de gente que por ter
envelhecido perdeu o direito de ser chorado. de ser condecorado por serviços
relevantes prestados à nação – em boa verdade esta gente idosa já estava morta
muito antes da chegada da covid19 – agora temos esse massacre diário de lares
contaminados. e os idosos infetados às dezenas. a morrerem porque quem tinha
obrigação e a responsabilidade de os proteger não foi competente. e não me
venham com desculpas de que a culpa é do vírus. ou dos funcionários que o
carregaram para o interior dos lares. a culpa é dos seus responsáveis. dos
gerentes. administradores. diretores. provedores e outros incompetentes sem
nome ou nomeação – não consigo perceber como esta malta não deu importância a
um vírus que estava a matar milhares em itália. digo. em toda a europa e ásia.
e era notícia diária nos órgãos de informação de todo o mundo –desculpem. mas
não compreendo como essa gentinha incompetente não valorizou os seus idosos. o
seu ganha pão. aqueles que depois de sobreviverem a tanta maldade. e que com os
seus sacrifícios. permitiu que o mundo moderno encontrasse uma resposta social
para quem chega à velhice – a declaração universal dos direitos humanos. diz no
seu artigo primeiro. que todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. em nenhum dos seus artigos faz referência à idade. e
também diz a nossa constituição no seu artigo 72º. que as pessoas idosas têm
direito à segurança económica. a condições de habitação. convívio familiar e
comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o
isolamento ou a marginalização social – não diz que a partir dos oitenta anos
tem que ceder ventiladores aos mais novos. a dignidade humana é um valor moral
que norteia toda a diversidade de valores de um indivíduo. idoso ou não idoso –
claro que compreendo o dilema dos médicos quando lhes pedem para fazer o papel
de deus. e também percebo que na dúvida se opte pelo doente que lhe dá mais
garantias de sobrevivência – mas. como se pode atestar pelas inúmeras
reportagens dos nossos meios de informação. que mostra diariamente a
recuperação de idosos com idades muito avançadas. alguns com mais de cem anos.
e que contra tudo o que era espectável. acabam por ultrapassar as graves
infeções pulmonares sem sequelas. o que nos mostra que nem tudo é assim tão
linear quando um médico tem que escolher entre um idoso e um “jovem” – não
podemos permitir que estas triagens se repitam no mundo. temos todos neste
planeta que tirar consequências desta grave crise de saúde. cada idoso tem um
pouco da vida que consumimos hoje – o que vos posso dizer é que para mim. em
face das notícias diárias que me chegavam. primeiro da china. depois de itália.
e por último da nossa vizinha espanha. foi muito fácil perceber o que tinha que
fazer. e fiz – felizmente que o fizemos no momento certo – a lourdes foi e será
sempre alguém muito importante para a nossa família e estará em nossa casa até
que deus entenda chamá-la – rogamos unicamente para que não faltem condições
para a mantermos ao nosso lado – temos apenas uma preocupação. que acame e
fique a necessitar de cuidados continuados e nos impossibilite de cumprir a
nossa promessa. a ua sabe melhor que ninguém que ainda estamos todos a tentar
sobreviver neste país que nos trata tão mal – a lourdes ocupou as nossas vidas
sempre com muita paz e serenidade. e para mim foi sempre muito reconfortante
tê-la por perto – podia contar dezenas de histórias fantásticas da lourdes com
a nossa família. e outras mil de nós os dois. mil histórias boas. porque se
contasse aquelas que me envergonhariam. estou convencido que as poderia
multiplicar por dez – já que estamos em abril vou recordar uma história da
minha adolescência vivida num período complicado para o nosso país: vivíamos a
revolução de 25 de abril de 1974 – pouco tempo após a revolução. em pleno
espírito revolucionário. com o país completamente em desordem. perigoso.
mergulhado numa onda de violência. de intolerância. de perseguição a todos
aqueles que de alguma forma estiveram ligados ao antigo regime. principalmente
aos pides - polícia internacional e defesa do estado. seus informadores.
políticos da assembleia nacional. igreja católica e outros dependentes das
benesses do estado novo. todos estavam sujeitos a linchamento público – esta
malta revolucionária. completamente alucinada. a viver uma liberdade sem
regras. próxima do caos. não se ficou apenas por aqueles com ligação ao estado
novo. tudo que que era patrão. rico ou pobre. com empresas grandes ou pequenas.
coxo ou maneta. tudo era fascista. explorador da classe operária. e tinha
obrigatoriamente que ser saneado. as suas empresas nacionalizadas. e criadas
unidades coletivas de produção para as gerir – tudo era pertença dos operários.
a terra a quem a trabalha. zero de patrões – coitado do meu pai. um patrão que
nem sabia o que era capital quanto mais capitalista – para grandes males.
grandes remédios. o meu pai aparece em casa armado até aos dentes. uma
caçadeira e uma caixa de vinte quatro zagalotes – não dava para começar um
movimento anticomunista. mas criar a ideia de que o primeiro comunista que
tentasse entrar na empresa corria sérios riscos de não sair com vida – nunca
nenhum tentou. não sei bem se por medo aos zagalotes. ou da minha mãe – estou
convencido que nunca tentaram ocupar a empresa porque sabiam que também tinham
que desocupar a minha mãe. o que não me parecia fácil sem a intervenção das
forças motorizadas – só para que fique registado. não creio que o meu pai
matasse o que quer que fosse. primeiro porque não tinha mira. e em segundo. não
tinha uma condição fundamental para ser um vingador: raiva persistente – o meu
pai o que tinha mesmo era uma alma do tamanho do mundo. não sabia fazer mal a
nada. nem a ninguém. e apesar de se dizer da direita. era mais de esquerda do
que os camaradas progressistas – viveram-se momentos revolucionários únicos.
que por nada deste mundo gostaria de ter perdido – com o começo de um novo ano
letivo. em setembro de 1974. o ambiente nas escolas não era diferente daquele
que se vivia nas ruas. a luta pelo controle do liceu sá de miranda fazia-se com
duas fações opostas no espetro político. o MRPP de arnaldo de matos. da extrema
esquerda revolucionária. e o CDS de freitas de amaral e amaro da costa. da
direita e democracia cristã – PSD. PS e até o PCP ainda não tinham expressão no
meio estudantil – o problema agravou-se porque nesta bagunça instalada no liceu
o que sobressaía eram os meus sinais exteriores de riqueza – transportava nos
bolsos bastante pilim para um puto da minha idade. no liceu comecei a ter a
fama de menino de papá. o que me desagradava por não ser verdade. e filho de
fascista. neste caso confesso que já me agradava mais. mesmo não sendo verdade
– o problema é que estava a pôr-me a jeito de um linchamento com motivações
revolucionárias e sujeito à cassação dos bens em transporte – os meus colegas
nunca souberam que a minha fortuna provinha dos descuidos noturnos de meu pai.
e como a sua divulgação seria uma vergonha para os dois. classifiquei-a de
confidencial e segurança máxima – juro-vos que preferia que o meu espólio
tivesse a sua grandeza num assalto a uma sede de um partido político – mas já
passaram anos suficientes para libertar essa informação confidencial: o meu
pai. ao deitar-se. dobrava as calças pelas vincas e colocava-as nas costas da
cadeira. sempre com muito cuidado para que no dia seguinte estivessem
impecáveis – até aqui tudo bem não fosse a sua relação descuidada com o
dinheiro – nunca mais conheci ninguém com um comportamento tão desprendido dos
bens materiais como o meu pai – com o envelhecimento percebi que talvez
exagerasse um pouco. e com alguma razão a minha mãe alertava-o para dar mais
atenção ao pecúlio familiar. e acrescentava em modo de ralhete final: até
parece que tens uma árvore das patacas – mas não adiantava. não era uma questão
de árvore. era unicamente os seus descuidos desinteressados. era-lhe
indiferente ter mais ou menos. as suas necessidades mediam-se pelos
compromissos assumidos. e nada mais – no entanto. esta aparente imperfeição do
meu pai. era a minha sorte e fonte de rendimento – a minha galinha de ovos de
ouro – ao colocar na cadeira as calças. as moedas que tinha no bolso tombavam
para a alcatifa – tudo fácil para mim. de manhã a lourdes ao arrumar o quarto
fazia a recolha e entregava-me o legado – bem. eu sei que é difícil de
acreditar. mas digo-vos que era muito dinheiro. para que possam ter uma ideia.
dava para um catraio levar uma vida de multimilionário – a caminho do liceu
parava no quiosque s. vicente. comprava um maço de tabaco ritz. como se fosse
um homem. enquanto os meus amigos compravam dois cigarros para o dia todo.
naquele tempo vendia-se cigarros avulso – como o dinheiro era muito. comprava
uma bola de plástico para jogar com os meus camaradas no intervalo das aulas.
juntava-lhe umas guloseimas e lá ia cantando e rindo. feliz com o sucesso da
vida – logo que chegava ao liceu. e para forrar o estômago. fazia um reforço ao
pequeno almoço de casa. um sumol e um bolo – quem estuda necessita de estar bem
nutrido – no intervalo grande dava uma corrida ao badalhoco. uma tasquinha em
frente ao liceu. e que o próprio nome me isenta de entrar em pormenores mais
cuidados. mandava vir um quarto de sêmea de chouriço e mais um sumol para
empurrar. e outra corrida para as aulas que o professor podia não perdoar o
atraso – o regresso a casa era de autocarro. os alunos medíocres não se podem
cansar e sempre era um quilómetro bem medido – o resto do dia era tirado para
retemperar o corpo do desgaste das aulas: às vezes cinema. quando tinha amigos
era nos matrecos do cerqueirinha que mostrava o poder de um capitalista. moeda
atrás de moeda e jogava-se a tarde toda – já com mais corpo. para lá dos
catorze anos e com mais de 1.75 de altura. a barba num novelo em reboliço
envelhecia-me o suficiente para entrar em salas de jogos de adultos. e lá ia
uma bilharada a dinheiro – para aquela malta mais velha era o franganote do
dinheiro fácil e que os sabidolas adoravam desflorar – mas nem tudo foi mau.
aprendi que o jogo nunca seria um modo de vida. não tinha sorte e também tinha
falta de jeito – resta-me a recordação de umas mistas fantásticas. com duas
pancadinhas de mostarda ficavam de estalo. e claro. o sumol ou a laranjina C.
nunca foi grande coisa para álcool. ainda mantenho esse handicap social –
naquela época estava ao nível do champalimaud ou mesmo do rockfeller. nem sabia
bem o que fazer com o dinheiro – nunca mais fui rico o suficiente para
recuperar o estatuto de capitalista. acredito que foi castigo de deus. já lhe
tentei dizer que a culpa era da lourdes. mas nunca me deu ouvidos. os cigarros
e o jogo fizeram-me cair em desgraça – e assim. fui vivendo de vários
expedientes mais ou menos no limiar do chico-espertismo em minha casa. e também
com a lourdes a guardar-me as nádegas do meu pai. protegendo-me e encobrindo
todas as minhas travessuras. e foram muitas
IV.
a
lourdes por tudo que fez de bem à minha família deveria ter direito a viver até
aos cem anos. se juntar o bem que me fez. e continua a fazer. dava outra
história. aditava-lhe mais cem anos. o que já contabiliza duzentos anos de vida
– os meus netos desde a morte da minha mãe que tratam a lourdes por bisa. de
bisavó. o que me deixa muito feliz – não sei se lhe guardarão memórias. mas com
certeza. um dia. talvez os pais possam ler para eles esta pequena imortalidade
que escrevi – a lurdes é o último farol da nossa família. ela passou todos os
nossos momentos maus e também os bons – é ela que guarda as últimas memórias dos
meus antepassados – prometi que tudo iria fazer para que os últimos anos da sua
vida fossem vividos com serenidade. assim deus queira e será – a lourdes para
nós não tem idade e a covis19. nascido em 2019. ainda não teve tempo para
perceber que independentemente da idade há pessoas que são estimadas e fazem
muita falta – tenho a certeza. que apesar da sua crueldade. se conhecesse bem a
lourdes… não teria coragem de infetar gente idosa
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