1.
o mundo é uma pintura surrealista. milhares de
quadros. todos diferentes. de várias épocas. várias tendências. várias escolas.
alguns de mestres. outros de habilidosos. e ainda daqueles que são bafejados pela
sorte de uma pincelada de génio – na tela a arte é suportada em cores indecididas.
ora com traços largos. ora finos. retos. com curvas para lá e para cá. e riscos
que só os espíritos livres sabem distinguir – a fruição da arte foi assim
durante séculos. do mestre ao pé rapado. do pré-histórico ao surreal. do
renascentista ao naif. todos fizeram emergir o belo. cada um ao seu modo – para
aristóteles o belo não pode ser desligado do homem. já que ele está em nós. é
uma fabricação humana – às vezes. quando os quadros ficam de pernas para o ar. o
artista estica o braço. endireita o pincel. fecha o olho cego. tira as medidas.
acerta as sombras com a luz. e desrespeita todas as regras da criação artística:
pinta como quer. e como bem lhe apetece. é a sua razão áurea – depois. coloca o
quadro de pernas para o chão. e tudo lhe parece certo e colorido – a arte. ou a
sua falta. são a sua identidade. a sua liberdade. pinta o que mais ninguém vê
ou não sabe ver. e mesmo com um olho cego. é a sua escolha pintar ou borratar –
tudo acontece por dentro. e logo aparece um nu se há beleza. um retrato se
prefere eternizar a relevância. uma natureza morta porque dos vivos trata deus.
às vezes naif. às vezes ingénuo. às vezes mais complexo de que o cubo rubik. pinta
a manta com as cores que vão da imaginação ao hiper-realismo – e quando dá a
última pincelada. assina com miserável desinquietação… xis. e promete um dia
desnudar-se por inteiro perante o mundo critico que o persegue ou com vivas. ou
ameaças de manicómio – pintam o presente para ser visto no futuro – cada traço
é o seu autorretrato. e a cor o seu caráter. revelando-se de uma forma límpida
e autêntica. numa simbiose mágica: todos veem a mesma pintura. e todos a sentem
de forma diferente – a missão de vida de um artista é sobreviver a cada olhar.
a cada leitura. a cada ouvido. a cada parecer. por mais injusta que lhe pareça
ser – cada momento pertence a um único homem-talento. esse instante terá que
ser obrigatoriamente respeitado e glorificado – o artista vive no seu mundo.
quase sempre ausente da realidade. assusta reis e plebeus com mostarda pastel.
se está zangado. pincela um vermelho irado. às vezes um verde esperança. mas o
negro… essa cor de dor e luto. fica para si. é assim que se esconde do mundo –
e a paleta de cores misturada ora faz raiva. ora faz luz. ora faz negrume. ora
faz uma estrada que ninguém sabe onde acaba – às vezes diz apenas: aqui estou
eu nesta arte que um dia me levará .ao fim do universo – os invejosos dizem que
a cor é diferente e impostora. uma trapaça. escura de dia. florescente de noite.
como se fosse obrigatório pintar o mundo com estilo – os indiferentes.
apáticos. “não sentem. nem sofrem”. desapegados da arte e das pessoas. encolhem
os ombros numa neutralidade dolorosa ignorando as cores e a mensagem – finalmente
os determinados. assassinam a obra e o artista com um único golpe de língua. numa
indiferença malvada e terrifica. e dos destroços imerge a interrogação: que é
feito do negro que me encobre a dor? a quem pertence o meu belo?
2.
nunca
serei escritor enquanto as palavras
não escolherem entre a luz e a escuridão. entre o anonimato e a multidão – um
dia. breve. assinarei o meu nome para uma eternidade qualquer. talvez pequena. talvez
grande. ou assim-assim. quem sabe – bem sei que aos olhos dos leitores nada
existe para além da arte. o artista é apenas a ferramenta da criação. às vezes
ignorado. maltratado e incompreendido. existe como existem as auroras depois de
uma qualquer noite. nascem – a arte é interpretada a gosto. sem sacrífico. sem
tolerância. sem devoção. sem compaixão. sem harmonia. sem contraste. sem
conceção – cada olhar uma sentença. às vezes morte. às vezes glória. às vezes habilidade.
às vezes transpiração. às vezes nada. apenas indiferença. anonimato. vazio – é
com a obra que os artistas se eternizam. indiferentes à passagem do tempo e dos
homens. enfrentam a imortalidade com indiferença. generosidade e sobriedade – o
belo e o seu julgamento em harmonia com a massificação artística torna-o também
popular. a internet é o louvre dos artistas menores. não sabemos quem nos
visita. mas sabemos que vamos por essa autoestrada digital. num silencio que
não magoa – a arte já não sobrevive sem o louvor. necessita de aplauso à medida
do seu valor – a morte existe para quem cria. só a obra resiste ao tempo.
imortalizasse – por isso escrevo. para que se eternize a minha arte. que apesar
de menor. me faz existir em cada palavra – um dia. os meus netos dar-me-ão vida
a cada leitura. e dirão: o meu avô vive aqui
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