não sei – não sei muito bem
para que um deus haveria de criar esta coisa redonda que gira como giram os carrosséis – não se faz ninguém feliz
com coisas que giram sempre para o mesmo lado – se queria ter um povoado
feito de gente feliz criava um céu sem girar. nem precisava de ser um grande
céu. bastava que fosse igual àquele que me impingiam nos livros da catequese –
anjinhos com asas. cascatas de água translúcidas. pombas brancas e um sol que
se desfazia num amarelo silêncio que era ao mesmo tempo paz – tudo perfeito – a
harmonia exemplar entre a natureza e o homem – diabo. nem vê-lo
–
“portanto. submetam-se a deus – resistam ao diabo. e ele fugirá de vocês”
mas não. deus criou uma
coisa redonda que gira como os carrosséis. criou este mundo que é tudo para uns
e nada para outros – obstinado. sim – doentio. talvez – cavalos. girafas. zebras.
cestos que rodam sem parar. bicicletas. triciclos e outras coisas que servem para
dar cor e animação a um mundo que não sabe girar sem ser em torno de si – o
homem não sabe viver sem animação – e a voz no microfone a falar para o mundo
inteiro. e o mundo surdo pelo cansaço de nada ouvir quando está em diversão –
nada. sempre o nada – o mundo foi desde sempre um divertimento – para deus é
com toda a certeza
–
mais uma volta. uma nova corrida. uma nova viagem – e a vida toda feita a girar
deus concebeu este carrossel
e é dele a voz nos altifalantes – diz que está em todo lado – mentiroso – mas
vou continuar com o meu lado criativo. adoro este lado. faz-me bem. distorce a
realidade sem me distorcer nada por dentro – lá vem o nada ao de cima novamente
– certo dia. deus. há muito muito tempo. estava deprimido. depreciado. desfeito
em tristezas. mergulhado em pastilhas de suporte de vida – prozac celestial era
a terapia contra a infelicidade – o momento não era fácil. o desespero
roubava-lhe lucidez – a depressão era um castigo que o atormentava nos seus
silêncios eternos – profundamente triste. esgotado numa dor contínua que lhe atrasava
os braços nos compromissos etéreos. ao mesmo tempo que a consciência sensível ia
perdendo a salubridade – para pôr fim a esta agonia que anunciava uma morte
impossível de acontecer. deus não morre. tomou a seguinte decisão: fazer a
terra – é o que eu congemino neste pequeníssimo cérebro – ninguém com o
perfeito juízo fazia uma terra com gente como eu – deus não estava bem – falo
por mim que sou um pateta e tudo o que penso não serve para nada – mais uma vez
o nada
–
os meus pais. distraídos. compraram-me um bilhete – naquele tempo os métodos
anti concecionais não eram fiáveis – era o tempo do termómetro
apanhei a última cegonha com
destino á minha rua – nunca me senti indesejado. bem pelo contrário. foi a vontade
de deus como diz a minha mãe – eram tempos difíceis para as cegonhas e para as
famílias – muitas lágrimas aportaram os olhos da minha mãe
–
e agora como vai ser para criar este menino. como vai ser meu deus. tu sabes
que já não sou nova – era assim a apoquentação da minha mãe
duvido que deus soubesse de
alguma coisa. mas se algo lhe tivesse assobiado aos ouvidos. tenho a firme
convicção que não lhe passava pela cabeça o tamanho da encomenda que lhe
chegava em aborrecimentos – e lá vou eu no
carrossel. num cesto que gira sem destino – gira para esquerda e para a direita
e nenhuma mão capaz de dar rumo ao cesto
– nem a mão de deus – enquanto as zebras e os cavalos nobres. num galope
celestial. certo. com direção. com altivez. elegância. de olhos postos no
destino. percorrem tempo num acerto que nunca fui capaz de reproduzir – e o
cesto a rodar sem parar e eu perdido em voltas sem saber – “deus ao menino e ao
borracho põe a mão por baixo” – nunca fui menino. nunca fui borracho. cresci no
dia em que nasci. cresci para fora do corpo e nunca fui capaz de segurar o
olhos dentro do tempo certo – há um tempo certo para se fazer o que está certo
–
nasci preso às asas de uma gaivota rumo a um vento que nunca me entendeu
os carrosséis não giram da
mesma forma para todos – o ar dos cavaleiros também conta para dar brio ao
carrossel – eu lá vou todo desengonçado a girar para um lado e para o outro.
sem saber se vou para norte. ou para sul – que importa se o banco só gira para
os lados – os lados não tem norte ou sul – enquanto giro. os altifalantes
gritam alegria. só as zebras e os cavalos se mantém aprumados com o rumo do carrossel. tudo o
resto vai para onde calha – vai para cima e para baixo. para um lado ou para o
outro este cesto alucinado – ir sem rumo também é destino – tudo roda sobre mim
– quem roda unicamente sobre si nunca saberá encontrar o verdadeiro caminho que
lhe falta percorrer – o deus que me impingiram em criança não fazia isto. deus
não é injusto. não é xenófobo e a minha rua é igual a tantas outras – ele tem
obrigação de saber que não fui eu que escolhi aquela cegonha tresloucada e muito menos escolhi o
deus a quem rezar – no primeiro dia deus criou o dia e a noite e os carrosséis
–
“e lá procurarão o senhor. o seu deus. e o acharão. se o procurarem de todo o seu
coração e de toda a sua alma”
se te procurei foi por ordem
da minha mãe. e também foi por sua ordem que frequentei a tua casa. apesar de
nunca te ter visto por lá – fiz o que me mandaram e se te aborreci foi sem
querer – deus não pode ser assim tão injusto. já não falo por mim que estou
habituado desde pequeno ao seu silêncio. mas por aqueles que nunca se cansaram
de acreditar nas orações que lhe consagram diariamente – deus não pode
continuar a esconder-se no silêncio – deus se existisse não era injusto ou
então não está em todo lado como faz acreditar
--
deus está cansado – imagino eu que também já estou cansado do seu cansaço
acredito que deus não é o
responsável pela pasta da equidade no céu. tem um capataz a quem delegou todo a
justiça terrena – concebo-o sisudo. com um bigode farfalhudo. voz grossa e a
face cheia de cicatrizes de escaramuças – o feitor coloca-se à porta do céu e
quando chega o pecador é com ele as primeiras falas – olha para o aspeto do pobre
infeliz. e sem mais nenhum trato. dá-lhe um pontapé no rabo e diz-lhe sorrindo:
--
senta aí. alguém te virá buscar – e psiu! pouco barulho que o senhor teu deus
está a descansar
e assim estou. sentado e
ainda não entrei no céu – tratado como um verdadeiro nada – espero que alguém
me mande para algum lado. um lado sem lado. um lado que por ser redondo abrace
todos os pretensos lados renovando a fé dos indecisos com um novo lado mais justo.
o lado que me faça aceitar o dever de gratidão por fazer parte deste mundo – o
jogo de deus
–
i love this game
apesar de não saber escrever.
e esta missiva estar um pouco confusa. sei que um dia deus responderá a todas
as minhas dúvidas – contrapondo: “abençoado são os teus olhos. porque veem; e
os teus ouvidos. porque ouvem. pois. mesmo sem tê-lo visto. tu o amas; e ainda
que não estejas podendo contemplar seu corpo neste momento. ”crês em sua pessoa
e exultas com indescritível e glorioso júbilo” – qualquer idade necessita de
ter um deus de verdade – na minha idade só preciso de um deus para me retirar
para a barca – tenho que levar a moeda certa na boca – preciso de acreditar num
ser superior – preciso de um deus – preciso que os meus filhos possam continuar
a crescer como homens de bem e que sejam capazes de o encontrar onde eu não
consegui – preciso que sejam sempre fortes e corajosos em seu caráter. afáveis
com as demais pessoas. bondosos. amantes da paz – preciso que valorizem o
trabalho. a justiça. a nobreza das ações acreditando sempre que um dia serão
capazes de ouvir da sua boca que valeu a pena acreditar num deus que já foi o
meu – preciso de um deus para lhe entregar as minhas preces. os meus medos. os
meus receios – preciso de um deus para lhe pedir proteção divina para os meus
filhos. para a minha maria joão – só assim poderei partir para a minha última viagem
– preciso de um deus que me deixe comtemplar pela última vez o que mais amo
neste mundo e seguidamente reencontrar definitivamente o meu verdadeiro pai – o
meu pai terreno – tenho tantas saudades dele e quero tanto abraçá-lo – para
sempre – preciso de um deus para sair definitivamente deste corpo. apanhar a
cegonha de volta ao nada acreditando que deus tomará o meu lugar na proteção
dos meus – preciso de um deus para todos aqueles que estimo e amo – para mim já
é tarde. apesar de toda a minha vida ter feito quase tudo para lhe agradar – para
mim basta que me receba pessoalmente na porta de onde quer que viva e me diga:
foste um palerma. um tolo. se nunca te apareci foi por tua culpa – és um
ingrato – mas sossega que não sou rancoroso e os teus filhos. ao contrário de
ti. saberão escolher a estrada certa – mas descansa. podes estar tranquilo. estou
de olho neles e tudo farei para lhes mostrar o caminho da luz – sei que só
partindo em paz comigo serei capaz de me sentar á direita de deus e do meu pai
–
e disse-lhe jesus: em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso
aqui estou eu meu deus.
novamente. como quando te visitava na catequese. completamente livre de
preconceito. quase ingénuo – desta vez para te dizer que o que aprendi na tua
casa não me serviu de grande coisa. a não ser. o fato de me teres dado um
padrão moral capaz de decidir com objetividade o que está certo ou errado –
coisa de pouca monta neste novo tempo das tecnologias que andam num ar
invisível – os ensinamentos da moral deixaram
de ter exclusividade nos homens de deus – mas adiante. se efetivamente
existires. e se me vieres realmente receber á porta da tua casa. lembra-te de
que os meus filhos existem porque um dia eu acreditei verdadeiramente em ti. na
virtude da alma. da família. no amor verdadeiro. no certo a vencer o errado. no
bem a se sobrepor ao mal. e na luz a iluminar as trevas – por mais insignificante
e minúscula que encontres a minha alma recorda que ela é ainda preenchida pelo
que sobra das tuas palavras – um homem de bem nesta idade necessita de
acreditar num deus de bem – num deus que seja capaz de dar alento a quem vive a
meu lado á mais de trinta anos – uma cama partilhada jamais aceita o silêncio
das ausências eternas – que seja também capaz de me guardar os filhos até ao
dia que eles encontrem a mesma saudade que hoje tenho pelo meu pai – hoje vou
rezar um pai nosso – um homem na minha idade precisa de rezar mesmo que não
acredite em nada
–
pai nosso que estais no céu
um homem da minha idade só
precisa de um deus para poder morrer em paz – eu sempre quis morrer em paz. na
companhia dos meus filhos e da minha amada
.
.
.
.
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário