.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

11/09/2016

as lágrimas também podem sorrir III




                                                                        foto - sampaio rego





na maior parte dos dias não sou nada. noutros. sou eu. que nada sou também – mas há dias em que me sinto herói. assim como aqueles super-heróis americanos que voam. que andam pelas paredes. que se transformam em rochas e deitam fogo pelas mãos sempre com uma única motivação: a de proteger os mais débeis – nesses dias. sou então fenomenal. sou herói por inteiro. mesmo que os pés sejam de barro – sou feliz – a razão é simples para essa felicidade. os meus super poderes anularam [temporariamente] umas quantas forças do mal que me infernizam a memória – são vitórias curtas. inofensivas e tantas vezes inconsequentes. não servindo rigorosamente para nada a não ser ganhar uns míseros instantes de bem estar para o corpo – mas são estas janelas no tempo que me permitem debruçar no seu parapeito e olhar o mundo de uma forma mais tranquila. com mais tolerância. mais sossego. mais ternura. sem amargura. sem desumanidade. sem culpabilidade. sem desassossego  aceitando a sua forma de girar. de centrifugar. de arrumar as pessoas. de criar amigos. de os estimar e de me levar ao cimo da minha montanha. olhar o futuro com misericórdia. perdoar o passado. reajustar o corpo com o que me resta da alma sã. meter as mãos aos bolsos. escutar o coração e devolver aos olhos a vontade de caminhar. de não desistir. de acreditar. de contornar o destino mais uma vez – e ali fico. estático. à procura de um lugar no céu  que nunca conheci e que por via de um crescimento apressado nunca percebi se o seu azul anuncia tempestade ou bom tempo – isto tudo numa resignação tranquila. de aceitação do mundo que me foi oferecido e de uma absolvição sincera. merecida e desejada mesmo que condicionada pelo tamanho do horizonte da minha janela – sempre acreditei que o [meu] mundo é tendencionalmente bom – mas às vezes a minha memória atraiçoa-me e não me autoriza ver o seu lado melhor – é o seu lado mais sombrio. mais adulterado. mais egoísta. portando-se como os antigos corsários: terrífica. de tapa olho. perna de pau e espada em riste pilha-me a alegria de viver deixando-me ficar os revés como sinal de aviso: não estás a sonhar – cruel – mas a realidade é que a memória não é mais do que o armazenamento da nossa vida através de experiências ouvidas ou vividas – em boa verdade é tudo aquilo que eu quis que fosse – libertar-me do passado indesejado é apagar a memória mas também é apagar uma parte da minha essência como homem que cresceu numa soma da totalidade de todas as experiências – sou assim tanto do bom como do erro – mas mesmo assim gostava de apagar tanta coisa – nem sei se são assim tão más. mas cresci e quando crescemos mudamos em tanta coisa que. inexplicavelmente. nos leva a querer apagar ainda mais – cresci – cresci tanto que há faces que já só reconheço nos sonhos. surgindo-me então os corpos afeiçoados com os sorrisos do dia em que os esqueci – quando crescemos a saudade cresce connosco e aquele até amanhã sumido na despedida do amigo é agora necessário que aconteça – é urgente rever os amigos de calções. da bola. da carica. do polícia ladrão – é absolutamente essencial. para o meu sossego. saber que estão vivos e que afinal o tempo não os mudou por dentro – é  o lado bom da memória sem a corrosão do tempo –  recordo então os que já partiram e peço-lhes perdão por erros que só a juventude é capaz de perdoar e lamentar – a morte é a saudade vestida de negro – cresci para partes do corpo que não gosto. mas também cresci para outras que aceito com humildade – cresci. cresci para um futuro que já não é só meu. cresci tanto que já sento ao colo os netos. um avô é pai duas vezes – cresci para os meus filhos. estão enormes. homens bons. dignos. a saberem coisas do mundo que eu na idade deles não sabia. a prometerem o resgate da felicidade em definitivo para a nossa família. com honra. com nobreza – cresci para a minha mãe que do cimo dos seus noventa e dois anos não se cansa de me dizer para ter cuidado com os invernos: -- toma a vacina para a gripe meu filho. tem cuidado contigo. já não és nenhuma criança – mas cuidado para quê minha mãe se o único mal que temo é este que me permite sobreviver no vosso meio sem acerto com a minha consciência – fernando pessoa diz que “a memória é a consciência inserida no tempo” – que verdade tão cruel. há verdades que dói como o fogo de camões – não gosto de algumas memórias e tudo faço para as apagar – infelizmente. quase sempre. temporariamente – não é fácil – há momentos gravados a cinzel. para sempre. inapagáveis – como dizia cervantes: “ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!” – são estes momentos que nos fazem sofrer – ainda estou a ouvir a minha mãe a dizer: -- um dia vais puxar pelas orelhas – quando um homem quer safar o passado o final está sempre para breve – nunca me passou pela cabeça. bemtalvez não seja bem verdade. que um dia iria querer dar um apagão à memória. desativá-la. eliminá-la. destruí-la – há recordações que se comportam como a peste negra – a única diferença para pior é a forma lenta como nos leva à morte – nunca imaginei que ao longo do tempo esta adquirisse um tal poder de persuasão capaz de ordenar a destruição do seu próprio corpo – rouba-lhe o sorriso. a vontade de viver. a auto estima. a fala. a vontade de amar e de ser amado – dá-nos a solidão e com esta chega a coragem para esquecer o amor de quem nos quer bem – quando damos conta já não temos nada de nós. gelamos e daí a fragmentar a alma é apenas a ocasião –  não é possível lutar contra a vontade de algo que não sei como dominar. alterar. reformular ou até ajoelhar. pedir perdão e prometer-lhe um novo par de olhos. de ouvidos. de gestos. de sorrisos. tudo para construir uma numa nova dimensão humana – confesso que não sei o que fazer. tudo que tinha para fazer já fiz – não podemos entregar a nossa memória a ninguém para retificar o que quer que seja – não foi feita de um dia para o outro. é feita de tempo. do que ouvi. do que vi. do que senti em cada momento e que por ser apenas minha só eu serei capaz de a compreender as suas opções – sou um par de olhos e ouvidos – agora. hoje que vos escrevo. sei apenas que os olhos cegaram e os ouvidos são zumbidos que não me deixam descansar – só a memória. em momentos raros de lucidez. ainda é capaz de distinguir o bem do mal. o certo do errado. a luz da escuridão – talvez esteja louco e a memória me esteja a trair fazendo-me esquecer a razão principal  da minha chegada a este mundo. levando-me a ver outra forma do meu corpo. outras vozes. outros gestos. outros sorrisos – agora todo eu sou estranho. e tudo que imaginava ser meu em definitivo afinal não é. e estou cada vez mais só porque não me reconheço e também já não tenho a certeza de que esta memória seja realmente minha – compreender-me  neste todo é cada vez mais difícil – há um bruído bem lá no fundo. um cansaço que apela à autodestruição – já não sei se vivi muito ou pouco. tenho dias que quero ir para casa e outros que continuo a magoar-me nesta luta que não me leva para lado nenhum – estou com uma vontade enorme de voltar ao sul – sei que nasci a sul e depois caminhei para norte – é no sul que as andorinhas fazem os ninhos e os rios encontram o mar em definitivo – é no sul que os meninos jogam à bola numa rua igual à que me viu nascer – é no sul que descobrimos o saber de toda a humanidade. que encontramos tudo o que perdemos violentamente: o meu pai. a sua paz. a sua serenidade e finalmente a seu lado a verdadeira aceitação do que realmente sou – com a idade percebi que sou tanto do meu pai – é no sul que podemos definitivamente dizer à memória que já não nos faz mais falta – eliminamos de vez o que nos magoa porque a sul não habita nem a desonra. nem o erro. nem o pecado – a sul existimos tal e qual como nascemos – a memória é pertença de um corpo com uma vontade intrínseca para conquistar a paz – neste mundo. este que me consome diariamente. o corpo existe só para a carregar. é um alforge que a suporta em sorrisos angelicais. em gesticulações graciosas. em fonemas musicais descarregados em boca gentil: --sim. está tudo bem obrigado – mas a memória diz que não – dentro da memória cabe o corpo. e dentro do corpo a dor que. não sendo visível. é sempre possível descrevê-la: uma lâmina abstrata. de contornos pouco definidos. sem linhas retas. com arestas vivas. curvas e contra curvas envoltas em ângulos que não levam aos cortes nenhuma cicatriz que se transforme numa impressão digital – com esta lâmina abstrata nenhum corte é repetido. nem sequer parecido. imitado. nem rebuscado. nem desenhado. é apenas um corte que corta de acordo com uma dor que é só nossa. uma dor exclusiva da memória – é uma dor silenciosa que nos mata em duodécimos para ganhar ao tempo mais humilhação – dor e mais dor – a angústia desta dor não pode ser explicada – sente-se e magoa. só – não há dores iguais. não há cortes iguais – pode parecer. mas não há – por isso peço aos meus amigos que não imaginem esta dor. não a criem à sua semelhança. não a desenhem. não a preencham com as dores da vossa vida – não seria justo e eu não gosto de  amigos injustos. perco-os na memória e confesso que depois já não sou capaz de os procurar – varrem-se-me para sempre – os verdadeiros amigos. os afetuosos. não se zangam pelas dores que não são suas. respeitam-nas – um dia recordarão a minha existência num silêncio-entendimento. de aceitação-paz. de amizade-incondicional. de verdade. de saudade. de compreensão – cada metamorfose da memória projeta no corpo uma dor diferente – bem sei que as dores se tornam públicas quando oferecidas em palavras. também sei que todas estão sujeitas a um julgamento. a um exame. um estudo até. crítica também. mas não se esqueçam nunca da compreensão. da amizade. da tolerância. mesmo da sua aprovação por compaixão e mais importante. da legitimidade das minhas escolhas – bem sei que nem sempre as escolhi. muitas tocaram-me em sorte – a dor é pertença apenas de um corpo com a sua memória e apenas essa memória será capaz de a julgar e compreender as suas motivações – a memória é uma armadilha dolorosa que depois de escolher a sua vítima prolonga-lhe as dores numa continuidade suicida – são dores que ficam para sempre. nos dias melhores adormecem atordoadas. anestesiadas. mas na maior parte das vezes. disfarçámo-la com sorrisos. com festas surpresas. com brindes e com amigos que estimamos o suficiente para não lhes transmitir uma dor que não lhes pertence – para sofrer já basta um corpo – acumulamos dor. acumulamos sofrimento. acumulamos falta de compreensão. acumulamos indiferença e todo mundo acha que seriamos melhores de uma outra forma qualquer – como se eu não quisesse ser outra coisa – às vezes queria mesmo ser o resto do mundo menos ser o que sou – a dor é um vulcão que de tempos a tempos se sente obrigada a expurgar a sua larva para permitir ao corpo mais um dia de vida. para se reinventar. reformular. reajustar e aceitar uma nova verdade  por tempo limitado – mas nem sempre é possível. já não há força. a honra foi perdida definitivamente – o tempo é um embuste: na juventude somos feitos de idiotices. no entanto. juramos a pés juntos que tudo é perfeito – envelhecemos e tudo que era certeza é agora dúvida. erro. remorso. arrependimento e o perdão perdido entre o castigo violento e um julgamento com direito a pena de morte – e o nosso dedo apontado a tudo. e o dedo dos outros apontado ao nosso coração e a justiça feita com a cabeça na guilhotina – dor. arrependimento. dor. arrependimento. dor arrependimento – e esta repetição a ecoar sofrimento. sem cessar. sem piedade – nietzsche dizia que “é possível viver quase sem lembranças e viver feliz, como demonstra o animal, mas é impossível viver sem esquecer” – eu não consigo esquecer – com o tempo a memória rouba-nos a boca. as lágrimas. os olhos incham. esbugalham. deformam-se. rouba a cor. rouba a realidade e a morte surge por um afogamento que dura tantos anos como quantos levo a pensar – o filme da vida passa-nos diariamente numa agonia de quem sabe que tudo pode acabar de um momento para o outro – o erro e a dor arrogados a um passado de fé: é a vontade de um deus – perdi a morada deste deus. não sei onde é a sua casa  – um caminho errado mais cedo ou mais tarde rouba as pernas ao peregrino – morrer sufocado pelas memórias é desumano – os amigos mereciam muito mais de mim do que este final – que me perdoem os que comigo caminharam porque são poucos – estimá-los deveria ser a minha última honra





[continua] – para a IV e última parte


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