foto - sampaio rego
sou
então
este. este que se apresenta agora
como sem memória. morto – com o
corpo também – mesmo morto – olhai-me.
olhai-me com esses olhos enormes e precisos – amigos – gente que [me] gosta. olhai-me – os amigos sempre tiveram
olhos enormes. precisos. bonitos e sempre viram certezas que
eu nunca vi – sempre gostei de me ver nos vossos olhos – amigo é um nome que é
mais do que uma coisa. é mais do que
eu sou. amigo ilumina. encandeia num finíssimo fio de luz. vidro que parte com a profundeza de
cada palavra trocada em noites de silêncio
– amigos são sorrisos que duram uma vida. são flores que me fizeram encher campos de sentimentos que nunca
aprendi a amanhar. nasciam porque
existíamos e quando existe um amigo há sempre uma razão para morrer
envergonhado – nunca quis que um amigo se embaraçasse – amigo é um rosto que
nos cobre o corpo num absolutismo consentido. desejado. infantil –
somos então mais altos de que as torres das igrejas e os pássaros abaixo da
cinta segredam felicidade como se as nuvens fossem uma alvorada de abraços – sou
lágrima. talvez um dia lágrima a
sorrir numa face amiga. sou revolta. sou um raio de uma coisa que pode ser
tempestade. ou sol. ou agonia. ou luz. ou um depósito de ferro-velho vendido a peso – nada mais
tenho para vos entregar para alem destas palavras que nunca abundam e me matam
de raiva por serem tão pouco – todos mereciam mais. todos – amigos que [me] gostam – a vida tirou-me uns quantos. o envelhecimento os restantes – estou
morto num corpo inteiro. num nome
inteiro. numa vida que morreu um
pouco por cada primavera – nasci em abril.
lágrimas mil – não adianta. morro
sem nome. morro dentro de um sonho
que não para de gritar erro – agora sou este que aqui resiste neste cheiro a
incenso. a flores. a água benta. a rezas. e ao último
pai nosso que já não está no céu – não estou em lado nenhum para além deste
corpo inquieto – rodeia-me satanás num silêncio que arde terror e me leva de
arrasto com tudo que me sobra da memória – a vida não passa de um caixão –
rezem. rezem e acendam uma vela do
meu tamanho que não é mais do que um palmo – rezem. rezem e falem da minha vida que não é mais do que uma palavra –.rezem. rezem e falem dos meus feitos que é apenas
defeito – rezem. rezem e agridam a
minha escrita que nunca foi de artista – rezem. rezem pelas minhas lágrimas porque foi nestas que afoguei – rezem
nestes ouvidos mortos pois jamais vos ouvirei –estou morto. finalmente – preciso agora de trazer a bala para dentro do
silêncio e abafar o barulho do disparo – careço de um descanso de arrependido. há dentro de mim um corpo que jaz
morto de tudo – o fim da vida é o fim da memória – a morte sou eu. numa sala vazia de mim. estou só. insignificante neste corpo vestido também de mim. sobram-me as mãos dobradas num peito
sem sentimento. por cima de um
coração que não é poema e uma borboleta coberta de terror anuncia que a vida é
apenas um dia mal contado – e o som das palavras é agora cada vez mais baixo. inaudível. com vergonha do defunto.
enquanto os gritos de arrependimento se escondem por baixo dos sapatos que me pisaram
– mesmo morto estremeço – rezem enquanto o fogo queimar o que me resta da pele –
a pele é tudo o que sou. por dentro
nada – a morte é um vento brando que nos leva sorrateiramente para um sono
interminável – finalmente a noite desaparece para sempre nos meus olhos – deixarei
então de ser peso. de ser matéria. de ser apontamento. de ser o fim da minha rua – que me perdoem
os que gostam de mim mas não quero mais memória – um corpo sem memória é um
corpo quente. sem dor. um corpo sul – o meu destino é uma coisa do mundo que vai
morrer sem passar de boca em boca – escutem.
escutem com atenção e apregoem a cada criança que queira nascer: quem não sabe ao que vem nunca saberá
verdadeiramente porque parte – assim estou.
estendido nesta urna feita de tempo.
morto. silenciosamente morto e a
língua sem saber dizer nada sobre esta partida que se alimentou de sonhos – finalmente
engolido pela ambição de uma idealidade que me negou a imortalidade – as lágrimas também podem sorrir
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